APL 642 O Brasão dos Cabrais

Entoando as canções do tempo em melancólicas avênas, acompanhando os rebanhos no badalar continuo dos seus chocalhos, os pastores das faldas da Serra da Estrela evavam vida descuidada, mas a vida áspera das serranias. No seu viver quase primitivo, um, de entre todos, ouviu em sonhos, três noites seguidas:
 — «Vai a Belém e lá encontrarás o teu bem».
 Acostumado a ver todos os dias aos primeiros alvores do sol, os altos píncaros da Serra, ele que ali nascera e se criara ouvindo a seus avós narrações referentes a grandes lutas que ali se desenrolaram entre os lusitanos, de que descendia, e grandes exércitos de Roma, não se decidiu a partir.
 Passaram dias!
 A voz que, noite alta, lhe segredava a promessa de felicidade, voltou a repetir-lhe:
 — «Vai a Belém e lá encontrarás o teu bem».
 Começavam a branquear os crutos dos mais altos cabeços da Serra.
 As grandes nevadas, o periodo de maior inclemência, iam começar.
 Ante uma vida de pouco mais de mediania e a promessa do bem, entre os rigores do inverno e a riqueza que lhe sorria, deveria desprezar esta?
 Sonhara três noites seguidas e guardou o segredo. Que mais era preciso, na voz do povo, para encontrar a felicidade?
 Partiu.
 Andou, andou, caminhou, para depois de muito andar, de muito caminhar, chegar finalmente a Belém.
 Viu o Tejo. Admirou o mar.
 Belos! Grandes! Mas... maior do que ambos, a sua Estrela, a sua terra!
 Passou um dia. Passou outro, e passaram três sem que encontrasse o tão prometido bem!
 Debalde procurava no sono reparador a voz que tão insistentemente lhe anunciara a felicidade.
 Veio a desilusão. Era mister regressar.
 Aconchegado nas samarras que lhe serviam de agasalho, postos os safões nas pernas e o sarrão a tiracolo, iniciou a marcha.
 Atravessou a primeira ponte.
 Um almocreve que se dirigia a Belém, estranhando a presença de um serrano por aqueles sítios, dirigiu-se-lhe:
 Estranha é aqui a tua presença, pastor! Que fazes por estas paragens?
 Entre envergonhado e timido, hesitante, contou:
 — Durante três noites seguidas ouvi, em sonhos, uma voz que me dizia:
 — «Vai a Belém e lá encontrarás o teu bem». Cheguei há já três dias. Estou entrando no quarto sem que se me tenha deparado o tal bem. Desenganado, resolvo ir-me embora pró-pé do meu rebanho.
 O almocreve, que ouvira em silêncio o serrano, ficou pensativo.
 É que também ele sonhara com um tesouro e de há muito hesitava sobre se deveria ir procurá-lo ou se não deveria dar importância ao sonho.
 — Pois, amigo — disse — também eu sonhei que, no sítio de Belmonte, lá para as bandas da Estrela, debaixo da penha onde uma cabra amarela com a cria vai deitar-se todos os dias, se encontram uma cabra e um cabrito de ouro. Tenho hesitado entre ir ou não ir procurá-los, mas, depois da narração que me fazes, não pensarei mais em tal.
 Sonhos.., são sonhos!...
 O pastor ouviu e calou.
 Despediram-se. Desejaram-se saúde.

 — Cabra e cabrito de ouro em Belmonte, na sua terra... ia ele pensando.
 No sítio onde uma cabra e o seu vão deitar-se!?... Recordava-se!...
 Efectivamente, à hora do rodeio não havia quem tirasse de certo barroco a sua marela.
 Estaria ali o seu bem?... Cheio de ansiedade, partiu. Seria agora mais comprido o caminho...
 — Belmonte!... A penha ou barroco onde a cabra ia deitar-se?! Cabra e cabrito de ouro?!
 Mas... tudo devia ser sonho!

 A viagem fora rápida — o mais rápida possível — e, em Belmonte, a sua primeira preocupação foi revolver a penha. Levantada, lá estavam efectivamente, protegidos e guardados por ela, uma cabra e cabrito de ouro. Pensou e meditou:
 — Teria encontrado, finalmente, o seu bem?
 A simples posse da cabra e do cabrito dar-lhe-iam a felicidade!...
 E se fosse oferecer uma das peças ao Rei, reservando para si e para os seus o valor da outra?
 Se bem o pensou melhor o fez, e ei-lo de longada até à Corte.
 Uma vez no palácio real pediu insistentemente que o deixassem falar a sua Majestade, para quem trazia um presente.
 Relutância da guarda, recusa formal de quem superintendia em tal serviço.
 Não podia ser. O rei não recebia pastores.
 Nova insistência, novos rogos, novos pedidos, até que, depois de muito pedir, de muito insistir, foi levado â presença do Monarca, que se encontrava rodeado de fidalgos.
 Ante todos, não sabendo a qual dirigir-se, inquiriu: — Qual de vossemecês é o ti Rei?
 O Monarca, achando-lhe graça, deu-se a conhecer.
 — Pois então saiba que tenho ali fora uma cabra e um cabrito e que é de minha vontade dar-lhe uma das peças â escolha de vossemecê.
 — Pois então, visto que queres obsequiar-me, traz o cabrito que sempre é mais tenro.
 O pastor saiu e, voltando, desenrolou de entre samarras o cabrito de ouro e depô-lo nas mãos do Rei que, maravilhado e agradecido, lhe disse:
 — Homem, grande tesouro me apresentas; mas se eu soubera que a cabra e o cabrito eram de ouro, teria antes escolhido a cabra. O Pastor pediu licença para ir buscar a cabra, e igualmente lha oferecer.
 Assim foi. Saiu e voltou com a cabra de ouro que depôs nas mãos do Rei.
 — Conta-me, homem, a origem de tão grande riqueza.
 E o pastor contou.
 — Pois então — disse-lhe o Rei — vai, sobe ao Monte onde encontraste o tesouro e tem como teu, que to dou eu, tudo o que dele avistares.
 E, mandando ajaezar um cavalo, continuou:
 — Não irás a pé. Montarás um cavalo que vou oferecer-te, e todas as terras que percorreres num dia, igualmente tas ofereço.
 E assim foi! Assim se formou a grande casa dos Cabrais e, assim, ainda hoje, na singela tradição do povo, o brasão da nobre família — duas cabras passantes — tem origem na cabra e cabrito de ouro, do pastor.

Source
DIAS, Jaime Lopes Contos e Lendas da Beira Coimbra, Alma Azul, 2002 , p.15-19
Place of collection
Belmonte, BELMONTE, CASTELO BRANCO
Narrative
When
20 Century, 50s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography