APL 1560 Lenda da Misarela
Um fidalgo duriense (há quem diga um criminoso) fugia desalmadamente aos beleguins do rei que injustamente o perseguiam e acusavam de traições. Quando chegou à Misarela o Regavão ia de monte a monte, medonhamente tempestuoso pelas chuvadas invernais. Vendo-se acossado e sem poder passar a corrente pediu a intervenção divina e de todos os santos que conhecia. Em vão. Não conseguia prosseguir a fuga. Lembrou-se então de invocar o poder do diabo em gritos desesperados:
-“Satanás! Satanás!
Passa-me que te dou a alma!”
E o diabo, aparecendo num estarrinco do trovão, respondeu:
-“Passarás, passarás, sem olhar para trás!”
No mesmo instante estendeu-se à sua frente uma ponte que o fidalgo (ou criminoso) atravessou. Mal pôs o pé na encosta fronteira, atrás de si, a ponte ruía com enormíssimo estrondo no abismo vertiginoso.
E assim fugiu à ira do monarca o tal fidalgo (ou criminoso) que decidira exilarse em Barroso. Por aí viveu muitos anos ainda, mas sempre roído de remorsos e angústias por ter dado a alma ao diabo.
Quando chegou a hora da morte mandou chamou o padre para se confessar. E contou-lhe o seu pecado. O padre absolveu-o, depois de exigir que confessasse toda a verdade e pensou que talvez fosse possível refazer a ponte sem grandes sacrifícios...
Tomou a caldeirinha da água benta e o hissope (há quem diga que foi uma laranja onde meteu água benta depois de lhe tirar do interior os favos por um orifício) e dirigiu-se uma noite ao local indicado pelo moribundo, invocando o diabo:
-“Satanás! Satanás!
Passa-me que te dou a alma!”
E repetiu-se a cena: o diabo (ao ribombar o trovão) apareceu e respondeu-lhe:
-“Passarás, passarás, sem olhar para trás!”
Num ápice reaparece entre dois penedões enormes a ponte. O padre começou a atravessar aspergindo água benta sobre a construção! (Também se diz que largou a laranja a rolar pela ponte! Eduardo Noronha, na sua obra “A marqueza de Chaves” diz que o padre aspergiu água benta da caldeirinha com um ramo de alecrim). E assim ficou benzida a ponte! Nesse mesmo instante o diabo desapareceu como aparecera deixando no ar fortíssimo cheiro a enxofre, pez e incenso ( Noronha diz enxofre e salitre).., mas a ponte ficou de pé. Por isso há quem lhe chame Ponte do Diabo e Ponte do Salvador, mas para o nosso povo é a Ponte de Misarela, lugar mítico, mágico e sagrado.
As mulheres grávidas, com medo de abortar, dirigiam-se à ponte ao anoitecer e esperavam pacientemente que se verificassem duas coisas: que não passasse animal algum depois do pôr do Sol e que a primeira pessoa a passar se dispusesse a baptizar o feto que trazia na barriga. Se tais condições se verificassem, a pessoa passante colheria das profundezas, com uma vasilha segura por uma corda, um pouco de água e, logo ali, regava o ventre da mulher desenhando cruzes e pronunciando ao mesmo tempo o ensalmo:
“Eu te baptizo pelo poder de Deus e da Virgem Maria!
Padre-Nosso e Avé-Maria!
Se fores meninha (menina)
Serás Senhorinha;
Se fores rapaz
Serás Gervás (Gervásio)”.
A verdade é que são ainda muitas as pessoas que carregam esses chamadouros, saídos das noites passadas na ponte da Misarela!
A ponte da Misarela não deve ser conhecida apenas pela sua lenda nem por ser um sítio de beleza admirável ou simples cartaz turístico. É um local histórico que nos honra como povo amante da liberdade e cioso do seu sagrado chão.
As numerosas forças napoleónicas foram aqui acossadas, na muito tempestosa noite de dezasseis de Maio de 1809, às mãos de 800 paisanos barrosões, que esperaram em vão a chegada de reforços, porque as tropas anglo — portuguesas de Wellesley nunca chegaram. Desse facto há ecos no cancioneiro popular:
“Chorai meninas de França,
Chorai por vossos maridos,
Na ponte da Misarela
eram mais mortos que vivos!”
A ponte deve também ser recordada porque lá se deu, em 25 de Janeiro de 1827, um recontro importante entre as tropas realistas do general Silveira e as tropas constitucionais do coronel Zagalo.
Ainda na Misarela, no dia 18 de Setembro de 1838, se feriu a cruenta batalha em que os liberais, liderados pelo General Antas, derrotaram as tropas cartistas do marechal Saldanha, do duque da Terceira e do barão de Leiria.
- Source
- BAPTISTA, José Dias Montalegre Montalegre, Município de Montalegre, 2006 , p.81-82
- Place of collection
- MONTALEGRE, VILA REAL