APL 1568 A Moura de Salir

 O governador do castelo de Salir tinha uma filha, que era o seu enlevo. Não havia nos arredores mulher mais gentil. No seu olhar percebia-se a inocência dos anjos.

Era a formosa moura em extremo afecta às suas crenças e odiava de morte os nazarenos. Todas as noites subia nos muros do castelo e no mais alto elevava ao céu os seus formosos olhos e implorava de Allah as bênçãos para o seu povo. Conservava-se voltada para o Oriente horas esquecidas em profunda meditação nas memórias sagradas de Meca. Seu pai depositava nela tanta confiança que, muitas vezes, recolhia ao quarto de dormir deixando nos muros do castelo a sua virtuosa filha.
 Na noite em que o conselho formado pelos sarracenos resolveu desamparar precipitadamente o castelo, mandou o governador avisas sua filha que escondesse à pressa os tesouros na cisterna e que acompanhasse até o Serro da Pena as mulheres mouras, que safam adiante. Infelizmente, ocupados todos em esconder os seus tesouros, a moura gentil não recebeu o aviso paterno; e enquanto todos saíam dali, na calada da noite, sem fazer o mais pequeno ruído, a filha do governador fazia oração no mais alto muro do castelo.
 Quando o governador chegou às alturas do Serro da Pena e não encontrou entre as agarenas a sua filha querida, teve a profunda compreensão da sua desgraça: ficara sobre os muros em oração porque não recebera o seu aviso!
 Correu por sobre o Serro da Pena e foi colocar-se no ponto de onde podia ver os muros. Nesse momento subia a lua no horizonte e o velho distinguiu lá ao longe, sobre o castelo, um vulto de mulher: era a filha!
 Chamá-la!, não ouviria. Ir buscá-la!, impossível. Então o velho num extremo de dor disse: Antes encantada do que desonrada!
 E voltando-se para o Oriente, e em seguida para o castelo, ergueu ao céu os olhos, fez com a mão direita uns sinais cabalísticos, traçou com o dedo indicador o signo Samão sobre o vulto da filha e entoou uns cânticos místicos e umas palavras incompreensíveis.., até que caíu no chão sem sentidos.
 Já a este tempo ele estava cercado dos seus soldados, que correram a ampará-lo nos braços. Transportaram-no para o algueirão, onde o pobre velho abriu os olhos no centro do seus fiéis soldados e das formosas filhas de Islam. Então correram-lhe as lágrimas, lastimando-se da sua desgraça!
 Pobre pai!
 Foi a gentil morna chorada por muito tempo não só pelo pai, como pelas suas amigas e muitas vezes o pobre velho exclamava:
 — Não chorem, não chorem! Se Allah quiser, em pouco tempo a veremos dentro do castelo e a minha filha será salva.
 Daí até hoje tem a pobre moura esperado que a redimam do seu cativeiro, e ainda lá se conserva nessa doce esperança e se conservará por todos os séculos.
 Em todas as noites aparece a encantada sobre os muros do castelo. Muita gente a tem visto e ouvido lamentar a sua triste sorte. Há ocasiões, quando as noites correm agrestes, e o vento sibila por entre as franças das árvores, produzindo notas musicais e formando cânticos repassados de tristeza horrível, que se nos parece assistir ao desempenho real de uma tristíssima canção.

Source
OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve Loule, Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.107-109
Place of collection
Salir, LOULÉ, FARO
Narrative
When
19 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography