APL 1403 A sacristia X
Era o dia catorze de Agosto de mil setecentos e sessenta, véspera da grande festa dos Jesuítas — a assunção da Virgem. Era quinta-feira, o dia estava lindíssimo e a vila da Horta dourava-se com um agradável sol de Verão. Enquanto a nau portuguesa Nossa Senhora da Natividade lançava ferro inesperadamente na mansa baía, os religiosos esmeravam-se na preparação da Igreja do Colégio para as solenidades.
À noite fizeram-se matinas. A enorme profusão de luzes derramava uma claridade fantástica pelas naves e os vidros multicolores dos candeeiros, as pratas muito brilhantes, os paramentos luxuosos, as franjas de ouro, exibiam a riqueza do convento. A vila acorreu em peso ao templo, desde o rico morgado ao mais simples homem do povo.
O repicar festivo das torres assim como a alegria das luzes levavam uma nota de dúvida ao capitão João de Brito que, junto da amurada de estibordo da Nau Natividade, estudava os movimentos no grande edifício. Os padres lá dentro andavam num movimento desusado: os gestos eram mais rápidos, a voz menos pausada, as cerimónias litúrgicas mais breves, como se pressentissem todo o perigo que lhes viria da baía. Os Jesuítas eram dotados de um espírito subtil e lúcido, desenvolvido desde tempos, sob a política e aspirações do odiado Marquês de Pombal.
Decidiram prevenir-se contra um mal que não sabiam qual era exactamente e, auxiliados por um criado negro, saíram com pás e enxadas para a igreja e, numa das sacristias, abriram uma profunda vala para onde levaram, cuidadosamente encaixotada, a enorme riqueza que instantes antes embelezava o templo. Sepultaram uma pesada custódia de ouro cravejada de pedras preciosas, castiçais de prata maciça, uma soberba taça de ouro com nove pedras preciosas, representando as nove ilhas do arquipélago, a riquíssima lâmpada do sacramento, centenas de cruzados das rendas e economias do colégio e muitos outros objectos valiosos de culto.
Feito o trabalho, recolheram à cama e esperaram ansiosos o dia seguinte, que amanheceu esplêndido, como o anterior. A nau de el-rei continuava a balouçar-se serenamente na baía e os religiosos, prevenidos contra o futuro, preparados para as surpresas do dia, foram para a festa da Virgem.
Logo que terminou a última cerimónia, a igreja e o convento foram rodeados por tropa e os Jesuítas, intimados pelo comandante, saíram da sacristia para bordo, levando apenas debaixo do braço o seu breviário.
Pouco tempo depois a nau levantava ferro e, impelida pelo vento brando e favorável, começou a singrar as águas do canal elegantemente.
Dos Jesuítas nunca mais se soube, mas o fiel criado negro ficou na Horta e, à hora da morte, revelou a uma freira da Glória o segredo, não querendo talvez que ficasse ignorado para sempre. Esta, por sua vez; deixou escrito num papel amarelecido pelo tempo a nota enigmática seguinte: O preto disse-me que ajudou a enterrar na sacristia X uns caixotes com o tesouro do Colégio.
O recado de pouco serviu porque ainda hoje ninguém sabe qual das cinco é a sacristia X, onde está escondido o tesouro dos Jesuítas.
- Source
- FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.249-250
- Place of collection
- Horta (Matriz), HORTA, ILHA DO FAIAL (AÇORES)