APL 2794 Lenda da Epopeia de Liconimargi
Há tanto, tanto tempo, que a memória já não consegue alcançar, perto da actual cidade de Lamego existia uma grande cidade, povoada de gente estranha e invulgar pela sua estatura. Dizem os antigos que os homens dessa tribo não mediam menos de dois metros de altura. Eram fortes, sem serem gordos, valentes sem serem duros, e cumpridores dos seus deveres, nem que para isso tivesse que correr sangue.
Entre as famílias que habitavam o local, quase todas de origem grega, destacava-se uma delas, composta de pai e sete filhos, famosos pelas suas virtudes e pela grande amizade que os unia. Porque habitavam a parte alta do monte, chamavam-lhe, precisamente — a Família do Monte.
Certa tarde, o bom do velho chamou os sete filhos, pois precisava falar-lhes. Receosos de que o pai não se sentisse bem, acorreram com evidentes sinais de ansiedade. Porém o velho sorriu e declarou-lhes:
— Meus queridos filhos! Orgulho-me de todos vós! A amizade que nos une fará de nós um grande povo. No entanto...
O velho suspendeu a frase. Seu rosto, onde um sorriso de bondade resplandecia, ensombrou-se de súbito. Fez-se silêncio por alguns segundos. Mas logo o filho mais velho quebrou esse silêncio.
— Senhor meu pai! Que vos entristece? Algum de nós teve a infelicidade de vos desagradar?
O velho meneou a cabeça negativamente, voltando a sorrir, embora com tristeza.
— Meus filhos! Como podeis desagradar-me, se sois tão bons, valentes e dedicados? O trabalho sempre vos honrou. Mas… o que o futuro possa trazer é que constitui a minha ansiedade!
Entreolharam-se os sete irmãos. E o mais velho tornou a falar.
— Algo vos preocupa? Dizei, senhor!
O velho guardou silêncio por algum tempo, olhando obstinadamente o horizonte rubro onde o Sol se escondia. Depois, num suspiro lento e fundo, esclareceu:
— O firmamento está em fogo! Parece sangue a entornar-se na terra…
— Isso vos preocupa assim? Todos os dias, no tempo quente, o Sol se põe de tal maneira que mais parece labareda...
— Mas hoje... hoje, olhando melhor todo este espaço azul... tive como que um pressentimento... Quase que uma visão!
— Assustais-nos, senhor!
— Sois todos jovens e solteiros. Todos vós tendes braços fortes para combater e coração para amar ou odiar!...
— Prefiro o amor, senhor meu pai...
— Dizeis isso com um olhar estranho. Acaso o vosso coração já escolheu esposa?
— Sim, meu pai. Julguei até que fosse esse o motivo da nossa reunião. Por isso fui buscar Maria. Ela está esperando lá fora. Se a aprovardes, casaremos. Se não for de vosso gosto... deixarei que ela parta!
— Embora devesse calcular que um homem não pode viver sem o afecto de uma mulher, tinha esquecido esse facto! Sois todos homens… tendes direito a escolher companheira. Mas atentai bem no que ides fazer! A hora é de fúria e mágoa e não de paz e amor! Mas ide buscar Maria. Quero vê-la. E se me agradar... é bom que ela também oiça o que mais tenho para vos dizer!
Saiu, solícito, o filho mais velho. Ficaram os outros seis. Voltou o pai a falar:
— E vós? Não tendes ainda feito a vossa escolha?
Um silêncio curto seguiu-se à pergunta. Mas logo o filho segundo declarou:
— Não encontrámos ainda quem possa vir a ser digna filha de santo como vós!
Sorriu, o velho. Um sorriso bondoso, discreto.
— Não sou santo, meus filhos! Sou apenas o velho Domingos do Monte, que teve a dita de conhecer a lei de um homem chamado Jesus, o qual é filho de um Deus, o único! Por ele lutaremos até ao nosso último alento! Antes, cometi muitos pecados. Não vira ainda a verdadeira luz. Mas hoje... com a graça de Deus... sou feliz!
Fez-se novo silêncio. Mas já o filho mais velho se apresentava com uma linda jovem de feições correctas, olhos grandes cor de avelã e cabelos dum castanho arruivado. Na sua expressão quase tímida recortava-se um profundo respeito e um grande carinho. Sem dominar o seu entusiasmo, o filho primogénito do velho Domingos acercou-se do pai.
— Ei-la, senhor! É linda, como vedes!
O velho sorriu. Olhou-a bem nos olhos e sentenciou:
— A sua beleza assemelha-se à de um anjo! E a sua bondade também.
A jovem corou.
— Senhor, como vos agradeço essas palavras! O meu coração quase nem batia, receosa de vos desagradar. Agora, porém, sinto-me completamente feliz!
— Sabeis qual a nossa religião?
— Sou Maria, como a Mãe de Jesus…
— Pois então dou-vos o meu consentimento e a minha bênção! Maria vale bem a vossa afeição, meu filho! Ela ser-vos-á fiel durante o resto da vossa vida e até para além da morte!
Maria beijou com arrebatamento as mãos do velho.
— Como sois bom! Razão têm os que vos chamam santo!
O homem abanou a cabeça.
— Santo não sou, embora me sentisse feliz por morrer como morrem esses santos mártires! Mas ouvi agora o que tenho a comunicar-vos.
De novo um silêncio perpassou no espaço. Com os olhos voltados para o ocidente, o velho parecia cismar. O vento, fazendo mexer a urze do monte, aromatizava a tarde com um perfume suave. E só depois desse silêncio o velho Domingos retomou a palavra, num acento grave, impressionante:
— Filhos! A hora que atravessamos é dura. As nossas terras têm sido pasto de roubo e crime, levados a cabo pelo povo invasor. Os Romanos têm vindo de vencida, e com eles as maiores das traições. É tempo de dizermos «não» ao seu imperativo destruidor. Se for necessário dar o nosso sangue pela lei de Cristo e pela nossa liberdade, não hesiteis em cumprir o vosso dever!
Pedro, o filho mais velho, arriscou:
— Temo-lo a nosso lado, meu pai! Isso bastará para que sejamos fortes!
Desta vez o velho sorriu. Na sua fronte pálida vincou-se uma forte ruga. A sua voz tornou-se mais fraca.
— Devo ainda acrescentar que pouco tempo mais terei de vida.
— Como o sabe, meu pai?
— Sei. Deus chamar-me-a no dia em que estas terras estiverem resolvidas a revoltarem-se contra a destruição dos nossos haveres e liberdade. A lei de Cristo vencerá no Mundo. Mas antes… terá de correr muito sangue! Por isso o firmamento está em fogo!
Aturdido com estas palavras em que acreditava piamente, Pedro suplicou:
— Senhor meu pai! Antes de nos deixardes, dizei-nos exactamente o que devemos fazer. Sem vós, encontrar-nos-emos vazios!
Então o velho ergueu-se e lançou a sua bênção sobre os sete filhos e sobre Maria. Depois, com voz em que se ia notando o cansaço, expôs o seu plano. Quando terminou, um dos filhos exclamou com entusiasmo:
— E venceremos, decerto!
O velho baixou a cabeça. Depois olhou o céu e murmurou quase:
— Há muita forma de vencer, meus filhos, mesmo quando aparentemente ficamos sem coisa alguma. Lutar pela lei de Cristo e morrer com glória, de forma que esse exemplo seja um grito de incentivo a outros que nos possam seguir — não é perder, é ganhar a Vida Eterna! Olhai os santos mártires. Foram supliciados e mortos. Aparentemente, dir-se-ia que os Romanos os venceram. Mas o seu gesto, a sua firmeza, a sua candura, a sua fé, continuam vivas até nos corações dos seus próprios e carrascos! Venceram, pois... e de que maneira gloriosa!
Calou-se o velho. Cada vez mais fraca, a sua voz era quase um sopro. Rodeado pelos filhos, que faziam agora esforços por conservar a calma digna do momento, o Domingos do Monte, abençoando mais uma vez os sete rapazes, ficou-se serenamente de olhar perdido, fixo, a contemplar o céu quase rubro de um esplêndido pôr de Sol!
Em silêncio, cabeças baixas, os filhos choravam. Maria, mordendo os lábios para não irromper num choro convulso, agarrou-se ao braço do seu companheiro. Então, Pedro, sentindo a pressão dos dedos nervosos da bem-amada, murmurou, numa voz a que a emoção dava maior realce:
— Morreu um santo! Há pouco parecia ainda cheio de vida! Aqui juramos cumprir o seu desejo, e ainda construir, neste mesmo local, uma pequena ermida, onde o seu corpo repouse para todo o sempre!
A cor rubra do pôr do Sol tornou-se mais escura, quase violeta. O vento fresco da tarde fez baixar em reverência as humildes ervas do monte. E a noite, na sua majestade, veio fechar esses olhos que obstinadamente olhavam ainda para o céu…
Reinava então em Roma o imperador Trajano. Havia algum tempo que a paz aparente vivia na Lusitânia. Sujeitos às leis romanas, embalados ainda pelas palavras de Octávio quando viera à Península «pregar o seu sermão», os povos oprimidos pareciam não aspirar à liberdade. Mas, de súbito, duma cidade da serra onde Viriato lançara a chama da rebelião, as cinzas mal extintas dessa ânsia de independência e o ódio mal apagado das traições que tinham sido cometidas irromperam com toda a sua chama e todo o seu vigor. Comandava a revolta um homem novo, que, ajudado pelos seis irmãos, dir-se-ia incarnar o próprio espírito lusitano.
A surpresa deixou por momentos atónitos os próprios romanos. A revolta estava bem organizada. Espalhados por diversas cidades, os irmãos mantinham vivo o esforço lusitano. Bem tentavam cercá-los os soldados de Roma, mas os pedregulhos surgiam de todos os lados. A revolta alastrava-se, e o pretor teve de enviar com urgência um emissário a Roma, pedindo reforços e ordens.
Ao saber da revolta da Lusitânia, que ele julgava já prostrada sob o seu pé de ditador, Trajano gritou.
— Quero esmagados todos esses cães! Todos! Nem que para isso tenha de deitar fogo à Península Ibérica!
Lembrando o emissário a falta de homens para combater e a ferocidade dos revoltosos, Trajano perguntou:
— Não tenho eu bastantes soldados na Espanha que possam fazer calar esse punhado de doidos?
Com serenidade, para não aumentar a cólera do imperador, o emissário retorquiu:
— Os Lusitanos têm todos a alma de Viriato.
— Que quereis dizer com isso?
— Que para cada homem precisamos nós de três...
A cólera de Trajano subiu ao rubro.
— Como tens a ousadia, tu, um romano, de fazer semelhante declaração na minha presença?
O emissário curvou a cabeça sem responder. Então, gritando, quase convulsivo, o imperador despediu-o.
— Vai! Vai e diz ao teu chefe que para sua vergonha terei de mandar catorze legiões, a fim de ser sufocada uma rebelião na Lusitânia. Mas pensai bem: quero tudo limpo! Tudo sereno! Nem que tenham de fazer da Espanha uma grande fogueira!
O cerco das legiões chegadas de Roma e de outros locais mais próximos apertava-se consideravelmente. A revolta, que parecia estar quase vingada, começou a tremular como chama de vela à corrente do ar enraivecido. Alguém viera trazer a Pedro, que chefiava Liconimargi, tristes novas sobre as outras terras. Seus irmãos tinham perecido e a revolta fora subjugada... Então Pedro voltou a olhar o céu.
— Morreremos também neste monte, tal como jurámos a meu pai! Tu, Maria, podes fugir ainda. Não quero que os romanos te encontrem!
A jovem, pálida e emagrecida, encostou-se ao braço forte do seu companheiro.
— Morrerei contigo! Deixa-me que participe dessa graça!
Já o fumo subia pela montanha. Uma grande fogueira que parecia não ter fim... Pedro exclamou:
— Senhor meu pai! Morreremos no nosso posto! E que o nosso exemplo sirva de força àqueles que vierem depois de nós!
Tragicamente, as gigantescas línguas de fogo subiam, subiam, apertando o cerco. Lá em baixo, ouvia-se a algazarra das legiões em fúria. Decerto matavam e roubavam os sitiados. No alto do monte, porém o fogo crepitava. Nuvens de fumo cresciam, tapando o Sol. A penumbra tirou o lugar à luz naquela manhã fatídica. O cheiro acre das queimadas empestava os ares. À noite, vistas de longe, as labaredas que crepita no cimo do monte dir-se-iam as chamas do próprio Inferno. Porém quando a manhã chegou, a Lusitânia estava calma. A força vencera, aparentemente. Mas o espírito desse heroísmo que ficara nos ares levado pelo vento ainda hoje se conserva, através dos séculos!...
Trajano mandou que trouxessem à sua presença o emissário que trazia novas da Lusitânia. Logo se apressaram a cumprir essa ordem. Um tanto altivo, o novo emissário encarou o seu imperador.
— Salvé, Trajano! Trago-te boas notícias.
— Que fizeram dos revoltosos?
— Mortos. Todos mortos!
— E a terra?
— Queimada! Liconimargi e os seus arredores são um montão de cinzas. Mas a rebelião findou!
Levando a mão ao queixo, Trajano teve um trejeito de indiferença, e exclamou:
— Queimada! Toda a terra queimada! Também não se deve ter perdido grande coisa!... Agora, quero confirmado o sossego na Lusitânia!
Mas pouco durou esse sossego! Os homens vivem de luta e para a luta. A ambição tolda-lhes a consciência. De novo a Lusitânia foi invadida, mas desta vez por outros povos vindos de mais longe...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 303-308
- Place of collection
- LAMEGO, VISEU