APL 2776 Lenda dos Dois Heróis de Diu
Evoquemos um marco da epopeia dos Portugueses em terras do Oriente.
Chegara o ano de 1546, data que regista na História o segundo cerco de Diu. Havia meses que a luta durava. Os habitantes da nossa cidade da Índia sentiam-se apertados num verdadeiro círculo de ferro. Quase em ruínas, arrasado pela metralha, o remoto e glorioso baluarte português mais parecia um montão de destroços. E os soldados, sujos de sangue, feridos e famélicos, dir-se-iam fantasmas errantes. Contudo não se rendiam, o que desesperava o inimigo.
D. João de Mascarenhas, que então governava a fortaleza, pedira reforços ao vice-rei da Índia, D. João de Castro. Esses reforços iam chegando, mas por cada cem portugueses recebia a gente de Coje-Sofar mais de mil guerreiros. E a luta continuava desigual, portanto, mas renhida. Foi então que o próprio D. João de Castro, partindo de Goa a 17 de Outubro de 1546 com uma forte armada, foi a fonte de salvação para a nossa Diu.
Éramos no entanto apenas três mil contra sessenta mil. Mas os bravos combatentes portugueses, ao saberem a seu lado o próprio vice-rei, sentiram nascer novas forças. Reunindo-os, D. João de Castro falou- lhes da batalha decisiva. A sua voz ecoou firme, como firmes eram a sua vontade e as suas acções:
— Entramos numa batalha onde, vencidos, honraremos o nosso Deus com o sangue; e, vencedores, honraremos o nosso rei com a vitória. Os nossos inimigos não serão mais valorosos de que os pais, que já vencemos. A todos sujeitarão nossas armas!
E D. João de Castro, com os seus homens, entrou secretamente no castelo, no dia 10 de Novembro de 1546.
Para que se não sustentassem bocas inúteis, D. João de Mascarenhas havia já feito sair para outro local mais seguro os homens inválidos, as crianças e as mulheres que acharam por bem afastar-se. Todavia algumas mulheres mais ousadas ficaram na fortaleza. E chegaram ao ponto de levar o seu destemor a vestirem-se de guerreiros para combaterem a lado dos pais ou dos maridos.
Entre essas mulheres havia uma realmente bela, Joana de Sá, que foi o alvo da atenção e do desejo de dois capitães portugueses.
Mais afoito, D. João Manuel interpelou-a nesse mesmo dia:
— Esperai! Deixai-me falar-vos!
Ela sorriu-lhe.
— Achais que temos tempo para esperar?
— Sois bela demais para andardes vestida assim. Devíeis ter partido com as outras mulheres.
Ela abanou a cabeça.
— Senhor, o meu lugar é junto de meu pai e com ele combaterei o inimigo até à morte.
— Mas sois mulher! Tendes de viver recatada.
Ela voltou a menear a sua linda cabeça.
— Terei tempo… se ganharmos esta batalha.
— E haverá mesmo batalha?
— Porque não?
— Constou-me que há aqui quem se arreceie duma luta inglória…
— Não eu, nem meu pai! Ele já falou com D. João de Castro. ambos do mesmo parecer. Só temos um caminho: abrir a luta e irmos até ao fim das nossas forças.
D. João Manuel olhava com encanto essa mulher formosa e destemida. Uma pergunta pulava-lhe nos lábios:
— Adorais a aventura?
A jovem entristeceu.
— Não. Não adoro a aventura, mas sou fiel à minha Pátria e àqueles a quem me dedico.
D. João Manuel sentiu-se subitamente apaixonado.
— Senhora, a hora é de luta. Mas prometei-me que me ouvireis falar de amor quando a vitória chegar!
Joana sorriu, quase gaiata.
— Senhor, se essa promessa vos dá alento… ficai com ela.
O entusiasmo do fidalgo subiu ao rubro.
— Sereis, depois, minha esposa?
A jovem esquivou-se.
— Acalmai-vos, D João Manuel! Só depois da vitória podereis falar-me de amor.
E dando meia volta com tal graciosidade que deslumbrou o jovem impetuoso, Joana de Sá afastou-se sem sequer olhar para trás.
A poucos passos alguém chamava por ele. D. João Manuel voltou-se. Era Miguel Rodrigues Coutinho.
— Senhor D. João Manuel! D. João de Castro manda que nos reunamos em conselho. Quer ouvir as opiniões sobre se devemos ou não dar batalha ao inimigo.
— Pois podem desde já contar com a minha adesão à luta. Precisamos vencê-los… e depressa!
Algumas horas passaram. A noite começou a cair e acenderam-se archotes aqui e além. De súbito, um vulto de mulher, embora com roupa masculina, passou ligeiro, levando um archote na mão. Mas um guerreiro embargou-lhe o passo, dizendo, cortês:
— Senhora, porque levais tanta luz? Em tempo de guerra... quanto menos claridade melhor!
Surpreendida, a jovem parou.
— Não achais bem? Mas… foram ordens de D. João de Castro!
À luz do archote, o jovem fidalgo sorriu.
— Eu, João Falcão, admirador da beleza de Joana de Sá, disse apenas que leváveis luz em demasia...
Ela encarou-o com surpresa.
— Senhor… mas levo apenas... um archote...
— E a luz dos vossos olhos, não contais com ela? Por mim... sinto a alma em pleno dia!
A jovem sorriu.
— Se fordes tão bom guerreiro como galanteador, bem poderá contar Diu com uma vitória...
— Pois se consentirdes que vos olhe antes de saltar o muro que nos separa do inimigo… decerto terei forças para vencer!
Joana sorriu, uma vez mais. Ia responder, quando soou forte a voz de D. João Manuel.
— Desde quando conversais a horas impróprias com as noivas dos vossos companheiros de armas?
D. João Falcão olhou-o num ar de indignada surpresa.
— Estais delirando, decerto! Joana não pode ser já vossa noiva. Chegámos hoje de madrugada à fortaleza...
Os olhos de D. João Manuel faiscavam à luz do archote.
— Mas é verdade! Fui eu quem a viu primeiro e quem primeiro lhe falou de amor...
D. João Falcão olhou Joana em muda interrogação. Ela mostrou-se enervada.
— Então, fidalgos! Isto não está certo...
D. João Manuel segurou-lhe um braço.
— Dizei, Joana, a D. João Falcão, que sois minha noiva!
Ela sacudiu o braço com violência.
— Senhor, prometi apenas ouvir-vos depois da vitória. Por agora, deixai-me!
Mas D. João Manuel agarrou-a de novo pela mão.
— Joana, não partais assim! Ficarei desolado.
— Deixai-me, já vos disse!
Nesse momento, D, João Falcão retirou com violência mal disfarçada a mão do companheiro que segurava ainda a da donzela.
— Ninguém molestará Joana na minha presença!
O outro olhou-o num desafio.
— O que me fizestes é uma afronta e como tal exijo reparação!
— Vós é que afrontastes esta donzela! Lavarei com sangue essa afronta!
Joana olhou-os com desespero e colocou-se entre ambos.
— Que ides fazer, homens loucos? Numa hora como esta, estais a marcar duelo?
D. João Manuel interrompeu-a.
— Assim é preciso. Não vos intrometais, por favor!
E voltando-se para D. João Falcão:
— A que horas quereis bater-vos?
— À hora que entenderdes. Para mim, a hora é indiferente!
Joana voltou-se desta vez para João Falcão.
— Senhor! Vós que me pareceis menos impetuoso, escutai-me!
Com um ar aparentemente sereno, o jovem limitou-se a sorrir.
— Dizei, Joana.
Ela continuou, numa súplica:
— Pensai no momento que atravessamos! Amanhã de manhã sairemos a combate em campo aberto e depois será necessário saltar o muro. Diu precisa de vossos braços! Qualquer de vós fará falta à sua defesa!
Como resposta, D. João Manuel voltou-se para D. João Falcão como se apenas estivessem ali os dois.
— Amanhã, às seis da madrugada, encontrar-nos-emos neste mesmo local.
E fazendo uma profunda venia dirigiu-se, altivo, para dentro fortaleza.
Joana olhou então o fidalgo que ficara junto dela.
— Senhor, meditai bem no que acaba de acontecer!
O jovem sorriu-lhe como se nada de trágico pudesse advir desse recontro.
— Eu sei, estais nervosa devido a este duelo... Mas agora é inevitável.
O archote tremeu nas mãos da jovem Joana.
— Senhor, o duelo é por minha causa!
— O que muito me honra, acreditai.
— Mas é uma loucura, repito!
— Impossível de impedir. Está em jogo a nossa honra de fidalgos e guerreiros.
Joana mordeu os lábios. Aos olhos afloraram-lhe algumas lágrimas. E sem mais qualquer tentativa de reconciliação, a jovem retirou-se. No seu cérebro em tumulto, surgira-lhe uma ideia. Iria procurar o pai e, juntos, informariam D. João de Castro acerca do ocorrido.
A manhã de 11 de Novembro de 1546 nasceu clara e rápida, como rápida descia a noite naquelas paragens. Poucos minutos antes das seis horas, já os dois rivais se encontravam a postos no areal, por detrás da fortaleza, prontos para a luta decisiva. Mas no momento supremo eis que surgiu um emissário de D. João de Castro, que bradou com energia, apesar da sua idade avançada:
— Senhores! Manda D. João de Castro que pareis o vosso gesto irreflectido! A hora é terrível. Dentro de poucos minutos iniciaremos uma grande batalha e não se pode perder desde já uma única gota de sangue português. Assim, o nosso governador propõe-vos o seguinte, que é bem digno dos vossos nomes e da vossa valentia: será dada por finda a vossa pendência, com honra para aquele que primeiro subir o muro que nos separa do inimigo.
Baixando as armas, ambos os contendores aceitaram a proposta, voltando cada um para o seu posto.
O frenesim que antecede os grandes momentos era geral. Esperava-se a ordem de atacar. Os portugueses não ignoravam a sua inferioridade numérica. Mas o desejo de vencer, de não entregar ao inimigo a fortaleza de Diu, dava-lhes força de gigantes! E a ordem chegou, clara, positiva, formal.
Sem hesitações, alguns guerreiros avançaram. Entre eles ouviu-se, forte, a voz de D. João Manuel gritar.
— Vamos! Ou ficaremos lá ou sairemos vencedores! Tenho de passar o muro!
E, correndo, subiu as escadas e lançou um braço ao parapeito. Então, do outro lado, surgiu um inimigo, que lhe cortou a mão, de um só golpe. O valente D. João Manuel agarrou-se com a outra mão, que teve igual sorte. Com os olhos injectados de sangue, fincou os coutos sangrentos na pedra dura, tentando avançar. Logo, porém, um brutal alfange lhe decepou a cabeça...
Enquanto esta cena heróica e dolorosa se passava, D. João Falcão conseguira saltar o muro. Mas em breve se viu envolvido por numerosos inimigos, com tal ferocidade que caiu por terra, retalhado de golpes e banhado em sangue...
Alguém seguia angustiosamente tudo isto: Joana de Sá. Rosto banhado em lágrimas, Joana ia dizendo no íntimo do seu coração:
— Virgem Santíssima! Sofro, porque penso que fui eu que os matei! Salvai ao menos a nossa cidade, embora tenha eu de ser castigada para sempre!
E conta a lenda que, no meio do combate espantoso então travado, a jovem Joana de Sá se transformou numa pedra da própria fortaleza!
A luta, desigual e dura, em breve começou a definir posições. O homens de D. João de Castro forçaram o inimigo e entraram no entrincheiramento. Foi ordenado então a Duarte Barbudo que avançasse com o estandarte real. Mal o viram, os portugueses redobraram de esforços para esmagar os cambaios. Passavam no ar nuvens de flechas. Foi uma luta tremenda. No chão ficavam os cadáveres, amontoados uns sobre os outros. E a vitória coube finalmente, aos portugueses, vencendo um inimigo muito superior em número.
E conta ainda a lenda que de certa pedra da fortaleza de Diu começaram então rolando gotas de água cristalina, como lágrimas humanas, de alegria ou saudade...
Os anos passaram. Muitos anos, séculos sobre séculos. E ainda há pouco tempo, segundo se diz, uma das pedras da fortaleza de Diu voltou a verter lágrimas humanas, como sempre acontece nos grande acontecimentos! Verdade? Fantasia? Tudo é possível, pois a verdade e fantasia, bastas vezes, são irmãs gémeas da própria vida...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 99-104