APL 2772 Lenda da Porta de Arronches
Mês de Maio de 1287. Primavera florida. Céu luminoso. Aconchegando ao seio o braçado de flores que os simples correram a levar à rainha como testemunho da sua grande alegria por a ter de volta a Coimbra, a esposa de Dinis entrou nos paços. Vinha cansada. Cansada e cheia de preocupações. No seu coração todo ternura, a rainha D. Isabel não podia entender tanto ódio a separar os que eram do mesmo sangue!
Já sentada nos seus aposentos e de frente para a janela semiaberta por onde entrava o ar fresco dessa tarde de Primavera, a rainha foi surpreendida pela entrada de el-rei, seu esposo. Sorriu-lhe. Ele leu-lhe a interrogação no olhar. Apressou-se a esclarecê-la:
— A tarde vai descendo e precisais descansar. Mas tenho algo a pedir-vos.
Enternecida com a aparição do esposo, ela confidenciou:
— Meu espírito se alegra sempre que vos vê. Que tendes a pedir-me?
— Um conselho.
— Dizei.
— Sabeis que acabamos de chegar depois de visitar Portalegre, Arronches, Marvão e Castelo de Vide. Sabeis também porquê.
— Sim, eu sei. Deveis chamar à razão D. Alvaro Nunes de Lara.
— Já bastas vezes o fiz. Mas esse fidalgo tem a ajuda de meu irmão Afonso.
— Falai, pois, a vosso irmão.
— Não quer ouvir-me. O conflito será inevitável se continuam a fazer correrias por terras de Portugal e Castela. E então, serão dois os inimigos, em vez de um!
— Tendes razão, Senhor. Mas deveis adverti-lo uma vez mais. É necessário evitar a perda de sangue que também é nosso.
— Mas como? Ele não quer ouvir-me!
— E que pretendeis que eu faça?
— Que me não censureis por me juntar ao rei de Castela e ir cercar Afonso em Arronches.
— Como desejaria evitar essa desgraça! Ele tem consigo os melhores homens de armas de Portalegre, Marvão e Castelo de Vide.
— E comigo irão toda a nobreza e cavaleiros das ordens militares.
Fitou a rainha por segundos e concluiu:
— Minha boa esposa! Salvar Afonso sem que a minha honra seja tocada, creio já ser impossível!
Sorrindo com tristeza, a rainha quase murmurou:
— Tentarei esse impossível!
Como se o próprio Céu a tivesse ouvido, pela janela semiaberta entrou um aroma a Primavera que veio inundar todo o aposento. Respirou o rei com ânsia o ar fresco da tarde. Depois, beijando a mão da rainha, retirou-se tão silenciosamente como tinha entrado.
Dera a Primavera o lugar ao Verão, que veio encontrar Coimbra verdejante e fresca. Mas logo o seu bafo quente roubou a frescura à cidade das flores. O ar tornou-se pesado e, à noitinha, cantavam os ralos a sua frisante alegria de viver. Porém, nem tudo e duradoiro neste mundo. Ao Verão quente que deixou queimadas as folhas das árvores, seguiu-se o Outono. Manhãs frias, mas tardes quase primaveris. Agonia lenta do Sol, que dia a dia ia morrendo mais cedo, depois de uma manhã de ressurreição. E o Inverno chegou! Chegou como papão atroando os ares com o seu avançado vento... Escondeu-se o Sol sem forças para vencer nuvens pesadas como chumbo... E quando a chuva caía, era intensa, diluviana…
Foi numa dessas tardes de Inverno que um mensageiro chegou de Badajoz, pedindo para falar à rainha. Trazia um salvo-conduto e tinha pressa de voltar. Apressou-se a esposa de el-rei D. Dinis a recebê-lo. Ele pediu que ficassem sós, consentindo apenas a presença de frei Gustavo. Depois, beijando os dedos da rainha de Portugal, declarou, solene:
— Senhor! Venho do mando da mui augusta senhora D. Brites, mãe de vosso esposo el-rei de Portugal. Acompanhada da mui nobre infanta D. Branca, saíram ambas de Burgos para Badajoz, onde agora se encontram. O cerco de Arronches persiste. Há uma briosa resistência da parte de D. Afonso, mas o certo é que não poderá resistir a Portugal e a Castela. Ora a mui nobre D. Brites é mãe de D. Dinis e de D. Afonso. A sua situação é deveras aflitiva, como deveis calcular!
Parou um momento o mensageiro o seu discurso. A rainha D. Isabel, que o ouvia atenta e triste, disse, numa voz sumida:
— Compreendo o que se passa no coração da extremosa D. Brites e augusta mãe de meu esposo. Se eu puder ajudá-la, dizei-me como, porque não ambiciono outra coisa!
Com um aceno de cabeça, o mensageiro continuou:
— Senhora! Humildemente deponho a vossos pés a incumbência que vos trago. Sei quanto é difícil uma reconciliação. Mas há um meio: Conseguir que D. Afonso queira ir ter com sua mãe e sua irmã a Badajoz.
A rainha olhou o mensageiro.
— Senhor! E como poderá sair D. Afonso? Esquecei-vos que a melhor nobreza de Portugal e Castela, comandada pelos seus próprios reis, se encontra nesse cerco tão apertado de Arronches?
— Não era possível esquecê-lo, Senhora! Por isso é que a mui nobre D. Brites me enviou.
— E que pensa a mãe de meu esposo que eu possa fazer?
— Diz D. Brites que só vós podereis incutir no espírito do infante D. Afonso a ideia de ir ter com a mãe a Badajoz e ainda proporcionar-lhe o meio de ele poder romper o cerco, sem ser apanhado.
Aflita, a rainha de Portugal, perguntou:
— E como poderei fazê-lo?
— Pedindo Àquele que nada vos recusa e tudo pode.
— Meu esposo? Mas ele não está só. A seu lado está o rei de Castela!
— Não me refiro a vosso esposo mas Ao que tudo pode, na verdade!
— Só Deus!
— É precisamente o auxílio de Deus que dona Brites vem implorar-vos!
— Que posso eu mais do que ela?
— Desempenhei-me da minha missão, Senhora! Que hei-de dizer a D. Brites quando chegar a Badajoz?
Baixou os olhos a rainha. Depois murmurou:
— Que tenha fé em Deus! Rezaremos todas em conjunto pela realização do mesmo desejo. O cerco será levantado com honra para ambas as partes!
— Tendes então esperança que D. Afonso possa ir a Badajoz?
— Se Deus Nosso Senhor o permitir; não só D. Afonso irá a Badajoz, como el-rei de Portugal e D. Sancho de Castela.
— Como, Senhora?
— Dizei isso à mui augusta mãe de meu esposo! Que o seu coração cheio de angústia dê abrigo à fé e ganhe confiança!
A chuva caía intempestivamente. O frio cortava a carne e punha tremuras nos corpos enregelados.
Esfregando as mãos num gesto de dupla protecção contra o frio e contra o nervosismo que havia horas se apossara dele, o infante D. Afonso passeava na cerca do castelo, como se a chuva não pudesse tocar-lhe. Um dos fidalgos sitiados, porém, vencendo o protocolo que o mandava continuar a distância enquanto o pretenso rei meditava, cortou-lhe o fio desses pensamentos, por certo agitados:
— Senhor! Não tendes necessidade agora de vos expor assim ao rigores do tempo!
O infante olhou-o sem surpresa.
— Quantos homens saíram ontem para combate?
— Apenas trinta.
— E quantos voltaram?
— Doze!
— Acabemos com as surtidas. O cerco está apertado de mais. É inútil tentar sair daqui.
— E começais a acreditar na derrota?
— Só um louco poderia agora não acreditar nela! Temos os melhores cavaleiros de Portugal e Castela contra nós, comandados pelos seus próprios reis! É grande a honra, amigo, mas não nos aguentaremos aqui mais de uma semana!
— Que pensais então fazer? Só temos uma alternativa: morrer com honra ou viver com desonra. Por mim, Senhor, a minha espada responderá!
E num gesto de louca bravura o fidalgo portalegrense sacou da sua espada e ia já cravá-la em si próprio quando D. Afonso o suspendeu num tom breve de comando.
— Alto! Nada de mais desperdícios! Creio que achei uma outra solução, se conseguir sair daqui!
A surpresa toldou a vista ao valoroso fidalgo.
— Senhor! Quereis fugir?
Foi a vez do infante mostrar surpresa no gesto e no olhar.
— Fugir? Alguma vez notaste em mim sinais de cobardia?
O cavaleiro, com a chuva a correr-lhe pelo rosto e encharcado até aos ossos, mostrou-se confuso.
— Perdão, senhor D. Afonso! Tentai compreender o estado dos nossos ânimos. Mas se quereis sair, como pensais fazê-lo?
D. Afonso fitou o cavaleiro, sem dar resposta. Depois falou:
— Entremos no castelo! Preciso de um amigo para desabafar.
— Entremos, Senhor. Mas acreditai que todos quantos aqui estão são vossos amigos, capazes de dar a vida por vós!
A chuva continuava a cair e o vento a assobiar excêntricos solfejos. D. Afonso olhou com insistência um ponto vago. Depois voltou-se para o companheiro das horas de luta.
— Temos um caminho com honra, visto que não podemos vencer este cerco!
O cavaleiro perguntou então, com mal disfarçada ansiedade:
— E qual é esse caminho?
Sem desfitar o ponto vago no espaço, o infante elucidou:
— Ontem, um dos cavaleiros que voltaram da surtida feita, trouxe-me um estranho recado. Minha mãe e minhas irmãs chegaram a Badajoz, vindas de Burgos a fim de intentarem uma reconciliação com honra. Mas querem que eu esteja em Badajoz amanhã à tarde, quando meu irmão Dinis e meu tio Sancho de Castela lá chegarem.
O cavaleiro olhou o infante com pasmo.
— Senhor! Como quereis passar? Há sentinelas às portas das muralhas da banda de cá e de lá.
— Eu sei! Por isso achei a ideia louca e não aceitei logo. Porém, não sei porquê... não me sai da cabeça... é como uma obsessão, compreendeis? Eu tenho de ir a Badajoz! Mas, na verdade, não sei como hei-de sair...
O cavaleiro voltou a interrogar o infante.
— Senhor! Achais que essa seria a solução?
Sem hesitar o infante respondeu:
— Estou certo!
— Tenho então uma proposta a fazer-vos.
— Qual é?
— Chefiarei uma nova surtida com uns vinte homens. Vós ireis entre nós, disfarçado, e tudo faremos para vos proteger.
O infante cerrou os punhos.
— Não! Assim não! Seria um massacre! Se saíssemos as portas, como romperíamos o cerco?
Dois suspiros fundos coroaram esta interrogação, cuja resposta era por ambos de mais sabida. Houve um silêncio que pôs em maior relevo o ruído da chuva caindo e o do vento soprando com fúria. De súbito, D. Afonso caminhou para a saída da sala que dava para a cerca. Olhava em frente, como se tivesse descoberto algum fantasma. Arfava quase. E num grito abafado, pediu:
— D. Diogo! Dai-me depressa uma capa enxuta e um cavalo!
O fidalgo olhou-o, julgando-o acometido de um súbito ataque de loucura. Então o infante gritou:
— Depressa! Dai-me o que vos pedi! Acaba de dar-se um caso providencial! Olhai, ali, aquela brecha do muro. A água alargou-a... e eu vejo tudo vazio à sua volta...
Aflito, o fidalgo perguntou:
— Que brecha, senhor? Não a vejo...
Mas já novo grito o alarmava.
— Depressa, o cavalo!
Sem saber porquê, D. Diogo correu a satisfazer essa ordem. E também sem saber como, viu o infante montar e desaparecer para lá dos muros!
Duas horas mais a chuva continuou a cair, empapando a terra. Mas quando ela parou, ainda D. Diogo se conservava olhando o ponto da muralha intacta por onde vira desaparecer o infante D. Afonso...
E conta a lenda antiga que nesses primeiros dias de Dezembro de 1287 chegaram a Badajoz os reis de Portugal e Castela, encontrando já lá o infante D. Afonso, o que muito espantou estes reis. Foi ajustada um conferência entre sitiado e sitiantes, presidida pela senhora D. Brites, mãe d’el-rei D. Dinis e do infante D. Afonso, e sogra de D. Sancho de Castela. E a 13 desse mesmo mês de Dezembro a reconciliação foi firmada, com honra para todos eles.
No entanto, diz ainda a lenda, quando D. Brites felicitava D. Dinis pela feliz solução da contenda, o rei de Portugal perguntou-lhe, não escondendo a sua curiosidade:
— Senhora! Podereis agora esclarecer-me como conseguistes fazer sair de Arronches vosso filho e meu irmão Afonso? O cerco estava impossível de furar!
Sorriu serenamente D. Brites. Depois, com um gesto enigmático, como quem aponta o céu, disse, olhando intencionalmente o rei:
— Senhor! Perguntai-o antes à vossa virtuosa esposa…
— Como? Se ela ficou em Coimbra?
Sorriu de novo, D. Brites.
— E isso que tem? Deus está em toda a parte...
O rei olhou a mãe com espanto.
— Isabel teve parte activa nesta conferência?
— Isabel foi informada por mim dos meus anseios e propósitos. E pedi-lhe auxílio espiritual!
D. Dinis mordeu os lábios. Depois, inclinando-se ante a augusta senhora, disse sorrindo:
— Agradeço-vos a informação e compreendo agora porque se encontra aqui Afonso e foi possível tudo isto!
— Tanto esse assunto vos preocupava, meu filho?
— Sim, senhora minha mãe! É bem mais agradável ser vencido por Deus do que por um mortal. E não podia compreender a ruptura do cerco de Arronches!
Na tarde sem sol, que morria triste, dois sorrisos felizes iluminaram essa agonia: o de D. Brites e o de D. Dinis, rei de Portugal. Fora levantado o cerco de Arronches, com honra para ambas as partes!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 59-64
- Place of collection
- ARRONCHES, PORTALEGRE