APL 2873 Lenda do Homem de Quadrazais
Não é das mais antigas, a lenda que vou contar. No entanto, poderei dizer que foi há muitos anos que tudo isto se passou...
Primavera alegre, clara. Primavera ridente. Os pássaros cantavam o seu hino à vida. Rosário cantava, porque a vida lhe sorria também. Rosário era muito jovem e bonita. Embora órfã de pai e mãe, tinha um padrinho que toda a aldeia respeitava: o senhor cura.
Saltitante, Rosário ia-se aproximando da casa do padre. Chegada à porta, bateu discretamente. De dentro, o sacerdote respondeu:
— Quem está aí?
— Sou eu, padrinho.
— Podes entrar, cachopa.
Num andar buliçoso, ela entrou e pediu com humildade:
— A sua bênção, padrinho!
Solene, o sacerdote respondeu:
— Deus te salve, rapariga!
E olhando-a bem nos olhos:
— Senta-te. Mandei-te chamar porque preciso de falar contigo.
Rosário pareceu ficar inquieta.
— Se me vai ralhar, desde já lhe digo que não pequei!
Sem sorrir, o padre continuou:
— Rosário! O teu pai recomendou-me à hora da morte que velasse por ti. Além disso, sou o pastor desta aldeia e trago a meu cargo a condução moral das minhas ovelhas...
Rosário tomou-se subitamente séria. Retorquiu:
— Senhor meu padrinho, nunca o ofendi nem espero ofender! Diga o que tem a perguntar-me, que o Divino Espírito Santo me ajudará a responder-lhe!
O padre hesitou por um momento. Talvez para tornar mais solene aquele encontro. E continuou:
— Sabes… O povo, às vezes, murmura... E eu não quero que ele tenha de falar na minha pupila!
A rapariga encolheu os ombros, decidida:
— Ora! O povo é bisbilhoteiro! Quando não conhece todas as voltas que o vizinho dá, morre por descobri-las. E depois desata a falar ao acaso, para se dar ares de conhecedor!
O padre franziu levemente as sobrancelhas. Passou a mão pelo breviário colocado em cima duma pequena mesa, e sentenciou:
— É possível que tenhas razão. Mas eu preciso de conhecer todas as tuas voltas.
A rapariga encarou-o surpreendida. Mas ele, numa voz calma, perguntou-lhe:
— É verdade que, todas as tardes, um homem alto, moreno, de olhos verdosos, desce a serra de Furdes e vem falar contigo?
Rosário baixou o olhar, que conservara arrogante. Confessou:
— É verdade, padrinho.
— E donde vem esse homem? Quem é ele? Que te quer?
A resposta foi pronta:
— Quer casar comigo.
O padre mostrou-se inquieto.
— Rosário! Donde vem ele?
— Da serra.
— Da serra? Mas lá não mora ninguém! A serra não está habitada!
Era sincero, o espanto do velho cura.
Rosário, porém, não parecia inquieta. Respondeu, já à vontade:
— Ele diz que vive do outro lado, num pequeno vale.
O espanto do sacerdote transformou-se em indignação:
— Esse homem mente! Tem cuidado, Rosário! Olha que ele mente! A serra não está habitada!
A rapariga não se amofinou. Parecia tranquila.
— Oh, meu padrinho! Tem a certeza do que afirma? Olhe que ele já quis levar-me lá. Eu é que… compreende… não achei bem sair daqui… sem o seu conselho.
O cura tinha-se sentado, como se a inquietação lhe tivesse tirado as forças. Pusera as mãos na cabeça.
— Ele quis levar-te?
— Bem… eu também pus em dúvida a existência de gente lá na serra. E ele pediu-me que fosse com ele, para ver com os meus olhos a sua casa.
Cada vez mais atordoado, o cura teve de súbito uma ideia que tentou esclarecer:
— Ouve cá, Rosário. Que te parece o homem da serra de Furdes?
— Que me parece?
— Sim. Como o achas?
Rosário sorriu um tanto embaraçada, mas acabou por responder:
— Eu... acho-o mais belo e bem falante que todos os rapazes cá do lugar!
— E a que horas te busca ele?
— Quase ao pôr do Sol!
— Não achas estranha, essa hora?
— Estranha, porquê?... Mas, se fosse mais cedo… mais tempo teríamos para conversar...
— Porque não lhe pedes para vir com dia claro?
— Já lhe pedi.
— E depois?
— Disse que não podia. Tinha de cultivar a terra. E a casa dele ainda fica longe.
O cura abanou a cabeça, apreensivo.
— Rosário, estou verdadeiramente inquieto! Namoras um homem que diz habitar com os lobos!
— Mas ele não vive com os lobos! Tem pai, mãe, irmãos e vive lá mais gente!
— Que dizes?
— O que ele me contou. Até já está a fazer uma casinha para nós dois.
O cura levantou-se. Deu alguns passos pelo aposento, agarrando o breviário. Por fim parou em frente da sua pupila.
— Rosário! Já ouviste falar do Demónio, das suas tentações, dos seus disfarces?... Vê lá se é ele quem te aparece!
Rosário recuou, entre surpreendida e indignada.
— Oh, padrinho!
O cura, porém, insistiu:
— Ele fala em Deus?
Os olhos de Rosário ficaram presos no espaço para lá da janela. O cura voltou a perguntar:
— Ele fala no Santo Nome de Deus?
Rosário suspirou:
— Não, padrinho... Na verdade, nunca falou em Deus.
E a desculpá-lo:
— Talvez não calhasse...
O cura mostrou-se de novo exaltado:
— É isso! É o Diabo com figura de gente!... Acautela-te, rapariga!
Rosário exclamou, confusa:
— Oh, meu padrinho, não pode ser! Ele é tão bonito, tão bem falante… tem uma figura tão atraente!...
— Tanto pior! O Demónio é capaz de tudo, para roubar almas a Deus! E então… a pupila do padre… sabia-lhe bem!... Mas felizmente cá estou eu, com a ajuda do Divino Espírito Santo!
Rosario ficara pálida. Já não era a mesma rapariga de semblante alegre. Emudecera. O padre também se quedara silencioso. Meditava. De repente, voltou-se para a afilhada.
— Tive agora uma ideia que vou pôr em prática! Hoje à tardinha irei interromper a vossa conversa. Levarei comigo a Santa Cruz, e verás como o homem se evapora!
Rosário teve uma expressão semelhante à de uma criança a quem arrancassem das mãos o brinquedo preferido. As lágrimas assomaram-lhe aos olhos. E choramingou:
— Não posso acreditar! Não quero acreditar que o Pedro seja o Demónio a tentar-me! Que mal empregadinho!
O padre tocou-lhe num braço.
— Deixa-te de choraminguices e vai-te na Graça de Deus! Eu saberei aparecer na devida altura. Mas não digas nada a ninguém da nossa conversa! E a ele muito menos! Quero aparecer-lhe de surpresa!
Rosário limpou as lágrimas com a palma da mão. Beijou a mão do padrinho e saiu sem mais palavra.
Na estrada, os passarinhos continuavam cantando o seu hino à vida. Mas Rosário já não cantava, porque a vida, num momento, deixara de lhe sorrir.
Decorreram algumas horas. Sem saber como entreter o tempo, Rosário limpava pela terceira vez nesse dia a sua casinha modesta. E o padre cura, ajoelhado ante o altar de Deus, pedia a Sua Divina Inspiração para tratar o melhor possível o que ele considerava um caso grave.
O Sol, cansado da sua rota, começara a descer lentamente para lá da serra. Era o fim da tarde. Dentro de pouco tempo viria o crepúsculo, como antecâmara da noite. Então, o padre tomou água benta, benzeu-se, pegou no crucifixo, e saiu em direcção à casa de Rosário.
Encostada à porta de casa, Rosário falava a um homem alto, bastante novo ainda e de olhos claros. O padre, escondido, escutou o diálogo. Era Rosário quem falava agora:
— Porque não vens mais cedo?
O homem respondeu:
— Já esqueceste a razão que te apresentei? Bem sabes quanto gosto de ti, mas não posso abandonar as minhas terras. Elas serão o nosso pão! Porque insistes?
— Sabes... eu quero acreditar em ti…
— E porque não acreditas?
— Porque o povo murmura!
— Pois deixa-o murmurar e vem comigo lá para cima!
— Deus não quer assim!
— Deus? De quem falas tu? Alguém pode mandar em ti mais do que o teu coração?
— Foi Deus quem nos criou, Pedro!
— Quem nos criou? Que dizes? Estás enganada, minha Rosário! A mim criou-me o meu pai e a minha mãe! Deles recebo eu todos os ensinamentos!
Ouvindo tal blasfémia, o bom do padre cura não pôde conter-se mais tempo escondido, e mesmo de longe gritou:
— Rosário! Acautela-te, mas não tenhas medo! Deus está connosco!
E correu para junto dela, erguendo o crucifixo.
Pedro voltou-se verdadeiramente surpreendido. Ao ver o padre perguntou:
— Quem é este homem? É teu pai?
Rosário respondeu quase a medo:
— É meu padrinho.
Mas o rapaz voltou a interrogar:
— Que faz ele? Que me quer? Não o entendo!
Rosário estava embaraçada. Explicou:
— Sabes... O meu padrinho está a mostrar-te a Santa Cruz!
— O quê?
— A Santa Cruz… onde Deus morreu por nós!
Pedro abriu mais os seus olhos bonitos. Estava realmente confuso. Voltou a perguntar.
— Quem foi que morreu ali?
— Deus!
— Deus? Ah! O tal homem de quem me falaste há pouco? Mas… se ele morreu… como poderia achar mal que te levasse para a minha casa na serra?
O padre cura tinha-se aproximado de Pedro. Olhava-o e ouvia-o com perplexidade. Tentou mais outra prova:
— Não sabes quem é Deus?
— Não. Nem compreendo porque me falam dele como vivo e me dizem que ele morreu agarrado a esse pedaço de madeira.
O padre levou uma das mãos ao rosto e murmurou:
— Santo Nome de Jesus! Será possível? Será possível que este homem fale verdade? Inspirai-me, Divino Espírito Santo!
Sem compreender nada do que ouvia nem da atitude do velho e da namorada, Pedro perguntou:
— Que diz ele, Rosário?
— Está a rezar!
— Rezar?... O que é isso?
A rapariga olhou o padre. Então, este, com um modo mais afável, perguntou ao rapaz:
— Onde vives tu?
— Lá em cima, na montanha.
O padre respirou fundo antes de voltar a falar.
— Ouve cá. Fui eu que criei a Rosário desde pequenina. Ela falou-me em ti e quer conhecer o lugar onde vive o homem que escolheu para marido. Podemos lá ir agora?
— Claro que podemos! É só subir a serra. Lá de cima já se vêem as casas. E se a Rosário quiser acompanhar-me, será este um belo dia para mim. Tenho bastantes terras. E se não fosse a praga de gafanhotos...
— Uma praga? E destruiu as terras?
— Destruiu tudo! Todas as colheitas desapareceram! Ficamos sem nada em Quadrazais!
— E porque não vêm cá abaixo?
— Ora! Fartos de guerras ficaram os nossos antepassados. Quem vive só com os seus vive contente.
— Então porque desceste até aqui?
Pedro sorriu.
— Ora!... Andava ali na serra e deu-me um desejo enorme de descer. Como estava sozinho, vim espreitar. Foi então que vi esta cachopa… e não resisti a falar-lhe. Depois... Depois senti a necessidade de voltar.
O padre moveu a cabeça num espanto, e simultaneamente numa acção de graças, exclamando:
— Louvado seja Deus!
Pedro franziu as sobrancelhas.
— Está a falar outra vez nesse tal Deus! Mas quem é Ele?
O padre sorriu.
— É verdade que nunca ouviste falar n’Ele?
— Não.
— Nem os teus companheiros lá da serra?
— Nem esses, tenho a certeza! Mas... Ele ainda vive, ou já morreu, como diz a Rosário?
O padre não respondeu à pergunta. Parecia atónito. Falava como se fosse para ele próprio:
— Pois é possível, Deus meu, que exista uma povoação na serra que não Vos conheça?... Quem sou eu, Senhor, para que Vos leve a essa gente por intermédio da minha pupila Rosário?
Pedro continuava perplexo.
— Que diz ele?
Rosário mostrava grande alegria:
— Pedro, Deus é bom! Vais conhecê-Lo e amá-Lo!
O padre pareceu voltar a si do êxtase em que tinha entrado.
— Rapaz! Queres acompanhar-nos lá acima? Se for verdade, como penso, tudo quanto acabei de ouvir, a Rosário será tua mulher!
Pedro exultou.
— Pois venham já daí comigo! Vão todos ficar contentes! A não ser...
— A não ser o quê?
— Que venha outra praga de gafanhotos! A gente de lá diz que é daqui que eles vêm.
— Não te aflijas. Não voltará a haver mais pragas!
— Como o sabe?
— Sei, porque vou prometer ao Divino Espírito Santo uma ermida em Seu Nome!
— Uma ermida?
Rosário pegou-lhe num braço:
— Vamos! Depois o meu padrinho te ensinará quem é Deus, o que Ele fez por nós e continua a fazer, e o que é uma ermida.
— Pois então vamos!
E num passo alegre começaram a subir a serra, no momento exacto em que o Sol desaparecia no horizonte.
E, segundo conta a lenda, houve festa rija em Quadrazais, com grande espanto da gente da aldeia, que durante um dia inteiro não soube do padre cura nem da sua afilhada.
E ainda hoje existe em Quadrazais a ermidinha erguida sob a invocação do Espírito Santo, a qual ficou a perpetuar a força do Amor e da Fé!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 143-149
- Place of collection
- Quadrazais, SABUGAL, GUARDA