APL 3034 Lenda das Três Gémeas
Há muito tempo já, diz a tradição que governava a antiga vila de Silves um rei mouro chamado Mohamed. Certo dia que Mohamed passeava a cavalo acompanhado de alguns homens da sua corte, encontrou um destacamento do seu exército que regressava de uma incursão por terras cristãs portuguesas. Com o destacamento vinham alguns cativos, trazidos como reféns. E entre eles uma formosíssima jovem, ricamente vestida, acompanhada por uma aia.
Ao vê-las, o monarca mandou fazer alto. E dirigindo-se ao comandante do destacamento informou-se sobre a sua origem. Soube assim que era uma nobre dama a quem haviam morto o pai e saqueado o castelo. Então o rei mouro reclamou a jovem cristã como única parte que desejaria desse recontro, e ordenou que a transportassem com a aia para o seu palácio.
Aí, Mohamed rodeou a jovem cativa de todas as riquezas e atenções. Cada vez mais enamorado da sua beleza, propôs-lhe que abjurasse da sua fé e ele a faria sultana. Chorou a jovem cristã. Chorou como chorava noite e dia. Porém, a aia consolava a sua ama dizendo-lhe que, se o rei mouro não lhe era indiferente, haveria uma forma de conciliar as coisas. Abjurariam ambas, mas apenas exteriormente, para que Mohamed acreditasse nelas. Porém, no íntimo ficariam sempre ligadas à religião cristã.
Assim aconselhada, a jovem aceitou desposar Mohamed. Convertendo-se, a aia tomou o nome árabe de Cadiga, permanecendo perto da sua senhora, como dama de confiança.
Passou algum tempo. O rei mouro continuava enamorado da jovem sultana. E quando esta ficou para ser mãe, o entusiasmo do rei mouro era quase infantil. Nasceram três princesinhas gémeas de grande beleza. Ante tão faustoso acontecimento, o rei convocou os astrólogos para que predissessem algo das suas três filhas.
Os astrólogos consultaram os astros e examinaram as mãos pequeninas das três recém-nascidas. Depois, conferenciaram entre si. E quando o rei lhes perguntou, intrigado pela demora do horóscopo pedido, o que tinham a declarar, um deles falou pelos outros:
— As princesas crescerão em beleza, bondade, sagacidade, graça e ternura, mas necessitarão da tua vigilância.
O rei franziu as sobrancelhas e perguntou, desejoso de melhor explicação:
— Necessitarão da minha vigilância?
— Sim. Principalmente quando chegarem à idade de casar. Não as confies a ninguém!
Mohamed sorriu e mandou entregar prendas aos astrólogos, que se retiraram.
Cinco anos passaram. Sempre triste, embora adorasse as filhas e fosse amada pelo rei mouro, a sultana morreu, confiando à hora da morte as três princesinhas ao cuidado da velha Cadiga. O carinho desta pelas meninas era verdadeiramente maternal. Cuidava delas como se suas filhas fossem. Nutria pelas três jovens amizade e admiração desmedidas. E as três princesas mouras iam crescendo em grau, beleza e ventura.
Um dia — talvez seis anos depois da morte da jovem sultana — Mohamed falou com Cadiga:
— Espero que saibas cuidar das minhas filhas como se tuas fossem!
Cadiga respondeu humildemente, mas convicta:
— Assim o juro, Senhor!
O rei tornou:
— Daqui por diante, começarão a ver despontar a vida à sua volta. Como disseram os astrólogos, terei de cuidar delas. Portanto, para as afastar de perigos desconhecidos, levá-las-ei contigo para um castelo longe do bulício, mais para junto do mar, onde os olhares se possam alongar sem nada distinguir e onde escutem, apenas, os murmúrios do oceano!
Assim fez o rei. Numa torre junto ao mar ficaram vivendo, encerradas, embora cheias de riquezas, as três jovens mouras e a velha Cadiga.
O tempo continuou rodando. De meninas que eram, as princesas tornaram-se mulheres. A mais velha era intrépida, curiosa, amiga de averiguar os porquês das coisas, porte distinto, olhar profundo, insinuante.
A do meio era a mais bela. De beleza invulgar, assemelhava-se muito a sua mãe. Apaixonada por tudo quanto era belo, amava as flores, as jóias, os perfumes caros.
A mais jovem das princesas era tímida, doce e extremamente sensível. Passava largas horas contemplando o mar, as estrelas, o luar batendo nas águas irrequietas e o pôr do Sol, como balão vermelho a cair do horizonte sobre o oceano imenso.
Assim correram os anos numa aparência tranquila, sob a guarda da velha Cadiga, a quem Mohamed havia confiado a educação das princesas.
Um dia, porém, estando Zaida, a princesa mais velha, a uma janela da torre, descobriu uma galera a aproximar-se da praia. Tal facto nunca acontecia, porque havia ordem de não aportar ali nenhuma embarcação. O caso despertou-lhe a curiosidade. Chamou as irmãs e espreitaram. Viram então que uma espécie de ponte era lançada e um grupo de soldados mouros deixava em terra vários cativos cristãos que eram esperados por outros soldados mouros. Entre os cativos, três se destacavam pela sua gritante juventude, nobreza de feições, e pela maneira altiva como caminhavam. Vinham bem vestidos. Tão absortas estavam as princesas na contemplação dos três jovens guerreiros que nem deram pela aproximação de Cadiga, que lhes perguntou:
— Que admirais?
Zaida respondeu, resoluta:
— Nunca vi porte tão altivo!
Cadiga elucidou:
— São cativos cristãos. São nobres guerreiros portugueses.
— Como o sabes?
— Porque também nasci em Portugal. Conheço bem os da minha raça.
— E que fazem eles?
— Quando não se batem num campo de batalha empregam o tempo em justas, torneios, serenatas...
As princesas aproximaram-se mais. A do meio indagou:
— Porque não nos dissestes há mais tempo que sabias coisas tão maravilhosas?
— Porque receava falar dos meus dias de rapariga, de quando era nova como as minhas queridas princesas.
Zaida, a mais velha, pediu:
— Cadiga, de hoje em diante vais contar-nos o que se passa na tua terra e o que fazem estes jovens cristãos.
— Contarei. No entanto… talvez seja imprudência...
Todavia, Cadiga ia renovando dia após dia a história da sua juventude em terras cristãs de um Portugal que havia nascido da audácia e bravura de um rei cristão chamado Afonso Henriques, que se batia ainda contra os Mouros.
Quando a astuciosa Cadiga achou que as suas meninas estavam já demasiadamente interessadas pelos costumes dos jovens guerreiros cristãos, contando-lhes façanhas dos seus tios, irmãos de sua mãe, dirigiu-se ao rei mouro para continuar a obter a sua confiança.
— Senhor! Penso que as princesas estão já em idade de casar. Não desejaria ficar sozinha com a responsabilidade de cuidar do seu futuro.
O rei interrogou:
— E o que sugeres?
— Que nos mandes para junto de ti e tu próprio possas também vigiá-las.
— Concordo. Do lado norte deste palácio existe um torreão que as isolará. Mandarei decorá-lo faustosamente para as receber, e eu próprio as irei buscar.
Cadiga retirou-se. Voltou à torre à beira do oceano onde estavam encerradas as princesas e deu-lhes a boa nova:
— Mahomed virá aqui em pessoa para as transportar para junto do seu palácio, na Xelb.
Rejubilaram as princesas mais velhas. No entanto, a mais nova comentou timidamente:
— Como vou ter saudades do mar!
Quando o rei chegou e admirou as jovens que não via há três anos, ficou perplexo. Eram lindas, as suas filhas! Decerto poderiam escolher os melhores partidos na hierarquia árabe. Mas porque teriam de se esconder, conforme os astrólogos haviam dito? Porquê?... Enquanto se interrogava em silêncio, o rei contemplava as princesas com orgulho. Preparou o seu regresso ao palácio e ordenou que no caminho a percorrer ninguém pudesse transitar, além de quatro cavaleiros da sua guarda, comandando um esquadrão de cavalaria negra. Todas as portas e janelas teriam de conservar-se fechadas à aproximação das princesas. E logo que tudo o previsto ficou em ordem, pôs-se em marcha.
Cobertas por um véu espesso, as princesas cavalgavam junto ao rei, em cavalos de pura raça ajaezados de ouro e sedas. Quando a luzida cavalgada estava já próximo do termo de viagem, eis que surgiu de súbito, na estrada, um corpo de soldados que vinham das obras da ribeira e escoltavam os prisioneiros que ali tinham ido trabalhar. A surpresa tomou os régios caminhantes, mas já não havia tempo para evitar o encontro. À voz de comando de um dos maiores da escolta real, os soldados caíram por terra, pondo a cara junto ao chão para não olharem as princesas. Porém, entre os cativos, três deles não seguiram as ordens recebidas, caminhando altivos, de olhos postos na faustosa cavalgada. As princesas, reconhecendo neles os cativos cristãos da galera, tomaram-se de tamanha alegria que tiraram os véus do rosto. Então, colérico, o rei mouro desembainhou a adaga e ia castigar os insolentes quando as princesas rodearam o pai pedindo demência. Até a tímida Zoraida — a princesa mais nova — esqueceu a sua reserva habitual para interceder pelos prisioneiros. Então Mohamed, com a adaga em riste, clamou, primeiro para as princesas, depois para o comandante do pelotão dos cativos:
— Cubram os rostos! Perdoo-lhes a vida, mas castigarei a sua audácia! Levem-nos para uma prisão longe daqui e dêem-lhes os trabalhos mais duros!
E recolhendo a adaga, deu sinal para se continuar a jornada.
Mais seis meses passaram. As princesas, embora rodeadas de luxo, mostravam-se cada vez mais tristes. Pouco comiam, já não sabiam rir nem folgar. Certa vez, Cadiga perguntou docemente:
— Porque deixei de vos ouvir tocar e cantar?
Uma das jovens respondeu:
— Perdemos o gosto pela música!
Matreiramente, a velha aia sorriu e disse como que despreocupada:
— Pois, minhas filhas, não falaríeis assim se pudésseis ouvir a música que eu ouvi ontem quando saí para ir buscar os vossos vestidos novos!
Zaida, a mais curiosa, perguntou logo:
— E onde ouviste essa música?
Junto duma prisão. Estavam tocando e cantando três jovens cavaleiros cativos. Aqueles que há meses encontrámos na estrada.
A princesa do meio e que se distanciava apenas vinte minutos de vida da irmã mais nova, perguntou:
— E onde os viste?
— Não posso dizer-vos! Mas porque estais tão ansiosa e ruborizada?
A jovem voltou o rosto.
— Por nada... Queria apenas saber... Mas conta-nos como os descobriste..
— Foi por acaso. Ia a passar perto e vi os três cavaleiros descansando do rude trabalho diário. Um deles tocava guitarra. O outro cantava. E um terceiro ouvia-os, de olhar perdido no horizonte.
Zaida, sempre audaciosa, pediu:
— Cadiga! Acharias possível que pudéssemos ver e ouvir esses três cavaleiros?
Cadiga mostrou-se horrorizada.
— Que estais dizendo? Vosso pai matar-nos-ia se viesse a saber! E embora esses cavaleiros sejam jovens, belos, educados, não devemos esquecer que são cristãos, e por isso inimigos da nossa fé!
As princesas rodearam a velha ama, pedindo, suplicando. Cadiga mostrava-se inflexível. Por fim pareceu ceder. Disse, como a pensar consigo própria:
— Bem... Daí... com uma bolsa bem recheada... talvez fosse fácil. Os prisioneiros estão a cargo de Hussein Babá. E ele é meu conhecido e muito ambicioso. Vou visitá-lo.
E foi mesmo. Hussein recebeu-a a princípio com desconfiança, mas depois foi cedendo; e ficou assente que os três cativos fossem enviados para um trabalho próximo do pavilhão norte, onde as princesas viviam.
A tarde começava a cair quando um cântico viril e simultaneamente doce ecoou no espaço. As princesas saltaram dos coxins onde estavam sentadas. Eram eles! Eram os três cavaleiros portugueses! O cântico exprimia uma petição de amor. Quando terminou, as princesas responderam, também cantando. E desde esse dia, Hussein e Cadiga esqueceram-se de que as princesas não deviam ver nem falar aos cativos portugueses.
O amor nasceu violento. Mas um dia os cavaleiros cristãos não apareceram à entrevista. Aflitas, as princesas bem procuraram descobrir no caminho do vale os seus jovens amigos. Foram ter com Cadiga. Choraram. Imploraram-lhe que fosse descobrir a causa daquela ausência. E Cadiga foi. Regressou breve. Parecia compungida. Logo as princesas correram ao seu encontro.
— Que se passa?
Tirando de cada silêncio uma emoção, a ardilosa Cadiga respondeu:
— Acaba de chegar de Portugal o resgate dos prisioneiros. Foi o próprio D. Afonso Henriques quem o mandou.
— E então?
— Então... a estas horas os cavaleiros cristãos devem estar a caminho da fronteira!
Brotaram lágrimas dos olhos das princesas. Zoraida revoltou-se:
— Não nos querem! Podiam, ao menos, dizer-nos adeus!
Cadiga insinuou:
— Adeus? É difícil dizê-lo a quem se ama...
Zaida, a mais impetuosa, agarrou por um braço a velha ama. O brilho dos seus olhos era intenso. A sua voz um tanto ansiosa.
— Cadiga! Pensas que eles já terão saído dos nossos domínios?
— Creio que não. Estas coisas demoram sempre uns dias a certarem-se.
— E onde julgas que eles estarão agora?
— Talvez dentro da torre, até que tudo esteja em ordem.
— Pois procura-os e fala-lhes. Trata de saber quais são as suas intenções a nosso respeito.
Cadiga, que já havia previamente falado com os cavaleiros da sua pátria, fingiu sair do pavilhão. Horas depois voltou. Trazia uma expressão indignada. Perguntaram as princesas:
— Que conseguiste saber?
A voz da ama soou alterada:
— Minhas filhas, venho furiosa!
— Eles já não nos querem?
— Não é isso! Eles amam as minhas pobres princesas, mas...
— Mas o quê?
— Atreveram-se a propor-me que as aconselhasse a fugirem com eles para as suas terras! Lá casariam com eles dentro da fé cristã! Calculem o desaforo!
E cobriu o rosto com as mãos, fingindo-se presa de violento acesso de indignação. Houve um silêncio. As princesas entreolharam-se aturdidas. Mas a mais ousada, Zaida, aproximou-se da velha ama e disse-lhe em voz baixa:
— Cadiga! Sempre falaste da tua terra e da tua gente com entusiasmo. Porque receias agora tanto?
A velha ama destapou o rosto. Fitou a jovem. E respondeu:
— Minhas filhas... vi-as nascer aqui... vosso pai é Mohamed... enquanto que eu... sou uma renegada!
Zaida voltou a fazer mais perguntas:
— Diz-me: achas impossível fugirmos daqui?
Cadiga arregalou os olhos. Respondeu:
— Bem... Impossível… impossível não é! Hussein, que tantas vezes nos tem ajudado, por outra bolsa bem recheada... talvez nos prepare uns bons cavalos e afaste a guarda do rei, que fica sempre vigilante. E agora que os cavaleiros também já podem usar o seu dinheiro… não haverá impossíveis.
— Então porque esperas?
— Mas… serão capazes de deixar vosso pai e de renunciar à religião dos vossos antepassados?
Zoraida, receando qualquer hesitação, apressou-se a declarar:
— Nossa mãe era cristã. Tu também o eras. Estou disposta a converter-me, segura de que é esse também o desejo de minhas irmãs.
Cadiga tapou o rosto, que se cobriu de lágrimas. Zoraida, a mais tímida, abraçou-a:
— Porque choras? Achas que vamos proceder mal? Então… eu fico...
Cadiga mostrou a sua expressão feliz:
— Minhas queridas princesas, choro de alegria! A fé cristã foi a primeira religião que vossa mãe e eu professámos, e a única que guardámos dentro do nosso coração. No seu leito de morte, bem a vi chorar pela sua fraqueza. Então prometi-lhe cuidar das vossas almas e não ter deslizes enquanto não vos levasse pelo caminho direito da nossa fé! Fujamos, pois. Digo-vos que os vossos cavaleiros têm já tudo tratado. Esperam as suas damas para as levarem para o país deles, que é meu também. Tudo está preparado, princesas! Esta tarde, ao pôr do Sol... deixaremos para sempre este palácio! É esse, na verdade, o vosso desejo?
— Sim! — disseram duas das princesas.
Timidamente, a mais nova decidiu:
— Eu fico! Não conseguirei deixar o meu pai por um homem que não é dos nossos!
Cadiga insistiu:
— Mas é do sangue da vossa mãe!
— Elas que partam! Eu tenho medo da aventura!
E conta a lenda que, na verdade, a princesa tímida recusou-se a partir. Chorava sozinha o abandono em que ficara, mas faltou-lhe valor para seguir as irmãs. Morreu cedo e triste.
Quanto ao rei Mohamed, ia-o levando a morte quando soube da fuga da velha Cadiga e de suas duas filhas. Porém, o tempo cura muitos males, e o rei mouro cedo se resignou. Diz a gente da terra que Zoraida, a princesinha tímida, foi sepultada junto do palácio, sob o torreão norte. E ainda hoje, no local onde o seu corpo repousa, surgem certos lamentos a horas mortas, quando o luar se esconde...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 267-274
- Place of collection
- Silves, SILVES, FARO