APL 3010 Lenda da Ponte do Beijo

No primeiro quartel do século XVI, logo que a costa da ilha da Madeira foi reconhecida por Gonçalves Zargo, encontrou este a Ponta do Sol. Quando foi povoado este lugar da ilha, nele se fixou um homem decidido, habituado às lides do mar, amigo e ex-companheiro de Zargo. Ali ficou. Ali viu crescer os filhos. Um dia, porém, como era vulgar na época, os piratas começaram a atravessar o mar, e um deles, conhecido por Cambaral, homem forte, ladino e jovem ainda, trazia inquietos os pobres pescadores. Cambaral espalhava o terror em suas correrias quando se desviava do seu campo de acção predilecto: o mar Cantábrico.
Com os barcos fundeados no porto, braços caídos, o medo estampado nos rostos, a fome a bater-lhes à porta, os pescadores da Ponta do Sol resolveram pedir providências ao senhor da Casa da Ribeira. Este, auxiliado pelo Reino, organizou uma pequena esquadra para dar caça ao pirata. A ordem que viera era de apanhar o bandido e enforcá-lo no mastro grande do seu próprio navio.
Saiu o senhor da Casa da Ribeira, comandando a sua frota. Várias milhas haviam percorrido quando o nobre senhor divisou à distância o barco dos piratas. Imediatamente foi dada ordem para irem ao seu encontro. Mas do barco pirata também tinha sido descoberta a frota do senhor da Casa da Ribeira. No desejo de novas presas, Cambaral deu ordem ao timoneiro para que se aproximasse dos navios, enquanto ele reuniria os homens na proa. Deu-lhes instruções para o ataque e prepararam-se para a abordagem.
Logo que lhes foi possível, os piratas tentaram saltar para o navio que lhes barrou a passagem. Travaram-se encarniçados combates corpo a corpo. A confusão era imensa. Corpos ensanguentados dos combatentes saltavam de vez em quando pela borda fora. Durante algum tempo a sorte não se manifestou a favor de nenhum dos lados. Parecia indecisa. Subitamente, o ardor da luta começou a afrouxar por parte dos piratas. Não havia comando. Procuraram eles por toda a parte o seu chefe. Sem governo, em breve os piratas foram vencidos. E por fim, Cambaral foi encontrado sem sentidos, ferido na cabeça e em todo o corpo. Então, da ponte de comando surgiu a voz do capitão:
— Trazei Cambaral ferido para o nosso navio! Arrojai ao mar todos os cadáveres e fazei prisioneiros os homens que ainda tiverem vida!
A ordem foi logo cumprida. Encerrados os piratas no porão, em breve os navios portugueses voltaram para a ilha.
Aí, o senhor da Casa da Ribeira deu um claro sinal da sua fidalguia: ordenou que levassem para sua casa o ferido, pois desejava sará-lo antes de o entregar à justiça.
Assim, entrou na Casa da Ribeira o corsário que tanto intimidara os pescadores. Tratado pela própria filha do dono da casa, Cambaral ia sarando dia após dia. E certa tarde, o capitão dos piratas recuperou os seus plenos sentidos. Abriu os olhos e ficou fascinado! Julgava-se sonhando. O luxo que o rodeava não o impressionava tanto como a beleza de Leonor, que espiava os seus movimentos de espanto. Aturdido, ele perguntou-lhe:
— Quem sois, formosa aparição?
A jovem sorriu.
— Sou Leonor, a filha mais velha do senhor desta casa, que vos fez prisioneiro.
Cambaral abriu mais os olhos.
— Sou prisioneiro e tratam-me assim?
— Estais gravemente ferido. Só quando estiverdes sarado meu pai vos entregará à justiça.
Cambaral não ocultou o espanto.
— Que estranho proceder! Para quê tantos cuidados se me destinam à forca?
Leonor baixou os olhos e esclareceu:
— Tendes feito mal a muita gente!
Cambaral não respondeu. Olhava extasiado a figura delicada de Leonor. Tão profundo era esse olhar, que a jovem sentiu-se pouco à vontade. Para disfarçar, lembrou:
— Não deveis esforçar-vos a falar. Sossegai. Voltarei ainda esta tarde.
O corsário tentou soerguer-se no leito, mas uma dor aguda lembrou-lhe que tinha ainda feridas graves. Ela admoestou-o:
— Cuidado! Assim estragais quanto temos feito por vós!
— E porque o fizestes?
— Meu pai assim o quis.
Ele abanou a cabeça e murmurou:
— Tudo isto me parece fantástico! Mas creio que nada acontece por acaso. Acredito no livro do Destino. Estava escrito que havia de encontrar-vos... e nestas condições! Para quê? Isso pertence à outra página... que ainda está por ler!
— Estais a falar demais!
— Vou calar-me. Mas não me abandoneis! Creio que tendes sido vós a minha força!
Silenciosamente, Leonor saiu do quarto do doente, que não fez nenhum gesto para a reter.

Vários dias passaram. O ferido, apesar de aparentemente calmo, continuava em perigo de vida. A seu lado, Leonor dispensava-lhe os mais ternos cuidados. Cambaral já não sabia esconder da jovem a paixão louca que ela lhe inspirara. E Leonor, apesar de todos os esforços para não se dedicar ao pirata que estava agora sob a alçada da lei, sofria horrivelmente, pois rendera-se à juventude e beleza física do inimigo dos seus.
Um mês após a sua entrada na Casa da Ribeira, Cambaral foi dado como livre de perigo. Aos dois enamorados restavam apenas três ou quatro dias para continuarem juntos. A justiça esperava o pirata. Assim, Leonor olhava ansiosa o mar, na esperança de que algo acontecesse que salvasse o seu amor. Preferia não mais o ver, sabê-lo longe, junto de outras mulheres, a permitir que ele morresse numa forca. O diálogo entre eles dera lugar a um pesado silêncio onde apenas os seus pensamentos gritavam. De súbito Cambaral decidiu-se. A sua voz tinha perdido aquele tom altivo e sarcástico. Tornara-se profunda e cariciosa. Chamou:
— Leonor!
Ela pareceu despertar de um sonho. O coração batia-lhe apressado.
— Que quereis?
— Falar-vos. Aproximai-vos, pois não quero que nos oiçam.
Ela obedeceu. Ele sorriu-lhe.
— Sois tão bela! Tão boa, que nem mereço a vossa atenção!
Leonor suspirou:
— Para mim, valeis muito!
Cambaral entusiasmou-se.
— De verdade… acreditais que possa regenerar-me?
— Acredito!
— Sabei que não fui um homem qualquer!
— Calculo!
— E amo-vos! Tenho a ousadia de o confessar!
— Também eu!
Cambaral sentou-se no leito. Agarrou com emoção a mãozita trémula de Leonor. Perguntou:
— Quando pensam entregar-me à justiça?
— Depois de amanhã.
Pesado silêncio envolveu os enamorados. Leonor não pôde resistir e, abraçando-o, cobriu de lágrimas o peito do pirata. Este, enternecido, beijava-lhe os cabelos. Perguntou:
— Leonor... Se eu conseguisse fugir... viríeis comigo?
Ela não hesitou.
— O meu coração pertence-vos!
— Pois partamos!
— Como?
— No meu barco! Ele ainda está fundeado.
— E sereis capaz de o conduzir sozinho?
— Acreditai que sim!
— Nesse caso... fujamos quanto antes!
— Amanhã à noite. Eu sairei primeiro, logo ao pôr do Sol. Vós vireis aqui, como de costume, e ficareis o tempo que é hábito ficar. Depois simulareis recolher aos vossos aposentos. E logo que a noite se adense ireis ter comigo à ponte.
Leonor, com um suor frio a cobrir-lhe as palmas das mãos, declarou numa voz onde o medo dava mostras de ter chegado:
— Assim farei!
Entusiasmado, Cambaral beijou-a na testa.
— Querida, o mundo volta a sorrir-me! E desta vez envolto no manto maravilhoso do amor!
Ela ergueu-se.
— Vou retirar-me. Não quero que ninguém desconfie do nosso segredo! Até amanhã!
— Até amanhã, minha Leonor!

O dia seguinte chegou. Nunca as horas pareceram tão longas aos jovens enamorados. Evitavam falar ou olhar-se na frente dos outros, não fosse a inflexão da voz ou um olhar denunciá-los. E à medida que a noite se aproximava, Leonor sentia um tremor estranho por todo o corpo tirar-lhe o sossego.
A noite chegou, finalmente. Leonor já não encontrara o seu bem-amado no leito. Mas deixou-se ficar no quarto como dantes fazia, nos preparativos nocturnos. Depois, foi para os seus aposentos. Fingiu deitar-se. E quando o silêncio reinou na Casa da Ribeira, Leonor levantou-se devagar, tremendo, e foi em direcção ao local combinado. Divisou logo a figura máscula do altivo pirata. Do lado de lá da ponte, o cais improvisado, o mar e o navio de Cambaral, pacientemente esperando. As ondas lambiam as rochas da margem. Nesse momento um raio de luar rompeu as nuvens e reflectiu-se nas águas, como fita de prata polida.
Cambaral, eufórico de alegria, recebeu nos seus braços a jovem e linda Leonor. Apertou-a de encontro ao peito, que batia em uníssono com o dela. Sentiu fogo nas veias e, arrebatado, uniu a sua boca à da jovem, num apaixonado beijo. Mas, nesse momento preciso, o senhor da Casa da Ribeira, que havia sido avisado da fuga de sua filha, surpreendeu os enamorados nessa suprema demonstração de amor. Cego de ira, ergueu a espada e, de um só golpe, cortou cerce as cabeças dos dois amantes.
Quedaram-se abraçados, os corpos sem cabeça. E o povo, romântico como sempre, passou a chamar à ponte da Ribeira — a Ponte do Beijo.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 101-105
Place of collection
FUNCHAL, ILHA DA MADEIRA (MADEIRA)
Narrative
When
16 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography