APL 3021 Lenda da Tragédia do Cabo Girão
O povo de Câmara de Lobos conta uma lenda passada no cabo Girão, há muitos anos.
Num lugarejo junto à penedia, vivia em tempos uma linda rapariga, muito alegre, que era solicitada para todas as festas. Bailava e cantava como ninguém. Todos os rapazes do lugar e de outros lugares vizinhos a procuravam para a pedirem em casamento. Ela, porém, com um sorriso nos lábios, a todos repudiava. Certa vez, sua mãe perguntou-lhe:
— Maria, porque desprezas o amor de todos os rapazes que te procuram?
Ela encolheu os ombros.
— Sei lá! Gosto de todos para bailar mas de nenhum para casar!
A mãe afligiu-se.
— Mas, filha, agora és jovem e bela. Porém, o tempo foge e daqui a pouco ficarás igual a mim! Também fui jovem e bonita como tu. Mas escolhi a tempo marido! Não fui exigente. Por quem esperas?
— Por aquele que o meu coração escolher!
— E quem é ele?
— Não sei. Ainda não nos encontrámos!
— E se não chegar?
— Não me casarei.
— Oh, filha!...
Ela riu.
— E isso que tem, minha mãe? Mais vale ficar solteira do que pertencer a um homem que nos é indiferente.
A mãe calou-se. Mas não ficou convencida.
Dias depois, houve nova festa. Era uma romaria. Viera gente de muitas bandas. E Maria reparou num rapaz estranho ao lugar, que a fitava. Teve desejo de sorrir-lhe. Ela apróximou-se. À volta deles, todos dançavam. Sem dizer palavra, entraram na dança. Bailaram toda a tarde. Sempre os dois. Murmurava-se já. Ela bem o notava. E sorria feliz. Cantavam e brincavam como se se conhecessem desde há muito. Mas nem sequer sabiam os nomes. Quando a tarde começou a declinar e os pares dispersaram, Maria estendeu a mão ao companheiro e disse-lhe:
— Tenho de ir também!
E, gaiata:
— Até breve?
Ele segurou-lhe a mão pequenina.
— Como te chamas?
— Maria.
— Eu chamo-me Pedro. Sou lavrador e vivo em Porto Moniz. Mas quero ver-te amanhã. Por isso ficarei aqui, em Câmara de Lobos. Agrada-te?
— Muito!
— Porque não tens ainda um namorado, sendo tão bela e jovem?
— Porque ainda não gostei de ninguém.
— Acaso poderás vir a gostar de mim?
— Já gosto! Desde que te vi além, encostado àquele rochedo, sozinho, olhando para mim.
Esta confissão sincera, espontânea, encantou o rapaz. Apertou-lhe a mãozinha morena.
— Maria, quero que sejas minha mulher. Virei ver-te amanhã.
— Vai ver-me a minha casa. Quero que conheças os meus pais. Não somos ricos, mas vivemos remediados.
— Tenho o suficiente para mim e para ti. O dinheiro não me aflige.
— Que te aflige, então?
— As guerras! Ainda não recebi o baptismo de sangue. E posso ser chamado de um momento para o outro.
Ela olhou-o de frente, olhos nos olhos, sem sorrir.
— Pedro, quando fores chamado, ficarei à tua espera, seja antes ou depois das nossas bodas.
— Juras?
— Juro!
Uma alegria intensa inundou o rosto do jovem lavrador. Disse-lhe:
— Vou acompanhar-te a casa. De hoje em diante não te quero sozinha por estes caminhos.
A partir desse dia, Maria e Pedro não mais deixaram de se ver. Os pais da cachopa andavam contentes. A filha estava, finalmente, noiva. Encontrara aquele por quem o seu coração esperava. Marcaram o casamento para logo a seguir ao Natal. Mas os projectos não se realizaram. Pedro foi recrutado para a guerra. Maria chorou. Desesperou-se. Rebelou-se. Tudo em vão. Era forçoso que Pedro partisse.
Com a alma carregada de tristeza, o jovem de Porto Moniz veio despedir-se da noiva. Lavada em lágrimas, Maria nem podia falar. Quis subir com ele ao cabo Girão. O rapaz satisfez-lhe a vontade. E no alto, olhando o mar cor de esmeralda, ela falou por fim:
— Pedro tem cuidado! Não te exponhas! Lembra-te que prometeste casar comigo!
Acariciando-a, ele replicou:
— E tu prometeste esperar-me!
Logo ela redarguiu:
— E esperarei! Juro-o de novo! De hoje a um ano, virei aqui todos os dias, para olhar o mar. E descerei ao cais se descobrir algum navio a ancorar. E só será teu o meu pensamento!
O rapaz beijou-lhe os olhos cheios de lágrimas.
— Hei-de voltar! Verás que hei-de voltar!
Num sopro, ela respondeu:
— Acredito! Eu creio que virás em breve!
Lá em baixo, o mar cor de esmeralda resmungou algo que os noivos não entenderam.
Um ano passou. Doze meses longos que pareciam arrastar-se. Maria, que se conservava recolhida em casa, começou a sair. Todas as manhãs subia ao cabo Girão, e lá do alto contemplava o mar cor de esmeralda, que se alteava em ondas junto à costa. E à pergunta muda que Maria lhe lançava, ele marulhava, num segredo: «Espera mais um pouco!»
Certa vez em que Maria descia, encontrou-se frente a frente com um estranho. Parecia esperá-la. Estava ricamente vestido e a poucos passos via-se uma montada ajaezada a rigor. O homem embargou-lhe o passo, dizendo:
— Maria, espera um pouco!
Ela sobressaltou-se. Perguntou inquieta:
— Como sabe o meu nome?
Ele tentou sorrir.
— Há muito que o decorei. Vi-te e ouvi-te cantar numa festa.
A jovem encolheu os ombros:
— Oh! Isso já foi há muito tempo!
— Nem por isso. Foi há pouco mais de um ano.
— Nessa época ainda o meu noivo estava comigo!
— Pois estava. Por essa razão não me aproximei.
— E agora... por que veio?
— Porque estás só. Aqui, posso falar-te.
— Para quê?
— Para que venhas habitar o meu castelo. Sou rico, poderoso. Posso fazer-te feliz.
— Só serei feliz com o Pedro!
— Ele foi para a guerra, segundo me disseram.
— Mas está a voltar!
— Quem sabe se voltará?
— Esperá-lo-ei até ao fim da vida!
O homem riu, nervoso.
— Deixa-te de tontices! Que vale ele mais do que eu?
— Amo-o!
— Eu também saberei amar-te! Pelo menos agora, neste momento em que te desejo com toda a força do meu ser!
Ela assustou-se. Gritou:
— Não me toque!
Ele continuou, rindo:
— Escusas de gritar, porque ninguém nos ouve.
Quis agarrá-la por um braço, mas a rapariga esquivou-se, correndo para o lado do mar.
Ele perguntou, inquieto:
— Para onde vais?
— Vou ter com o Pedro!
— És louca! Do cimo da penedia não tens saída. Bem sabes a altura que te separa do mar!
— Tenho menos medo dele do que dos homens que fazem esperas às donzelas!
Ele tentou acalmá-la.
— Não te precipites! Olha que muitas se mordem de inveja por eu te querer!
— Pois vá buscá-las!
Ele encaminhou-se para ela.
— Mas só a ti desejo e quero!
Ela gritou de novo:
— Fique onde está!
De mansinho, ele foi ganhando terreno.
— Não sejas tonta! Gritar de nada te serve. E se caíres daí, terás morte horrorosa.
— E se não cair?
— Os meus braços te estreitarão com amor!
Nesse mesmo instante, o homem rico estendeu os braços e prendeu a rapariga, tentando beijá-la. Travou-se luta. Luta feroz. Ela mordia-o como louca. Mais louco ainda, ele tentava subjugá-la. De súbito, ela desprendeu-se e nesse mesmo instante o homem sentiu que o chão lhe faltava. Gritou. O seu grito perdeu-se levado pelo vento. E o mar cor de esmeralda recebeu o seu corpo, resmungando.
Apertando as fontes, quase sem respirar, Maria não atinava bem com a tragédia ocorrida no cabo Girão. Desvairada, abria os olhos num espanto. Já não via o homem. Apenas, paciente, o cavalo branco esperava. Atormentada, olhou o mar. Lá em baixo ele sorria-lhe num chamamento. Debruçou-se para efectuar a sua entrega. Porém ouviu-se a jurar a Pedro: «Esperarei! Juro-o de novo! De hoje a um ano, virei aqui todos os dias para olhar o mar. E descerei ao cais se descobrir algum navio a ancorar...»
Maria endireitou o corpo. Perscrutou o horizonte. Sobressaltou-se. Batia-lhe forte o coração. Era um navio o que os seus olhos descobriam. Um navio vindo de terras distantes. Talvez ali viesse Pedro! Talvez!
Esqueceu a tragédia e começou descendo para o cais, como louca, dizendo a quem encontrava:
— Vem aí um navio! Talvez traga o Pedro! Quero o meu Pedro! Quero-o!
As pessoas olhavam-na aflitas. Teria ela perdido a razão? — perguntavam. Mas a rapariga corria sempre a caminho do cais. Atrás dela descia também um cavalo branco sem cavaleiro. E o mar cor de esmeralda guardou para si o segredo da tragédia no Girão.
Só mais tarde, quando Pedro regressou, ferido mas salvo, soube da boca da sua prometida o que havia acontecido. E por mais que ele lhe quisesse fazer ver que ela não fora a culpada daquela morte, Maria não tornou a ser a mesma de outrora. A sua jura cumprira-se apenas em metade. Ela esperara pelo noivo. O seu corpo só a ele pertenceu. Mas o seu pensamento, esse, partilhou-o com o do homem poderoso que por sua rebeldia havia caído do cabo Girão.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 181-185
- Place of collection
- Câmara De Lobos, CAMARA DE LOBOS, ILHA DA MADEIRA (MADEIRA)