APL 2713 Lenda da Porta que se Abra Antes

Tudo começou naquela madrugada triste e fria de 8 de Dezembro de 1148. A chuva caía implacável, batida pelo vento, sobre as terras que formavam o lugar de Tubucci, onde se erguia um castelo que pertencera primeiramente aos Godos, passara depois às mãos dos Mouros e fora conquistado naquela mesma madrugada pardacenta pelas hostes aguerridas de D. Afonso Henriques, primeiro monarca de um novo reino que se alargava palmo a palmo. E esse era, de facto, mais um palmo de terreno para o novo reino de Portugal!

Entretanto, o dia não dava mostras de melhorar, embora a vitória dos Portugueses fosse bem digna de um sol esplendoroso, segundo os próprios cronistas da época. A batalha chegara ao seu termo. Mas estava-se ainda em pleno rescaldo. Os prisioneiros agrupavam-se guardados à vista, esperando ordens. E entre eles destacava-se, altiva, a figura do jovem Samuel, tentando em vão libertar-se.
— Deixem-me! Preciso de proteger Zahara!
O cavaleiro Moniz Machado aproximou-se do mouro que fora o favorito do ex-alcaide. Estava pálido. A voz soou pouco segura:
— Aquela... é Zahara, a filha do alcaide?
Samuel cerrou os dentes.
— Sim! Mas o que lhe tocar terá de se haver comigo!
— Ninguém lhe tocará.
— Não? Repara nos teus soldados! Um deles pretende levá-la à força!
Efectivamente, a bela Zahara era transportada ao colo por um possante guerreiro, no meio da algazarra dos outros. O cavaleiro Moniz Machado não hesitou. Entregou Samuel ao seu lugar-tenente e, de espada em punho, correu para o grupo, gritando:
— Para traz vilões! El-Rei não permite tal desaforo!
Por momentos, perante ordem tão imperiosa, o tumulto pareceu cessar. Porém o soldado não ligou importância e continuou a correr com o seu precioso carrego.
Então — conta a lenda — Moniz Machado, num impulso de fúria, perseguiu-o, derrubou-o e arrebatou-lhe a jovem donzela quase desfalecida. Depois montou a cavalo e seguiu a galope para entregar a formosa moura à guarda de um seu conhecido monge de S. Bento, que viera do Mosteiro de Lorvão, na companhia de El-Rei.
Pelo caminho, voltou a olhar aquele rosto de uma beleza estranha. E a imagem da Virgem Senhora dos Aflitos, que sua mãe lhe dera à hora da morte e que ele trazia sempre junto ao peito, pareceu tomar vulto, de novo, na sua imaginação. Seria pura coincidência, tal semelhança entre a jovem moura e a imagem santa?...
 
A perplexidade dominava ainda o íntimo de Moniz Machado, quando o monge o recebeu. Logo este, ao saber que Zahara era filha do alcaide vencido, prometeu cuidar dela o melhor possível, defendendo-a de todos e de tudo, e, simultaneamente, tentar iluminar-lhe o espírito com a fé de Cristo.
Zahara, já refeita do pavor, falou então ao jovem cavaleiro. E falou numa voz tão doce como o seu olhar.
— Senhor! Agradeço-vos a intervenção...
Ele limitou-se a afirmar:
— Cumpri apenas um dever.
A moura fitou-o mais de frente. Olhos nos olhos. A voz ganhou intensidade.
— E Samuel? Que lhe acontecerá?
Foi a vez do monge empalidecer. Titubeou quase, uma pergunta que mal se ouviu:
— Samuel? Falais de Samuel... filho duma cativa cristã de Soure?
Zahara respondeu prontamente, sem dar pela perturbação do sacerdote:
— Sim! Foi o meu companheiro de infância. Quero-lhe mais do que à minha vida! E ele corresponde-me de igual modo...
O monge tapou o rosto e murmurou baixinho:
— Louvado seja Deus! Ainda bem que os encaminhastes para mim, Senhor!
E voltando-se para o cavaleiro português:
— Ide, meu filho. Guardarei tão precioso tesoiro. Em troca... peço-vos uma mercê.
O cavaleiro curvou-se, respeitoso.
— Dizei, irmão.
O monge sorriu.
— Vai parecer-vos estranho o meu desejo, mas gostaria de falar com o prisioneiro Samuel, antes de El-Rei D. Afonso chegar.
O cavaleiro olhou-o como a tentar compreender tão estranha e súbita pretensão. E respondeu somente:
— Enviar-vos-ei sem demora esse prisioneiro, já que tal é a vossa vontade.
— Que Deus vos abençoe!

Pela tarde fora, a chuva deixou de cair. O vento também acalmou. Apenas o frio continuou senhor absoluto!
Junto a um grande crucifixo, prostrado, com o rosto quase tocando o chão, o monge de S. Bento orava fervorosamente, quando uma voz o chamou de mansinho. Sem mostrar qualquer espécie de surpresa, o monge ergueu-se. Esperava, aliás, esse chamamento. Dera ordem ao irmão Leonardo para que o avisassem sem delongas, quando Samuel, o jovem prisioneiro mouro, chegasse ao convento. E mandara mesmo que o levassem à sua própria cela. Foi, pois, sorrindo que o monge estendeu a sua magra mão ao jovem mouro, agora na sua frente.
— Entrai… preciso de falar-vos a sós. Sentai-vos aqui. Espera-vos alguém lá fora?
Surpreendido, o mouro olhava o monge.
— Sim, o lugar-tenente do cavaleiro Moniz. Mas… dizei-me: Zahara encontra-se aqui? Aconteceu-lhe algum mal?
— Zahara está no convento e nada de mal lhe acontecerá.
— Quero vê-la!
— Vê-la-eis. Mas primeiro deixai-me falar convosco.
Sentaram-se lado a lado, O monge olhou bem de frente e com minúcia o jovem Samuel. Depois, a sua voz adoçou-se ainda mais:
— Meu filho! Amais a jovem Zahara, como a uma irmã ou... como a uma noiva?
A resposta de Samuel foi peremptória.
— Só com ela casarei!
O monge levou as mãos ao rosto e deixou-se ficar assim durante alguns segundos. Logo voltou a encarar o jovem.
— Conhecestes vossa mãe?
— Pouco me lembro dela. Morreu em Soure. Sei que era cristã.
— Sim… era cristã e estava noiva de um jovem cavaleiro, quando caiu cativa.
Fez-se novo silêncio, desta vez interrompido por Samuel, no reflexo de um pensamento íntimo:
— Meu pai era mouro!
O monge abanou a cabeça.
— Eu sei.
— Sabeis quem era? Não o conheci.
— Vi-o algumas vezes.
— E minha mãe?
— Oh… essa, amei-a… como vós dizeis amar Zahara, a bela filha do ex-alcaide desta praça, agora em poder dos Cristãos!
Samuel projectou curiosidade nos olhos e na voz:
— Como? Que dizeis? Éreis vos então o tal cavaleiro?
Serenamente, lentamente, o monge confessou:
— Sim… era eu, Samuel. Mas ela… ela ficou cativa e eu perdi-a para sempre… Tal como vos dissestes há pouco, também eu jurara que só havia de casar com ela… E na impossibilidade de ser minha… renunciei ao mundo… e aqui me tendes… Abracei a regra de S. Bento.
O silêncio caiu entre eles. Samuel olhava o monge, sem saber que dizer. Algo embargava as palavras e os pensamentos do jovem mouro. Algo que ele não podia explicar. Piedade pelo monge? Sentia-se demasiado forte para se deixar enternecer… Porquê, então, essa amargura que lhe paralisava o gesto e a voz? Medo do que viria a acontecer à sua bem-amada Zahara? Ou um estranho pressentimento de que a história contada pelo velho monge poderia amanhã ser a sua própria história?...
Quis reagir. Compreendeu que era necessário estilhaçar aquele silêncio que o oprimia. E então falou, gritando quase:
— O meu caso com Zahara é diferente!
Palavras que soaram a falso, que soaram a perturbação.
Talvez por isso o velho monge baixou a cabeça e murmurou tristemente:
— Sim... é diferente... mas é pior!
De um salto, Samuel ergueu-se. A última palavra ficara vibrando nervosamente nos seus tímpanos. E repetiu:
— Pior?... Pior... porquê?
— Meu filho não posso dizer-te. É segredo de confissão... Mas vou chamar Zahara, para que a vejas, como te prometi.
E deixando Samuel ainda abstracto, de olhar perdido no espaço, o monge saiu rapidamente da cela. Voltou pouco depois com a jovem e bela moura. Ao ver Samuel, Zahara correu para ele, num alvoroço de felicidade.
— Samuel! Julguei que não voltaria a encontrar-te!
Ele estreitou-a nos braços.
— Meu amor! Sinto-me desesperado...
Zahara escondeu o rosto no peito do jovem mouro.
— Porquê, Samuel, porquê? Bem sabes como te amo! Daria a minha vida por ti!
O velho monge ergueu as mãos para ambos.
— Meus filhos! Perdoem… mas tendes de vos separar.
Voltou-se para Samuel.
— Voltai para junto do guarda que vos acompanhou até aqui.
Antes de partir, o mouro segurou Zahara pelos ombros.
— Confio em ti! Cuidado com os que te rodeiam... e muito em especial com esse cavaleiro Moniz Machado que para aqui te trouxe!... Eu bem vi como ele te olhava.
Um sorriso envolveu a resposta:
— Nada temas... Vai, Samuel!

Passaram alguns dias. D. Afonso Henriques nomeou seu irmão D. Pedro Afonso alcaide do castelo. Mas D. Pedro Afonso preferia as lutas e as correrias contra a moirama e, por isso, abalou de novo para a aventura da guerra, deixando o castelo de Tubucci entregue ao jovem e valoroso cavaleiro Moniz Machado, como prémio da sua desmedida valentia durante a conquista. Por seu turno, o monge de S. Bento dedicou-se ao serviço espiritual de cristianizar os infiéis da terra. E, a pedido do próprio monge, D. Afonso Henriques consentiu que a bela Zahara fosse restituída a seu pai, o velho alcaide Abraham Zaid, e que ambos saíssem em liberdade, bem assim como o jovem e forte Samuel.
— Sois um rei bom e generoso!
D. Afonso Henriques sorriu. Lá adiante, a luta continuava. E depois de dar a cada um as suas ordens, seguiu a caminho de Torres Novas...

Aos poucos, a normalidade foi voltando à terra de Tubucci. Porém, no meio do apaziguamento quase geral, a paixão do cavaleiro Moniz Machado, agora alcaide, pela bela Zahara e o ciúme furioso de Samuel eram cada vez maiores e mais violentos.
Certa tarde, o próprio monge provocou o incêndio nas almas. Trazia flores e entregou-as a Zahara.
— Tomai, senhora. Para a filha do ex-alcaide, envia estas flores o novo alcaide de Tubucci. Ele não vos esquece!
Zahara sorriu.
— São lindas, na verdade. Quão gentil é o cavaleiro... Vede como são lindas, meu pai!
Abraham Zaid olhou a filha com ternura. E disse-lhe, sorrindo também:
— Tu és ainda mais bela, Zahara! Por isso mesmo lhe agradas tanto...
Então Samuel não pôde conter o seu despeito. Desesperou-se. Raivou:
— Isto tem de acabar! Ou ele… ou eu!
Houve um silêncio breve. Breve e pesado.
— Que dizes, Samuel?
A voz do velho alcaide era rouca e trémula. O jovem mouro baixou a cabeça e moderou-se.
— Perdão! Já que hei-de confessar-lhe tudo um dia... pois que seja hoje: eu e Zahara queremos casar!
A custo, como que atordoado, o velho alcaide ergueu-se da cadeira.
— Casar?... Um com o outro?...
Olhava-os, sem os ver. Os lábios tremiam. As mãos tremiam. Todo ele tremia.
— Não pode ser... Não pode ser!...
Zahara olhou-o inquieta. Inquieta e intrigada. E medrosa, também.
— Não pode ser porquê, meu pai?
Abraham Zaid voltou a sentar-se. Apertou a cabeça entre as mãos. E falou baixinho, como se estivesse a falar só para si:
— E eu que não previ isto! Estava cego... completamente cego!
Samuel deu uma reviravolta súbita e saiu correndo.
— Samuel!
Fora o velho alcaide que gritara. Mas o outro já não o ouviu. E ele, sempre a custo, ergueu-se de novo e saiu também do aposento.
Ficaram sós, o monge e Zahara. Em frente um do outro. Ela, estupefacta. Ele, embaraçado.
Foi Zahara a primeira a romper a mudez.
— Intercedei por nós... por mim e por Samuel!... Fazei que meu pai compreenda... Tende piedade de nós!
O velho monge não se mexeu do mesmo lugar.
— Impossível, minha filha! Vosso pai tem razões de sobra para impedir esse casamento.
— E porquê? Só porque não se sabe quem é o pai de Samuel?
— Nós sabemos quem ele é!
A frase do monge levantou ecos no espaço. Zahara fitou-o, ainda mais surpreendida.
— Vós?... Vós… quem?
— O vosso pai... eu... e a mãe de Samuel, que mo revelou à hora da morte!
A rapariga adiantou-se uns passos. Excitada. Terrivelmente excitada.
— Quem é ele? Dizei-me... Depressa!... Por piedade! Dizei-me...
Mas o velho monge ergueu os olhos ao céu e disse, pausadamente:
— Não estou autorizado a divulgar-vos tal segredo, Zahara... Só vosso pai o poderá fazer.
Nos olhos da bela moura havia confusão.
— Meu pai? Então porque não o fez?
— Porque... não quer!
Zahara passou as mãos bonitas pelos lábios febris.
— Ao menos, esclarecei-me... O pai de Samuel... era algum miserável?
— Não! Não era...
— Então...
Em resposta, o velho monge suspirou e avançou para ela.
— Escutai-me, Zahara... Falo-vos para vosso bem... O cavaleiro Moniz Machado ama-vos... Ele é nobre, jovem e generoso. Pode fazer-vos feliz!
Ela sentiu-se dominada pelo tom grave das palavras. E confessou:
— Sim... bem o sei... Se eu não amasse já Samuel... decerto teria ficado orgulhosa com a atenção dispensada pelo novo alcaide... Mas amo Samuel e...
O monge interrompeu-a, em tom já mais desabrido:
— Pois amai Samuel... sim, amai-o... porém como se ama um irmão muito querido!
Zahara fitou-o, perplexa:
— Um irmão muito querido?
Ele desviou o rosto. Ela insistiu:
— Irmão… dissestes?
Então, o monge retorquiu:
— O que eu disse nada tem de especial... Escusais de tentar saber mais alguma coisa...
Talvez felizmente para ambos, nesse momento reentrou Abraham Zaid, abatido e taciturno. Sentou-se pesadamente numa cadeira e falou para o monge:
— Amanhã irei procurar-vos. Preciso muito do vosso conselho.
Calou-se. Samuel acabava de entrar também. E também abatido e taciturno.
Quatro almas. Um problema comum. A tarde a declinar, a espalhar sombras. As sombras a encher o ambiente. A entrar nas almas. A deixar tudo sombrio. Mais sombrio ainda.
E foi em voz velada que Abraham Zaid voltou a falar.
— Zahara! O cavaleiro Moniz Machado virá aqui amanhã para ter uma conversa muito importante contigo.
Surpreendida, a rapariga perguntou:
— Mas vós, meu pai, não dissestes há pouco que íeis sair amanhã?
— E isso que tem?... Bem sabeis o que penso dele...
Zahara, a medo, olhou Samuel, que parecia de pedra. E arriscou:
— Oh, senhor meu pai!... Achais que deverei receber o cavaleiro Machado na vossa ausência? Não será melhor, já que tendes de sair, conservar a porta fechada, fingindo que saí também?
O velho alcaide endireitou-se e a sua voz ganhou a autoridade dos grandes momentos.
— Minha filha, conheço perfeitamente a nobreza de sentimentos do mesmo alcaide e por isso falo assim...
E, num desabafo, ajuntou com veemência:
— Fechar-lhe a porta? Não, Zahara. Pelo contrário... Eu quero que a porta se abra antes dele chegar!
— Que se abra antes?...
Foi num grito rouco que Samuel fez a pergunta. O jovem mouro parecia ter enlouquecido. Olhou para todos, num esgar de fúria e repetiu:
— Abra antes... abra antes...
E como um louco saiu também, perdendo-se aos baldões pelas ruas fora e sempre repetindo, na mesma cadência furiosa:
— Abra antes!... Abra antes!...
Assim, reza a tradição velhinha, nasceu o nome de Abrantes para a bonita cidade ribatejana.
Falta apenas dizer que Samuel não mais se curou, depois de saber que Zahara era sua irmã, e que, mesmo convertido à fé de Cristo, viveu obcecado por essas palavras que tanto o tinham perturbado.
Quanto a Zahara e seu pai, Abraham Zaid, tornaram-se cristãos também, mercê da benéfica influência do monge de S. Bento. E Zahara, já liberta do seu amor impossível com Samuel, pôde corresponder de verdade à paixão sincera do nobre cavaleiro Moniz Machado, acabando por casar com ele.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 187-194
Place of collection
ABRANTES, SANTARÉM
Narrative
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12 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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