APL 121 Lenda de Arguim
Em 1443, a caravela comandada por Nuno Tristão ancorou na costa da Senegâmbia (África Ocidental). Nesse mesmo local, ainda em vida do Infante D. Henrique, começou a erigir-se uma fortaleza que só muito mais tarde é que ficaria concluída e apetrechada com a respectiva artilharia.
Entretanto, o comércio desta feitoria pertenceu ao príncipe D. João, que o viria a ceder a Fernão Gomes, a troco de elevada renda.
A descoberta era a enseada, uma pequena extensão de território no litoral africano e algumas pequenas ilhas e ilhéus, não excedendo a maior — Arguim — os 60 quilómetros de comprimento. Pois nesta última se estabeleceu uma feitoria, que a curto prazo se transformou no centro de toda a actividade comercial de D. Henrique. Conforme referimos, a posição de Arguim era suficientemente aberta para favorecer o comércio, consistindo este em trocas de fabricações e produções ‘europeias de pouco valor e grande vista pelo mais valioso da produção indígena, o que naturalmente não se compadecia com a missão apostólica em que os portugueses de então se diziam apostados.
O bispo do Funchal teve jurisdição no que respeita às coisas espirituais sobre a ilha de Arguim, cuja fortaleza albergava uma capela. Daí o prelado costumar autenticar as suas cartas-pastorais assinando como Bispo do Funchal, Porto Santo, Desertas e Arguim.
No entanto, novas conquistas dos portugueses depressa ofuscaram as influências, puramente mercantis, de Arguim, assim fazendo diminuir dia a dia o seu comércio, mercê de considerável desenvolvimento dos novos centros para onde se deslocava toda a actividade.
Abandonada pelos portugueses, Arguim conheceria sucessivamente o domínio dos ingleses, dos holandeses ‘e, por fim, dos franceses, que a tiveram até há pouco tempo. Assim, na primeira década do século XX, os prelados madeirenses continuavam a selar as suas pastorais com a velha cancela indicativa da jurisdição espiritual sobre Arguim, como se não tivesse cessado o apoio religioso à antiga feitoria.
Agora, contado o necessário intróito histórico, cabe a vez de passar à lenda que o vilão da Madeira tem mantido através de gerações. O vilão da Madeira, esse homem de cajado e calça de seriguilha, agarrado às leis das tradições antigas — vindas de benisco (corruptela de ab initio, ou seja do tempo em que Nosso Senhor andava pelo mundo...) — apresenta-nos ainda hoje assim o velho conto de uma ilha que não consta nos mapas.
Quando a Madeira emergiu dos mares, nesse mesmo dia, uma outra ilha atlântica submergiu. Esta última situava-se um pouco ao Norte da primeira e os atlantes conheciam-na por Arguim. Entretanto, em Alcácer-Quibir, D. Sebastião não teria perecido na batalha, apenas seria derrotado pelos mouros e lograra fugir do campo da morte indo dar a uma ilha no oceano. Arguim, diz-se, o refúgio do moço que tão desastrosamente reinara e disso pagaria boa parte das culpas. No entanto, na rota para esse lugar lendário, ele passara pela Ilha da Madeira, tangendo o cabo Garajau em cuja rocha mais atrevida às águas cravou com força a sua enorme espada. E aí ficou espetada e encantada a arma do monarca aguardando que ele um dia a recolhesse para a reconquista da terra portuguesa, que não tardou a ser submetida aos Filipes de Castela.
Em Arguim, mais tarde, D. Sebastião curtiria os seus remorsos, que isto de batalhas perdidas deve aclarar as cabeças. E nessa ilha passou a viver, em castelos de ouro e marfim, guardado à porta por um leão. Vida aborrecida que o adormecia no doce regaço de ninfas e fadas. Ainda por lá estará?
Assim, há muitos anos, uma caravela ida do continente em demanda da ilha da Madeira, teve à proa a ilha de Arguim, de súbito emersa. Na sua enseada amena ancorou o barco, que no seu bojo levava alguns jesuítas, que se destinavam ao Brasil. Aquilo era uma paragem belíssima. De bordo saíram os mais afoitos numa chalupa que rumou para a praia O espanto destes foi grande quando descobriram que os calhaus da praia eram de ouro puro e o areínho pedrarias e marfins. E, de repente, ao subirem os navegadores a uma encosta onde esperavam já encontrar novos deslumbramentos, a ilha submergiu totalmente, arrastando-os para o seio das águas atlânticas.
No fundo do mar outro mundo havia, um mundo de vida permitida, entre flores de uma beleza estranha e peixes belíssimos. Assistiram os navegadores a uma audiência da nova corte de D. Sebastião, em cerimónia que lhes foi inteiramente dedicada e com todos os pormenores das festanças do paço real séculos atrás.
Terminada a recepção, a ilha emergiu, todos podendo regressar à praia, com promessas de regresso.
Na ilha da Madeira, onde a embarcação foi aportar, os navegadores contaram, comovidos, aquilo que viram e anunciaram que quando Arguim voltasse para sempre à tona das águas, então a Madeira desceria aos abismos marinhos riscando-se para todo o sempre do mapa. E o dia do regresso de Arguim seria quando o moço rei quisesse voltar a buscar a sua espada de Garajau e guerrear os ocupantes filipinos — valha a verdade que nessa altura já o 1º de Dezembro de 1640 tinha ocorrido...
Conta-se ainda que outra vez outra caravela carregada de víveres procedentes de Lisboa e com destino à Madeira, nas alturas de Arguim ficou à prova em dura tempestade. Tão forte que houve pressa em lançar ao mar até ao último saco de carga. Só então a nau voltou a equilibrar-se, numa estranha calmaria.
O capitão mandou ver o mar e alguns, que se atreveram a mergulhar, contaram espantados e medrosos que haviam visto uma cidade onde as pessoas recebiam em festa os sacos de víveres que lentamente iam descendo da superfície. Ali era Arguim, ali era Arguim.
- Source
- MOUTINHO, Viale Lendas e Romances da Ilha da Madeira Porto, Editora Nova Crítica, 1978 , p.27-33
- Place of collection
- FUNCHAL, ILHA DA MADEIRA (MADEIRA)