APL 2855 Lenda da Moura da Ponte de Chaves
Estava a noite calma. Havia luar. Boa disposição. Esplêndida companhia. Apetecia esquecer as agruras da vida e mirar a paisagem discreta e serena vista do lado da ponte sobre o rio Tâmega, junto a Chaves. Mas o grupo que me acompanhava era bulhento. Viera para se divertir. Não queria meditações. Éramos quatro pessoas de Lisboa, duas do Porto e apenas uma de Chaves. Corria um ventinho fresco. Encostei-me ao peitoril de ferro que a falta de espaço actual fizera que viesse substituir as antigas guardas da ponte. Isolei-me das brincadeiras dos meus companheiros. Foi então que a tal pessoa nascida em Chaves se aproximou de mim, perguntando-me entre irónica e amiga:
— Está à espera da moura do arco da ponte?
Olhei-a sorrindo.
— Existe aqui uma moura encantada?
— Sim. Mas é sob o terceiro arco e não no sétimo, sobre o qual está debruçado.
Contei os arcos. Estava, efectivamente, sobre o sétimo arco. Gracejei:
— Talvez ela venha ter comigo!
— Engana-se; só se mostrou uma vez; mas o cavaleiro não teve coragem para a desencantar! E ela ali ficou para sempre.
— Como sabe que ficou, se a não vêem?
— Ouvimo-la. Surge nas vésperas de S. João, nuns lamentos que fazem dó.
O grupo recomeçara a marcha. Olhei o terceiro arco da ponte sobre o rio Tâmega e pedi:
— Conte-me a lenda da Moura da Ponte de Chaves!
— Será capaz de a publicar?
— Prometo!
— E não dirá que fui eu que a contei?
— Tem a minha palavra!
E enquanto os outros riam, acordando os moradores da Rua Direita, eu ia ouvindo uma voz melodiosa que começou assim...
Há muito tempo, quando os mouros reocuparam Chaves, era alcaide do castelo um guerreiro que tinha um filho a quem adorava e uma sobrinha muito bela, que fizera noiva do filho. A jovem deixava-se amar, pois não encontrara entre os da sua raça quem lhe despertasse o coração. Um dia, porém...
A algazarra dos cristãos já se ouvia do lado de lá da ponte. O alcaide chamou o filho:
— Abed, como se explica o que está acontecendo? Não me disseste que o rei Afonso andava longe daqui?
O jovem guerreiro olhou o pai com frieza e afirmou:
— O ataque de que somos alvo não vem da parte do rei Afonso.
— Não é dos cristãos portugueses?
— É, sim.
— Então?
— Mas não foi feito por ordem do rei português.
— Quem o faz então?
— Dois irmãos que têm andado aqui.
— Quem são eles?
— Não sei bem. Chamam-lhe os irmãos Lopes.
— Pois preparemo-nos para os apanhar!
— Assim faremos.
O tilintar das armas ouviu-se ainda mais perto. Abed gritou:
— Fuja, meu pai! Eu os receberei!
Mas o alcaide, não querendo deixar o filho só com o inimigo, preparou-se para combater, esquecendo-se da segurança da jovem sobrinha. O burburinho era enorme. Para cá e para lá corriam os mouros na ânsia de tapar as abertas feitas pelas espadas cristãs. As mulheres choravam, tentando fugir como podiam e levando alguns haveres e os filhos pequenos. Porém, a jovem moura sobrinha do alcaide não fugiu. Para ela, a vida nunca mais tivera verdadeiro significado desde que num recontro com homens da sua fé e do seu sangue ficara subitamente órfã. Desde então, considerava a vida sem sentido. A ambição dos homens pela glória de mandar enojava-a. Passavam por ela homens e mulheres, atropelando-a quase, tão vagaroso era o seu andar. Nem sabia bem o que ia fazer. Sentia a imperiosa força da sua vontade a impeli-la para a direcção tomada. Se ali estivesse Abed, decerto a impediria de se expor assim. Mas ele, como o alcaide e os outros homens válidos, estava assoberbado com a defesa do castelo.
A jovem moura parou à vista do castelo. Os cristãos haviam já penetrado por uma brecha e os mouros acorreram ao local mais desprotegido. Entre os cristãos, destacava-se um guerreiro que, apesar de tudo, suscitava a admiração da jovem moura. Alto, bem proporcionado, de extraordinária destreza, esgrimia com tal fúria que a sua espada nunca caía em vão. Em breve os cristãos estavam senhores dessa ala direita. Na esquerda, porém, a luta continuava indecisa. Foi então que o guerreiro alto e bem proporcionado, depois de colocar os seus homens de forma a garantirem o lugar conquistado, se encaminhou para a ala esquerda do castelo. Mas o seu olhar caiu sobre a jovem moura que o fitava numa calma quase perturbante. Ele suspendeu o combate e encaminhou-se para ela.
— Que faz aqui sozinha uma jovem tão formosa?
Ela não sorriu. Mas respondeu:
— Pergunto a mim mesma para que hão-de os homens lutar entre si, como se fossem feras!
Ele tentou gracejar.
— Bela pergunta, mas feita em má altura.
— Não sei de melhor ocasião para a fazer.
Ele encolheu os ombros.
— Senhora, é difícil discutir com mulheres qualquer assunto, e muito menos assuntos de homens!
— Porquê, de homens?
— Porque as coisas da guerra só a nós dizem respeito.
— Sim? E porquê?
— Porque nela jogamos a vida.
— E nós? Não a jogamos também, sem sequer a promovermos nem lucrarmos com as vossas vitórias? Foi a guerra que me tornou órfã.
— Sois órfã?
— De pai e mãe!
— Lamento. Estais aqui sozinha?
— Vivo com meu tio, o alcaide deste castelo.
Ouvindo falar no alcaide, o guerreiro cristão compreendeu que o momento não era para jogo de palavras. Fitou a sua interlocutora e gritou para um dos homens:
— Ramiro! Leva esta jovem para a minha tenda. A tua vida responde pela dela!
E sem mais olhar para a moura, correu para o lado donde a luta parecia mais acesa.
O castelo foi tomado pelos cristãos e feita a sua oferta a D. Afonso Henriques pelos seus conquistadores. Mas não foram entregues certos despojos de guerra com os quais o rei português premiou tão grande feito. Também não se efectuou a troca da sobrinha do ex-alcaide por certos prisioneiros de guerra. Lado a lado, como num delicioso sonho de amor, a jovem moura vivia feliz com o cavaleiro cristão que um dia a mandara raptar. Encontrara uma razão para viver. Porém Abed não lhes perdoou. Recomposto de um grave ferimento recebido, conseguiu voltar a Chaves disfarçado de mendigo. Como a sua bem-amada, porém, estivesse sempre bem rodeada, esperou-a certa vez sobre a ponte, quando ela e duas damas cristãs regressavam de um passeio. Então caminhou ao seu encontro e pediu-lhe esmola. A jovem moura estendeu a mão para o pedinte. E foi nesse momento que Abed lhe recitou a frase fatídica, olhando-a bem nos olhos:
— Para sempre ficarás encantada sob este terceiro arco da ponte que pisamos. Só o amor de um cavaleiro cristão, não este que te roubou, poderá salvar-te. Mas esse cavaleiro não chegará jamais!
Soou um grito estridente de aflição. A jovem reconhecera Abed no mendigo. Mas nada mais pôde dizer. Como fumo, ela desaparecera no espaço e Abed fugira antes de ser descoberto. Do caso, só as damas cristãs puderam falar.
Deu urros de furor o guerreiro português, vendo-se sem a sua amada. Mas a jovem moura não mais apareceu. Levava o cavaleiro horas seguidas sobre a ponte, na ânsia de ver a moura encantada. Distribuiu dinheiro para que lhe trouxessem Abed vivo, no intuito de o obrigar a desencantar a sobrinha do ex-alcaide. Mas tudo foi em vão. E a sua dor foi-se empedernindo, até que morreu sem tornar a vê-la.
Mas o povo continuava a recordar o estranho acontecimento. O povo, que todos os anos ouvia suspiros e lamentos de uma jovem encantada, pedindo ao transeunte a esmola de um beijo libertador...
E diz ainda o povo...
Certa noite, um cavaleiro cristão passou por ali. Era noite de S. João. Havia luar. Ouviu murmúrios. Desceu do cavalo e perguntou:
— Quem está aí?
Uma voz doce respondeu:
— Preciso que me ajudes!
— Onde estás? Não te vejo!
— Aqui em baixo, na ponte, sob o terceiro arco!
O cavaleiro debruçou-se. Achou estranha aquela voz de mulher naquele lugar insólito, a uma hora daquelas.
— Estás ferida?
— Não. Sou moura encantada.
— E que devo fazer?
— Vem ter comigo!
— Mas eu não te vejo!
— Se desceres, ver-me-ás.
— E depois?
— Terás de beijar-me. É tudo!
— Beijar-te?...
Houve um silêncio, O cavaleiro olhou o crucifixo que trazia no fio de ouro colocado ao pescoço. Pensou um momento. Ouviu como em surdina a voz da mãe a contar-lhe contos de fadas e de princesas mouras, quando ele era pequeno. Relembrou o feito de antigos cavaleiros que perderam a alma por se entregarem ao feitiço das mouras encantadas. E montou no cavalo, e galopou para não mais passar ali à meia-noite...
Desde essa hora, a moura do terceiro arco da ponte ficou ali encantada para sempre. Somente os seus queixumes, os seus soluços magoados se elevam em noites de S. João, a atestar a sua eterna presença, como castigo de ter amado um cavaleiro cristão.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 383-387
- Place of collection
- CHAVES, VILA REAL