APL 2813 Lenda da Torre de Moncorvo

Nesse tempo, D. Fernando I, o Magno, rei de Leão, era o grande inimigo da mourama. Corria o ano de 1062 depois de Cristo — e D. Fernando I entregava-se à ardorosa tarefa de expulsar os mouros da Estremadura.
Ora, segundo reza a tradição popular, vivia então perto de Vilariça, na Torre Susã, um valoroso fidalgo, muito jovem ainda mas cuja bravura entusiasmara o próprio rei. E a tal ponto o conseguira, que este acabou por lhe dar senhorio de várias terras, com a condição de as defender dos mouros. O jovem fidalgo chamava-se D. Mendo ou Menendo Curvo, mas os seus súbditos tratavam-no por D. Mem Corvo.
 
Certa tarde, encontrava-se D. Mem Corvo nos seus aposentos quando um dos criados entrou precipitadamente.
— Senhor, perdoai!
— Que se passa?
Ante o ar autoritário do fidalgo, o criado ainda mais se atrapalhou.
— Senhor, sabei... ficai sabendo, senhor, que está lá fora uma rapariga aflita… muito aflita...
— E que deseja ela de mim?
— Asilo, senhor!
— Asilo?... Porquê?
O criado limitou-se a abrir os braços num gesto de ignorância.
— Não sei, senhor... Sei apenas que está lá fora… que não quer retirar-se... E que teima em falar convosco, senhor D. Mendo!
Por instantes, o fidalgo ficou pensativo, cofiando a sua barbicha arruivada. Depois, num gesto decisivo, ordenou:
— Manda-a entrar.
O criado não chegou a mover-se, sequer, pois nesse mesmo momento uma jovem de invulgar beleza irrompeu no aposento e avançou para D. Mem Corvo. Avançou, tremendo. Tremendo e sorrindo.
— Perdoai, meu senhor, perdoai... mas eu não podia esperar mais... Vim entrando, mesmo sem vossa licença!
E caindo aos pés do jovem fidalgo, clamou numa voz envolta em lágrimas:
— Preciso de falar-vos sem demora, senhor D. Mendo!
Lentamente, cavalheirescamente, o fidalgo ajudou-a a erguer-se. Levou-a até uma cadeira almofadada, onde a sentou, e fez um gesto para o criado, que ainda esperava ordens.
— Podes retirar-te, Fernão. Se precisar de ti, chamar-te-ei
Quando o criado se retirou, o jovem fidalgo sentou-se perto da sua estranha e formosa visita.
— Dizei-me agora, linda donzela: por que me procurais?
Ela suspirou.
— Senhor fidalgo… Eu eu não sou daqui, destas terras… Fui raptada por Pêro Antunes!
D. Mem Corvo olhou-a melhor. Mais demoradamente. Mais profundamente.
— Compreendo… Sois moura, não é verdade?
Ela baixou a cabeça e a sua voz tomou-se menos segura.
— É verdade, sim, meu senhor!
Porém, logo, num assomo de energia, inclinou-se para o fidalgo.
— Mas poupai-me! Peço-vos por tudo que me poupeis!
Voltou a suspirar. A sua voz tornou-se triste, muito triste.
— Não sei onde param os meus parentes… Sinto-me só… completamente só no mundo… Sou uma desgraçada, meu senhor! Tende piedade de mim!...
As lágrimas não a deixaram continuar. Calou-se, chorando amargamente, sentidamente.
D. Mem Corvo tentou acalmá-la.
— Então… por favor!... Não choreis… Olhos tão belos não merecem tantas lágrimas… Dizei-me: como vos chamais?
Zaida, meu senhor… Zaida, para vos servir!
Foi a vez de ele suspirar.
— Zaida, dissestes? É bem um nome mourisco… Preferia que vos chamásseis Joana… Joana, por exemplo. Sim, que vos chamásseis Joana e fôsseis cristã…
Ela limpou as lágrimas mais rebeldes.
— Senhor não me condeneis!... Que culpa tenho eu de ter nascido moura?
O jovem fidalgo baixou a cabeça num assentimento sincero.
— Tendes razão!...
E voltando a olhá-la, como se quisesse ler no seu íntimo:
— Respondei com verdade: por que fugiste para esta torre?
Ela fitou-o desesperadamente.
— Oh, senhor, já vos disse... Essa é a verdade!... Tenho medo de Pêro Antunes... Ele trouxe-me à força... e também à força quer fazer de mim sua mulher. Persegue-me noite e dia... Hoje até tentou amarrar-me, para eu não poder fugir...
E, num grito excitado, a bonita moura explodiu, ficando de pé em atitude de fúria:
— Mas eu detesto-o! Odeio-o! Pêro Antunes é um velho nojento... Nojento! Não quero viver com ele!
De novo, D. Mem Corvo tentou acalmá-la.
— Está bem. Ficareis aqui. Mas com uma condição...
— Qual, meu senhor? Se for para vosso bem...
Ele sorriu.
— Sim, é para meu bem. E também para o vosso... Prometei-me que consentireis em ser catequizada por mim, e vos tomareis cristã como eu. Prometeis?
Fitaram-se. Num olhar doce. Num olhar de mútua compreensão.
— Prometo, senhor!
— Ainda bem!
— Prometo, sim... Mas livrai-me para sempre das garras odiosas de Pêro Antunes!
— Descansai. De hoje em diante, ele não mais vos tocará. Estais na minha torre... e esta torre é sagrada para ele.

Assim aconteceu, de facto. Constou mesmo que o velho Pêro Antunes, furioso e impotente, resolveu mudar de terra, para fugir à troça dos que conheciam a sua malograda aventura de amor..
E um ano passou... A linda moura Zaida, tal como havia prometido, converteu-se, catequizada por D. Mendo Corvo, na não menos linda Joana, cristã pelo coração...
Aos poucos, a simpatia inicial foi-se transformando em amor. Um amor forte, sincero e puro. Um amor grande e verdadeiro, que ligou para sempre as almas de Joana, cristã-nova, e de D. Mem Corvo, o jovem fidalgo destemido.
Logo combinaram as bodas, que muito dariam que falar em toda a região, segundo ele desejava. Talvez até o próprio rei D. Fernando comparecesse, com o seu séquito.
Porém, precisamente na véspera do dia marcado para essas bodas, que prometiam revestir-se de singular sumptuosidade, a bonita Joana caiu doente de certa moléstia estranha que já vitimara muitos habitantes do lugar. Desesperado, D. Mem Corvo consultou mestre Afonso, o maior físico da corte, o qual atribuiu a doença de Joana às febres ocasionadas pela insalubridade do terreno, onde se cultivava quase exclusivamente o linho.
— Mas... achais que ela se poderá salvar?
— Decerto que sim, D. Mendo. É bastante forte para resistir à doença. Deus queira que ela tenha tanta força de ânimo como tem de corpo!
 
O jovem fidalgo logo correu a levar a boa nova à sua bem-amada.
— Joana, meu amor!... Em breve estareis boa... Mestre Afonso assim o disse!
Ela tentou soerguer-se no leito, para o ver melhor.
— Esse é também o meu desejo, acreditai... Que pena eu ter adoecido num dia tão belo para mim!...
D. Mendo apertou nas suas as mãos febris de Joana.
— Mestre Afonso pensa que o mal que vos atacou, e que já atacou também grande parte da população, tem a sua origem no cultivo demasiado do linho...
Joana fez um trejeito de mimalha.
— E se eu voltar a adoecer?... Tenho medo! Tanto medo...
Primeiro houve um suspiro. Grande. Profundo. Depois veio a resposta. Sincera. Emotiva.
— ... Medo de não chegar a ser vossa esposa!
O jovem fidalgo inundou o rosto de sorriso e inclinou-se para ela.
— Nada deveis recear, já vos disse. Serão apenas mais uns dias... Depois, iremos para outras terras vizinhas, que também nos pertencem e onde o ar é melhor.
Uma curiosidade nasceu no olhar dela. No olhar e na voz.
— E vive lá muita gente?
O sorriso alargou-se. A resposta veio salpicada de boa disposição.
— Não, meu amor... Ainda nem sequer essa terra está habitada... Mas eu já dei ordem para que construam rapidamente uma torre, para nós vivermos lá... E aqueles que deverão construir a torre levarão consigo as suas famílias.
— Que maravilha! Será mais uma terra a surgir!
— Isso mesmo! Uma nova terra... Dar-lhe-ei o vosso nome... A Terra de Joana!
Fez-se um ligeiro silêncio entre ambos. Silêncio de palavras, não de pensamentos.
Depois, ela perguntou suavemente.
— Gostais muito do nome de Joana, não é assim?
Ele limitou-se a baixar a cabeça, num gesto afirmativo. Mas ela insistiu.
— E porquê? Por que gostais assim tanto desse nome?...
O jovem fidalgo mirou-a, ainda hesitante. Mas sentiu tal curiosidade no olhar dela, que se decidiu.
— Bem... Já que o desejais saber... devo dizer-vos que desde menino convivi com uma prima, sobrinha de meu pai... Chamava-se Joana... E era tão linda… que mais parecia um anjo!...
— Pensáveis casar com ela?
— Sim, sempre o pensei. Mas pouco tempo demorou o nosso idílio... Ela morreu aos treze anos!
Mais uma vez o silêncio se instalou entre ambos. E foi ainda a jovem doente que, num reflexo íntimo, perguntou:
— E se amastes assim tanto vossa prima… como podereis agora ter amor por mim?
D. Mem Corvo reagiu. Endireitou-se, e respondeu com voz segura:
— Nela amei o anjo, a criança que vi nascer... Em vós amo a mulher que escolhi para esposa!
Quis agarrar-lhe as mãos, mas ela fugiu-lhe meigamente.
— Penso que não devia usar o nome de Joana.
— Porquê, meu amor?
— Porque vos lembrais sempre dela quando por mim chamais...
E lágrimas fortes romperam dos seus olhos, como se ela já não pudesse suportar mais a amargura que a alagava intimamente.
— Joana, meu amor, porque chorais desse modo?... Isso faz-vos mal!...
Ainda chorando, ela confessou baixinho:
— Não é a mim que amais... mas sim à vossa prima em mim personificada... Agora percebo tudo... Como me apetece morrer!
Ele reagiu, num assomo de autoridade.
— Joana, por Deus, calai-vos!... Eu não quero ver o meu amor fugir de novo, levado pela asa negra da morte! Ouvis bem? Não quero! Não quero!
E procurando aconchegá-la no leito, onde ela soluçava fortemente, D. Mendo ajuntou com carinho:
— Agora acalmai-vos, por favor!... Mestre Afonso bem recomendou que evitásseis excitações... Mas vejo-vos tão pálida... Tendes as mãos tão frias... Joana, como vos sentis?
Num fio de voz, já sem lágrimas, ela retorquiu:
— Escutai, meu amor! Eu prefiro morrer a ser a sombra de outra... Prefiro morrer!
Ele tornou a erguer-se, num impulso de impaciência.
— Não faleis em morte! Sossegai... Eu vou buscar Mestre Afonso, e vereis como ele vos curará depressa... Depois iremos para a nossa torre, que já estão a construir... E seremos felizes, muito felizes!
 
Porém, como a tradição do povo guardou religiosamente através das gerações, Mestre Afonso, apesar de toda a sua sabedoria, já nada conseguiu fazer para arrancar à morte a vida que se lhe entregava voluntariamente.
Joana, aquela que fora a moura Zaida, morreu nos braços de D. Mem Corvo, murmurando:
— Amo-vos tanto, senhor... que não posso suportar sombras entre nós dois... mesmo quando essas sombras são as asas de um anjo! 
E diz-se que, tresloucado, ali mesmo Mem Corvo arrancou a espada da bainha e desafiou a morte em altos brados:
— Aqui estou para lutar contigo, morte ingrata!... Um de nós dois terá de sucumbir! Eu quero uma luta sem tréguas, já que teimas em arrancar-me o que eu tenho de mais querido! Por duas vezes me roubaste o meu amor... Onde estás, que não te vejo, morte estúpida e má? Onde estás? Onde estás?...
Durante algum tempo, a razão do jovem Mem Corvo continuou perturbada. Ele não podia ouvir falar sequer no nome de Joana...
Porém, aos poucos, com a ajuda do seu fiel Fernão, Mem Corvo acabou por acalmar, e entrou então num período de apatia, não mais parecendo o valente batalhador doutros tempos...
Entretanto, a torre que mandara construir nas terras vizinhas ficou pronta. D. Mendo mudou-se para lá, depois de destruir por completo aquela onde morrera o seu grande amor!
Em breve, também muitas das pessoas que viviam junto da torre Susã passaram a viver em volta da Torre de Mem Corvo, como então lhe chamavam. E o lugar transformou-se em povoação. E a povoação em vila. E de Vila da Torre de Mem Corvo — derivou finalmente o nome actual de Vila da Torre de Moncorvo, como ainda hoje é conhecida.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 43-48
Place of collection
Torre De Moncorvo, TORRE DE MONCORVO, BRAGANÇA
Narrative
When
1062
Belief
Unsure / Uncommitted
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