APL 120 Lendas de Machim sobre o descobrimento da Ilha da Madeira

A 2 de Julho de 1414 (manda o rigor histórico, contra a lenda, dizer que o que aqui se conta teria passado entre os anos 1422 e 1425), reinando em Portugal D. João I, o de Boa Memória, Gonçalves Zarco, Tristão Vaz e os da sua companha, chegaram adiante da Ilha da Madeira. Na límpida manhã daquele dia, os olhos dos navegadores deslumbraram-se perante o espectáculo que a terra constituía. Lembrou-lhes tudo aquilo, subitamente, as serranias de Monchique.
 Atinando os barcos mais cuidadosamente para essa soberba enseada natural em forma de boca de caranguejo, protegido de todos os ventos, excepto o de leste-sueste, por lhe vir fronteiro, perpassando os olhos pelas encostas mais arrongantemente belas e deixando-os tombar encantados com a rudeza majestosa daquela paisagem de sonho. E pelas razões de semelhança com o outro pedaço português evocado, chamaram ao lugar Monchique, cravando-lhe logo o pétreo marco da descoberta. As vozes do povo não demoraram muitos anos a obrigar a palavra Monchique a tornar-se em Machico.
 Desembarcados os navegadores, como era hábito, um franciscano celebrou missa de acção de graças. Nesse ponto, mais tarde seria construída a primeira igreja católica em terras de além mar, pertencente à Ordem de S. Francisco. O acontecimento é narrado, ao referir o facto do capitão Zarco ter mandado buscar água para os padres a benzerem e com ela espargirem pelo ar e pela terra, «como quem fazia encantamento ou tomasse posse em nome de Deus daquela terra nunca lavrada nem conhecida desde o princípio do mundo até aquela era», conforme nos diz Gaspar Frutuoso.
 Ainda ligado à origem do nome da vila de Machico há uma lenda de amores infelizes. Transcrevêmo-la de Fernando de Aguiar, que se valeu não só da tradição oral contemporânea, mas também de dois manuscritos: um de Henrique Henriques de Noronha e outro de Jerónimo Dias Leite:
 «Na corte magnífica do cavalheiresco rei instituidor da Ordem da Jarreteira, Sua Majestade Britânica Eduardo III, residia a este tempo em Londres, certo Roberto Machim, homem mesteiral em qualquer arte, varão gentil no trato e bondoso nas acções,
mas a quem a Previdência, para sua e alheia desdita, lhe negara no nascimento e condição da sua nobreza aquilo com que o singularizara nos merecimentos morais e virtudes do seu carácter. Na corte vivia, em companhia de seus fidalgos progenitores, certa dama donzela, gentilíssima e por todos nomeada nas virtudes e recato da sua pureza. Seu nome era Ana de Harfet e só na nobreza do seu sangue do melhor o excedia, pois no demais de sua graça antes o igualava em favores do berço. Ele, homem de maneiras, formoso nas suas qualidades e no garbo esbelto de uma coragem grandiosa trazia gravado no coração a simpleza da sua alma. Ela, virgem de ledos encantos de alma compunha a formosura e linhas do seu corpo de ninfa junto da beleza magnífica de uma ingenuidade terna nos olhares e nas carícias do seu meigo saber falar ao coração.
 «Mas estava escrito que ambos muito haviam de sofrer, por, muito se amarem. Assim, em dia de função pública para regozijo de anos na corte ou por facto importante a turbar a vida nostálgica da cidade — quem sabe? talvez mesmo pela conquista da Escócia onde Roberto nascera! — os dois se conheceram, e... por fadário de seus pecados logo muito se deram a amar, e com amor exaltado no desvairo, pois em seus corações guardaram o secreto juramento de se dedicarem com esse amor até à morte.
 «Como está escrito na sabedoria dos povos que muito padece quem enferma do amor, imediatamente Roberto Machim e Ana de Harfet viram suas tranquilidades perturbadas entre inúmeros dissabores, qual deles o de menor lástima na dor. Conhecedores os parentes da afeição, imediatamente desta deram parte ao rei para com o seu régio assentimento ali aprazarem casamento igual a Ana, na cidade de Bristol, e isto antes que o amor, unindo a desigualdade dos extremos, viesse macular o sangue nobre de Ana misturando-o no sangue plebeu de Roberto.
 «Mas, como nem sempre a ausência converte o amor em padrasto dos amantes, porque a lonjura do coração nem sempre se torna em madrasta do amor, breve a Ana aumenta-lhe a paixão por Machini, e a este o orgulho espicaça no ódio o ultraje sofrido com a humilhação. Combinam desforra para tomarem a vingança, e ambos guardam em seus corações a fidelidade das juras trocadas. Fingidos na arte, dão aos mais mostras de esquecimento, mas calando a dor na vindicta se ajuizam para o dia do desforço contra os inimigos de tão eloquente amor. E assim, destarte combinam passarem-se ambos a terras de França por aqui mais fácil se lhes afigurar o matrimónio, sabido que esta traz então com a Inglaterra a dura guerra dos Cem Anos. Sabedores da injúria, querem os parentes amigos de Machim acompanhá-los na viagem, e assim melhor estes ganham alento e tomam ânimo para a retaliação.
 «Todos se passam a Bristol e em dia de folguedos, quando as gentes da cidade expandem no ruído as alegrias que enchem os corações, os conspiradores do amor olham cheios de contentamento para que os tripulantes dos navios surtos no porto, marinheiros embriagados nos vapores envolventes da festança, se esqueceram de deixar vigia no quarto de bordo, O resto logo se conhece nos corações alvoroçados dos dois felizes amantes. Estreitados pelo amor, querem estreitar-se na hora feliz de amar como mandamento o dever do mesmo amor.
 «Vêm à fala com Ana, no lugar onde os parentes a trazem a recato e marcam entrevista do amor para que os dois amantes cheguem à palavra e se dêem aos pormenores da felicidade com os cuidados da certeza na fortuna do empreendimento. Assim raptam Ana e, protegidos na sombra da noite, embarcam-se e mais a tão precioso tesouro em uma das embarcações. E aprestados para partida logo metem ao mar no mistério da sua navegação, ao brando vento a quilha soltando as velas, as ondas a branquejar de espuma o mar quando deslizam com o navio no rastro da ágil proa, e assim amarando de berra cada vez mais e mais.
 «Ao abandonar a casa paterna, não esquecera Ana as melhores jóias de seu riquíssimo adorno e entre estas, trouxera o esplendente crucifixo, que todos tomam para guia daqueles mares ao confiarem à Sua vontade o seu destino e o bom suceder da aventura.
 «Empavesada a barca, em tempo migalho perdem de vista a terra, mercê da ajuda imposta com os ventos rijos quando estes emprestam valentia ao velame, o navio a ranger nas suas costuras os gemido do bombordo a estibordo e arfando coragens no vaivém que o leva em tremuras desde a popa à proa e da proa à popa, a proa a quebrar vagas, a proa a agitá-las mais depois de vencidas e dobradas.
 «O pano da noite cobre o primeiro fim de dia. Logo o vergame parece vir abaixo nos esticões do seu velame, a barca a se sacudir contra a negrunta barulhenta de aquele mar revolto que não enxerga nem lua nem estrelas, nem escuta nas suas fúrias as ternuras de aquele amor que antes procura sepultar vivo no pélago medonho de um mar danado.
 «Apartando-se cada vez mais do horizonte da terra, aos tombos e guinadas de esticões no navio que logo os entontece por entre cheiros de enjôo, crêm no mar alto das grandes tormentas, e neste se encostam nas águas à fortuna das suas vidas. À toa, batidos no nevoeiro da espuma das águas e fatigados nas vascas na náusea, querem a morte para libertá-lo daquele inferno de mares cruzando de todos os lados e onde não aponta céu de estrelas que sejam seu norte. Navegando às cegas e ao deus-dará da sorte, quando madrugantes de novo dia logo a escuridão anoitece cada manha para os entregar no pesadume de noite sem dia, sempre o frágil lenho que parece sua mortalha sem religião a deixá-los entregues à mercê da corrente da mais terrível borrasca. E eles, pobrezinhos de Cristo, sem piloto governado na derrota da arte de navegar, homens grosseiros na ignorância mas rudes e tementes na sabedoria, sem conhecimentos náuticos perfeitos para elucidá-lo do perigo enorme a que cada vez mais se expõem, homens unicamente temerosos de que não viessem a alcançá-los com o furto, do que lhes adviria um exemplar castigo, cada hora mais emproam para o abismo.
 «De nada lhes serve invectivarem Deus da misericórdia infinita:
 «— Por que razão, Senhor, descarregas sobre nós a tua ira? Por que tão cruelmente arrebatas do mundo tão grandioso e devotado amor de dois amantes? Por que razão te esforças em perder estes teus desamparados filhos? Compadece-Te, Senhor, e tem piedade dos que se amam!
 «O ceu continua fechado, mudo aos clamores destes pecadores!
 «Continuam os dias a falecerem-se, antes mesmo de nascerem; e assim as noites se sobrepõem às noites, estas a crescerem pegadas umas nas outras e antes mesmo dos dias se sucederem. Noite após de noite já sem vigília, cerram-se sobre os homens as horas intermináveis dos minutos que passam calando o coração do homem à esperança da vida. Quase náufragos sem naufrágio, almas naufragadas no escuro denso de aquele temporal de arrependimentos, já aqueles bons homens, costumados a tudo menos à arte de navegar, invadidos pela fadiga com o desânimo, pedem em altos rogos o castigo último para pecado de tamanha gravidade como o seu ora se lhes afigurava todo gravado nos olhos das suas consciências.
 «Mas Deus, amerceando-se de tanto sofrimento, faz levantar o décimo quarto dia de aventura em dia menos horroroso que os seus antecedentes, e faz-lhes entrar no peito com as alegrias ruidosas da primeira aleluia.
 «Olham o céu a vestir já o seu azul mariano, o dos mares atlânticos. Quando a manhã dealba, o Sol rompendo pelas águas, os mareantes fixam na linha do horizonte seus olhos amortecidos de cansaço e logo se suspendem com as ruidosas alegrias do terra à vista, ao alcançarem ali, mui pertinho a eles, a certa língua de rochas que mostram no denso que as cobre a formosa beleza do seu arvoredo, os montes de aveludado verde-negro a tocarem-se uns nos outros para juntos beijarem a brancura imaculada das nuvens e com o oceano aos pés a acariciar fagueiro o tapete verde-gaio desse oásis bendito, todo ele verdecendo dentro do verde-ouro das ilhas afortunadas.
 «Tomam-se de medo por tão bruta lindeza, formosuras como não as há entre coisas do mundo.
 «No entanto, aproximam-se da terra aos solavancos desse seu receio e logo resolvem ali fazer aguada. Assim, ferram âncora no fundo de uma baía aberta em forma de boca do caranguejo.
 «Descem em terra e balouçam com seus corpos sobre calhaus movediços de areia negra, seus pés ainda mal adaptados fora dos equilíbrios do mar. E em fila indiana avançam floresta dentro, onde as árvores ao se roçarem misturam os seus sangues nas raízes umas das outras, figuras de antigos homens, nas caras a leitura dos seus sofrimentos sofredores, ali guiados aos tropeções do cansaço e em suores de fraquezas a acotovelarem rabeiras e raizames para se baixarem vencidos pelas tenras gavinhas de trepadeiras que ao se entrelaçarem se casam nos ramos soltos das árvores, sobre caminhos de troncos cobertos de musgos.
 «Abrigados sob: a acolhedora sombra de majestoso cedro, ali plantado e regado pela Providência na margem de fermosa ribeira, que pretende a sua duração nas águas do mar, nesta tranquilidade de paz descansam estes homens a sua primeira noite de sossego entre a aveludada mesquice do clima e o perfume bendito dos seus ares, o chilreio alegre e doce das avezinhas e o luar filtrado de um céu inocente das torpezas do mundo.
 «O mundo desce na ampulheta mais uns dias e com a inconstância da fortuna sobrevém novo temporal que lhes arrasta a embarcação mar em fora entregue aos novos balanços do vento. E com a barca lá seguem os mais dos companheiros que nessa tarde buscando agasalho a bordo se entretinham nas lidas da pesca para o sustento dos amantes e parentes.
 «Sempre açoutados pelos ventos, castigados da feita tempestade, assim chegam estes às praias de África, onde, ao ficarem cativos dos mouros infiéis, conhecem pavorosa masmorra.
 «O acontecimento de aquela perda de seus últimos dedicados familiares, a melancolia de alma que trazia desde que abandonara a honra de suas casas trocando-as pelo desassossego dos seus amores, tudo faz Ana cair em profunda letargia, não demorando muito a morte em vir roubá-la aos cuidados e carícias do seu amante. E Ana de Harfer, depois de muito sofrer as dores do seu amor enorme é assim premiada para longe do sofrimento humano e das maldades do mundo indo a receber no céu que os cobre a paga por tanto triste padecer.
 «À sombra secular de aquela gigantesca árvore que a natureza piedosamente ali fabricara em muitos anos para seu albergue, é dada à terra por Machim esse corpo níveo e formoso da que fora sua enamorada amante e razão de toda a sua vida. Nesse lugar de devoção, depois de cobrir com beijos ardentes e febris esse corpo de seu amor, entre o soluço amargo da despedida e o abraço forte da promessa de um até à vista breve, aconchegando-lhe a terra como seu lençol de núpcias, Machim entrega-se à dor e chora aquele apartamento da vida da sua vida. Assim, no mesmo local que lhes servira de tálamo, fica Ana adormecida à margem dos tempos na saudade e no amor de Machim e com este a ouvir-se nos seus queixumes e lástimas de amor enquanto a lenda habitar aquele chão de tão rica mocidade popular.
 «O profundo desgosto que afoga a alma de Machim não lhe permite viver por muito mais e, deste modo, acaba por fazê-lo render à dor os alentos, que tendo depositado Ana, no seu peito estava já sem alma. Os únicos sobreviventes a este grande desvairo de amor, como igual não houve nem jamais haverá, encontram Machim abraçado abraçando na morte aquela terra fria que pretende esconder de seus olhares o corpo amado de Ana. Piedosamente o enterram, e ao seu enorme coração de homem, junto da mulher adorada, assinalando a sepultura com tosca cruz de pau, talhada em madeira de cedro pelo próprio Machim que assim quis mostrar ao mundo o maior amor nascido na história.
 «Estes restantes companheiros de Machim, depois de cumprirem com a sua última vontade, homens famintos de outros homens e no seu abandono condenados a vida sedentária, aborrecidos de tanto penar, logo constroem uma jangada auxiliados tanto das ferramentas que o mar lhes trouxera de algum navio perdido e ali deram à costa, como da abundância de madeiras da região.
 «Com a jangada se lançam à fortuna dos mares, e de novo correm sua sorte e desdita lançados sob nova aventura e novos ventos. Mas como seguissem a rota dos primeiros, breve se lhes juntam em Marrocos, encarcerados como eles.
 «Anos volvidos, morre em Medina dei Campo, o Mestre de Calatrava, D. Sancho de nome, o qual em seu testamento deixa abastados cabedais em legados para obras pias e resgate de cativos. Entre quantos merecem esta sorte da libertação temos a certo João de Morales, que ouvira o sucesso da boca dos outros cativos. Passando-se a Espanha, de onde era natural, outros marinheiros do reino de Portugal o tomam prisioneiro e o trazem para os nossos Algarves.
 «Discorria o capitão Gonçalves Zarco os mares em ofensa dos remos de Espanha com quem Portugal andava então em guerra. E este fora o capitão que aprisionara Morales. Deste ouviria a história dos amores infelizes de Ana de Harfer com Roberto Machim, e com a história adquirira a certeza daquela terra desabitada e a poucos passos de mar de travessia, pois era fronteiriça com Marrocos.
 «E destarte teria João Gonçalves Zarco ficado senhor da existência da jóia preciosa que, por sua valente graça e de seus bravos companheiros da façanha, viria a ser o mais prezado mimo ajustado no amor de Portugal.»

 

Source
MOUTINHO, Viale Lendas e Romances da Ilha da Madeira Porto, Editora Nova Crítica, 1978 , p.13-26
Place of collection
FUNCHAL, ILHA DA MADEIRA (MADEIRA)
Narrative
When
20 Century, 70s
Belief
Some Belief
Classifications

Bibliography