APL 3002 Lenda da Galanteria de D. Rodrigo
Esta lenda é de origem algarvia. Nasceu nos arredores de Loulé, quase junto à vila, num terreno outrora despovoado que hoje se chama Cabeço do Mestre.
Nesse tempo reinava em Portugal D. Afonso III, e a conquista do Algarve era o sonho máximo. D. Paio Peres Correia, mestre de Sant’Iago, reunindo a fina flor dos cavaleiros lusos levava por diante o sonho do seu rei. E entre os cavaleiros às suas ordens — diz a lenda — encontrava-se um tal D. Rodrigo de Mascarenhas, conhecido pela sua galanteria para com as damas e especial benevolência para com os enamorados.
Castelo após castelo iam caindo, numa entrega total. O exército português tinha chegado às portas de Loulé. Tomara posições num cabeço fronteiro. O combate travara-se logo no primeiro dia, num local próximo do castelo.
Dois dias durou o combate. Dois dias apenas. Os mouros capitularam e os cavaleiros cristãos entraram na fortaleza, fazendo prisioneiros. Como não convinha que os prisioneiros ali ficassem, D. Paio ordenou a D. Rodrigo que conduzisse os cativos a lugar mais seguro.
Escoltados por uma pequena hoste, foram os prisioneiros levados de Loulé, através de terrenos já conquistados. Pelo caminho, D. Rodrigo notou entre os cativos um jovem de semblante simpático, mas terrivelmente triste. Vinha ricamente vestido. D. Rodrigo esperou o momento de fazerem alto e, acercando-se dele, perguntou-lhe:
— Porque estás tão triste? Na vida guerreira, ou se vence ou se é vencido. Quanto à tua honra, fica descansado, porque está salva. Vencemos, mas foi necessário quebrar uma resistência valorosa.
O jovem mouro suspirou fundo, mas não respondeu. D. Rodrigo tornou:
— Não julgues que só conto vitórias na minha carreira! És novo e talvez a vida venha ainda a sorrir-te.
O mouro abanou a cabeça. A sua voz soou dolente:
— Senhor, não lamento o meu cativeiro, mas sim a morte das minhas ilusões. O meu nome é Abindarráez e sou da raça dos Abencerragens. Durante a minha infância fui criado em Cártama, vivendo em casa do alcaide da cidade. Esse alcaide tem uma filha, Jarifa, com quem brinquei em pequeno. Os anos passaram, e Jarifa tornou-se uma doce e formosíssima donzela. O nosso carinho de meninos transformou-se numa forte paixão. E quando supúnhamos chegada a hora da nossa união poder realizar-se, fui mandado para aqui, por ordem do meu rei e a pedido do pai de Jarifa, que não deseja ver-me casado com a filha. Ora, precisamente há dois dias, chegou aqui um mensageiro de Jarifa, dizendo-me da sua parte que ela me esperava em Silves, para nos casarmos em segredo. Deves calcular como rejubilei. Era, finalmente, a realização do meu grande sonho. A nossa separação ia terminar. Vesti o meu traje mais rico, escolhi o meu melhor cavalo, e dispunha-me a sair para Silves quando chegou a notícia de que as vossas tropas estavam às portas de Loulé. Seguiu-se a luta e a nossa derrota. E agora aqui vou, sabe Alá para onde, enquanto Jarifa se encontra em perigo em Silves e sem poder voltar para casa do pai! Bem vês, senhor, como me sinto morrer! Se ao menos a pudesse salvar!
Emocionado, D. Rodrigo guardou silêncio após a narração do jovem mouro. Por fim, disse-lhe:
— Abindarráez, tudo na vida pode ser reparado quando Deus quer! Para quê, pois, esse desespero?
O mouro olhou intrigado o cavaleiro português. Mediu-lhe a expressão benevolente. Reparou melhor no seu porte altivo mas acolhedor. Murmurou:
— Como queres que eu espere algo de bom, se a minha situação é, na verdade, desesperada?
O cavaleiro sorriu.
— Assim pensas?... Eu não!
— Não? E porquê, podes dizer-me?
— Sim, vou dizer-to. És de sangue nobre e, apesar das nossas divergências de religião, sei o que um nobre deve à sua honra. Pois bem: vou dar-te liberdade para que vás a Silves ao encontro da tua noiva, enquanto é tempo. Depois, regressareis ambos ao nosso campo, a entregar-vos como cativos. Queres?
Os olhos do jovem mouro brilharam de alegria:
— Pois... és capaz de acreditar em mim?
— Inteiramente.
— Por Alá te juro que voltaremos, a menos que encontre a morte pelo caminho!
D. Rodrigo, como resposta, deu ordem de continuarem a marcha e de entregarem ao jovem mouro o seu cavalo.
Abindarráez montou no cavalo, que relinchou de alegria ao reconhecer o dono. E, com uma saudação reconhecida a D. Rodrigo, galopou a caminho de Silves.
No pátio privativo de Aben-Afan, no castelo de Silves, Jarifa esperava com ansiedade o seu bem-amado. Já haviam chegado ali os rumores da batalha perdida e do perigo eminente em que estava toda a moirama de Al-Garb.
Abindarráez e Jarifa caíram nos braços um do outro. Ela murmurou:
— Começava a desesperar!
Ele beijou-lhe os cabelos.
— Querida, se soubesses quanto sofri! Mas agora estamos juntos e vamos casar. Mas não será aqui.
— Onde, então?
— Fiquei prisioneiro. Não penses que fugi à luta, pois jamais o faria. Porém encontrei, como chefe dos que nos levam nem sei para onde um homem extraordinário que se compadeceu de mim e de ti, ao ponto de me deixar vir buscar-te! Silves em breve será o lugar mais aceso desta guerra e eu temia pela tua sorte!
Jarifa ficou pensativa. Abindarráez voltou a acariciá-la. E perguntou, levantando-lhe o queixo para lhe ver bem os olhos:
— Querida! Não queres ser a esposa de um cativo? Pois liberto-te da nossa jura!
Ela escondeu o seu rosto nopeito do bem-amado, censurando-o:
— Como pudeste supor semelhante coisa! Estava apenas a pensar se seria possível voltares para Cártama.
Ele apressou-se a informá-la:
— Jamais cometeria essa vileza! O homem que permitiu que viesse buscar-te é responsável por mim. Pagaria com a vida a sua cortesia. Nunca lhe corresponderia de tal modo!
Jarifa acariciou-lhe uma das mãos.
— Tens razão, perdoa-me! Partiremos já, antes que Aben-Afan te queira ver.
E montando o mesmo cavalo, Jarifa e o noivo voltaram para o local previamente combinado entre Abindarráez e D. Rodrigo.
Chegados ao acampamento cristão, os jovens mouros foram recebidos por D. Rodrigo. Houve um momento de admiração entre os cavaleiros portugueses. A beleza extraordinária de Jarifa, o encanto dos seus gestos e da sua voz deixavam a todos boquiabertos. O porte do jovem Abencerragem tornava-o simpático aos seus carcereiros. Servindo-se da influência dos alcaides depostos, D. Rodrigo pediu a estes a clemência do pai de Jarifa e o seu consentimento no enlace dos dois enamorados. E o perdão foi concedido aos prisioneiros.
Passeavam eles juntos, quando D. Rodrigo veio anunciar a boa nova.
— Chegaram cartas do meu rei e do vosso. O meu, concede-vos o perdão. O vosso, falou com o pai de Jarifa, que perdoa também a sua fuga e espera-vos para celebrar umas bodas dignas de vós!
Jarifa tomou a mão de D. Rodrigo, num arrebatamento.
— Senhor, senhor, como poderei agradecer-te?
Galantemente, D. Rodrigo retorquiu:
— Sorrindo, senhora! Tendes o mais belo sorriso do mundo!
Abindarráez, com os olhos brilhantes de lágrimas que não queria deixar correr, colocou a sua mão sobre a de D. Rodrigo, exclamando:
— Se precisares da minha vida, podes contar com ela!
Emocionado também, D. Rodrigo disfarçou essa emoção, continuando com voz segura:
— Ide buscar o que vos pertence, enquanto alguns dos meus homens preparam cavalos e escolta. Não desejo que vos aconteça nenhum mal. Adeus, sede felizes… e até um dia!
E, sem dar tempo a mais agradecimentos, D. Rodrigo retirou-se do pátio.
Semanas depois do jovem par ter partido, chegaram uns emissários de Abindarráez com grande quantia em dinheiro e dois formosos cavalos brancos.
Rodrigo olhou os emissários, sorrindo. Depois, falou-lhes assim:
— Levai essas prendas e dizei a Abindarráez que não se amofine por eu não poder aceitá-las. Acrescentai que nada me devem, pois não estou habituado a roubar damas, senão a servi-las e honrá-las!
— Recusais então o resgate?
— Não há resgate. Nunca o pedi. Levai antes as minhas homenagens à mulher mais bela que até hoje vi, e ao jovem de porte altivo e sangue nobre, que entraram fundo no meu coração.
E os emissários partiram, perplexos.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 35-38
- Place of collection
- LOULÉ, FARO