APL 347 S. pedro da cova “regras de bem viver”
O novo quase nunca se contenta só com o facto histórico, pois a par com ele sua fértil imaginação costuma criar a lenda, para poetizar o fenómeno religioso ou o facto social já esclarecido, ou escondido nas brumas da história (1). Um pouco deste espírito reside no que se conta, hoje, no lugar de Beloi, em S. Pedro da Cova, por entroncar o espírito da grei, representado pelo rei que passou na história com o cognome de “O Povoador”.
É da tradição entre os povos que habitaram os núcleos do Reboredo, Pia, Lameira e Beloi, que, em observância às regras estabelecidas nos bens patronímicos de El-Rei D. Afonso I doados à Diocese de Porto, em resultado duma carta do Couto de S. Pedro da Cova, seu filho, D. Sancho, estabelecera que as terras do padroado real, os chamados Reguengos, estariam vedados ao Bispo, para que nelas os populares fruissem o barro para fins domésticos e dos arvoredos mais ricos e densos, as madeiras para o fabrico do carvão vegetal - a conhecida choça -, factos estes reconhecidos durante as Inquisições que, em 1258, mandou fazer Afonso III, no próprio documento: “…Homines Cauti vadunt extra Cautum facere carbonem et pro barro” (2).
É também lendário que a tais sítios se deslocava D. Sancho I, dizendo uns, que atraído pelos bons ares, pureza de águas, sossego, outros em demanda de remédio para os seus achaques, situando-se o ano 1210, por se reconhecer que era achacado de “hua doença vagarosa” (3), “a ponto que as esperanças de remédio inteiramente se desvaneceram” (4).
Gorando-se a hipótese de cura por intermédio dos homens mais sapientes que frequentavam a Corte e os súbditos dos Conventos, agradecidos pelos legados que estabelecera em testamento, decidiu-se o monarca por visitar Beloi, ignorando os cansaços da viagem, a gravidade das epidemias e os seus contágios, nomeadamente a recrudescência da lepra e morfeia que atacava as populações. Reconhecia-se os préstimos da farmacopeia popular!...
Ainda não tinha pousado os pés na soleira da pousada e já o surpreendia um homem de respeitável idade, banhado em pranto:
- Porque chorais tanto, ancião? Quem vos fez mal?
- Foi meu pai quem me bateu
Estupefacto, o Rei insistiu com o dorido:
- Foi o vosso pai que vos bateu? Mas.., com essa idade, ainda tendes pai?
- Tenho, sim, Nobre Senhor! É aquele que se tresmalha entre os carvalhos e os azinhos, ora busçando bolota para os animais, ora recolhendo madeira para fazer carvão, eixos e roldanas.
- Chamai-o aqui.
O choroso homem deslocou-se então ao extremo da tapada e daí chamou:
- Ó meu pai!... Chegue-se aqui que vos quer falar El-Rei!
O chamado deitou por terra a ferramenta de corte e caminhou em direcção ao local, descobrindo-se. Era um ancião de provecta idade, teso, seco de carnes, voz timbrada, assumidiço. - Deus vos abençoe, nosso Rei. Que desejais deste vosso humilde servo?
- Disse-me este homem que é vosso filho?
- E disse-vos a verdade, que lha ensinamos desde pequeno.
- E que lhe bateste. Porquê? - insistiu o monarca.
- Por melindrar com maus modos meu pai, que além anda, arroteando a encosta.
Ainda mais estupefacto, voltou o rei a perguntar:
- O vosso… pai? Ainda o tendes?
- Tenho e se Vossa Real Majestade me perdoar a lengalenga, dir-lhe-ei que minha avó morreu há semanas, afogada no rio, que além passa.
- Meu Deus, meu Deus!... Isto é exemplar e único. Mas que código estabelece as vossas práticas de vida, para que nem os braseiros do Verão nem os açoites do Inverno vos tolham os ossos ou agridam a pele? Qual é a vossa postura perante a vida? De que vos alimentais, vestis, de que ciência bebeis para tão exclusivo comportamento?
- Observando as quatro regras da tradição. Comendo o melhor pão da terra. levedado e bem cozido; bebendo o vinho, branco de manhã, tinto de tarde, para bem do sangue, mas só depois de bem tratado em cascos de carvalho e em intervalos de 15 dias; fornicando em leito quente sem mancebia, mensalmente só. Tudo isto feito em ordem e sem exageros, porque, diziam os antigos, “o abuso destrói o uso” e os “maiores males vêm muitas vezes do abuso dos maiores bens”. Eu lhe conto mais: já no tempo do Vosso Pai, D. Afonso - que Deus conserve no Céu - , era costume dizer-se neste Couto: “Usa, mas não abusa!”
Quedava-se D. Sancho silencioso, admitindo que estes adágios, cheios de moral e sarcasmo, continham alguns ensinamentos domésticos, rematando com a seguinte pergunta:
- Falaste-nos de quatro regras, mas só mencionaste três. A quarta qual é?
Respondeu-lhe o ancião:
- Trazendo à cinta esta espécie de escudo feito de boa cortiça, como outrora o faziam os antigos povos de Kauso, estabelecidos no Crasto, além. Sempre que cada portador se senta sobre a pedra de laje ou granítica, sob as nádegas dispõe deste resguardo, de forma a protegê-las dos frios, que são sempre maus para os ossos, causam o reumático, tolhem a saúde.
Diz a tradição que, observando sem enfado os preceitos arrolados no grande livro da tradição oral, florescendo de geração em geração novos talentos, mandou El-Rei que os recolhesse, reconhecendo que a “verdade histórica está acima dos melindres patrióticos” (5), introduzindo-os na Corte, para que os observassem, os muitos filhos que teve e servissem os muitos mais bastardos que por infidelidade nasceram.
- Source
- S/A, . Lendas de Gondomar Gondomar, Câmara Municipal de Gondomar, 1995 , p.25-28
- Place of collection
- São Pedro Da Cova, GONDOMAR, PORTO
- Informant
- Serafim da Rocha Barbosa Gesta (M), 58 y.o.,