APL 2865 Lenda da Senhora do Cais

Narra-se em velhos documentos que o nobre fidalgo D. Manuel Vaz de Castro tinha como esposa a mais bela mulher de Setúbal. Chamava-se Ester e, como o seu nome indica, era de ascendência judaica. De Ester, vivia enamorado — estranhamente, loucamente enamorado! — um pobre pescador chamado Valentim de Jesus.
Em noites claras de luar, Valentim saía no seu barquinho e vogava diante do palácio, em cuja varanda luzia a formosura de Ester.
Ah! Mas esta paixão podia sair bem cara a Valentim! Por isso mesmo, o Tio Augusto, seu velho pai, de rosto cortado pelos sóis e pelas vagas, mais de uma vez o quis desviar do caminho da tentação. Dizia-lhe, apreensivo:
— Rapaz, ouve o que te digo! Não olhes para tão alto... És capaz de cegar! Tens as raparigas da tua laia que ainda não casaram! Qualquer delas daria a vida por ti.
Valentim baixava a cabeça e respondia com humildade:
— Pai, eu sei que tem razão! Eu próprio muitas vezes me censuro e condeno. Mas de que me serve a razão? Já não posso arrancar dos olhos a imagem dela!
— Pois toma cuidado, meu filho, senão arrancam-te os olhos a ti! D. Manuel é forte e poderoso, como sabes... Basta uma palavra dele...
O rapaz olhava o pai, e não só os seus olhos reflectiam tristeza. As suas palavras eram um verdadeiro rosário de amarguras:
— Pai, perdoe-me! Mas para mim basta-me uma palavra dela!
Assustado, o pai tentava impor a sua autoridade.
— Filho, pensa no que dizes! Essa mulher enlouqueceu-te! Será capaz de te matar!
E Valentim respondia invariavelmente:
— Que importa? Eu serei capaz de morrer por ela!
Os tempos passaram. Cada vez mais forte, a paixão doida foi inundando o coração de Valentim. O amor deu-lhe ousadia. Ester sorria-lhe de longe, e esse sorriso incitava-o. Talvez por isso, numa noite serena, vendo Ester debruçada na sua grande varanda, atreveu-se a subir até ela. A mulher recuou assustada. Mas Valentim depressa a sossegou:
— Senhora, perdoai-me! Mas o fogo que arde em mim não me deixa calar por mais tempo.
Na sua voz doce, ela inquiriu:
— E que ides dizer?
Valentim aproximou-se dela. A brisa que corria leve acariciava-lhe o rosto e as mãos. Ester fez um gesto a detê-lo. Os seus olhos estavam presos aos dele. E como Valentim se preparasse para responder-lhe, ela apressou-se a falar:
— Já sei o que ides dizer! Já sei! Eu vejo-vos todos os dias o mesmo olhar, a mesma esperança… Pobre jovem! Bem cruel é o vosso destino!
— Cruel, porquê, senhora, se vos oiço… se vos vejo… se vos sinto tão perto de mim?...
Ela baixou a voz.
— Precisamente por isso… porque pecais pensando em mim... e porque me obrigais a pecar, pensando em vós. Ide! Fugi enquanto é tempo... Ai, se o meu marido vos descobre!... Sois novo e a vida é tão bela! Procurai outra mulher… Esquecei-me!
Ele sussurrou-lhe:
— Impossível!
— Porquê? Fugi para bem longe!
— É como se me ordenásseis — ficai! — Como poderei fugir e procurar outra, se o meu coração pesa demais para o fazer? Pesa tanto, que tenho a impressão de que não mais sairei daqui!...
O moço Valentim tinha razão nos seus pressentimentos. Ouvindo vozes na varanda, D. Manuel Vaz de Castro apareceu de súbito, gritando:
— Quem és tu, vilão?
Valentim perfilou-se na sua frente.
— Um homem, senhor fidalgo. Sou apenas um homem.
— Pois não o serás mais!
E ajuntando o gesto à palavra, o fidalgo ergueu a espada e embebeu-a no corpo de Valentim, gritando ainda:
— Toma, vilão! É assim que eu falo com os da tua laia!
O corpo de Valentim caiu, banhado em sangue. Ester, com o desespero no coração, gritava alucinada:
— Senhor! Piedade! Piedade!
Mas o fidalgo, voltando-lhe as costas, respondeu-lhe com serenidade aparente:
— Calai-vos! Que eu não vos oiça... para ignorar que estais aqui! Quanto a este vilão, vou atirá-lo ao mar. Que as ondas o levem para bem longe!
Ester levou as mãos ao rosto para não ver o corpo ensanguentado e já sem vida de Valentim. Um choro convulsivo sacudiu-a. E um baque surdo nas águas tranquilas repercutiu-se no seu coração...
 
Sempre caprichosas, as ondas não levaram para longe o corpo de Valentim. Na manhã seguinte, quando o Tio Augusto saiu de casa e desceu à praia, os seus olhos quedaram-se atónitos, fitando aquele corpo inanimado.
Correu para ele. Afagou-lhe os cabelos empastados, chorando e falando ao mesmo tempo.
— Meu filho! Meu Valentim! Não me quiseste ouvir… não quiseste ouvir a razão! Meu pobre filho! Que a maldição caia sobre os que te mataram!

Isto é o que conta a História. Porém, a Lenda acrescenta que Ester, transtornada por quanto se passara na sua frente, abandonou a casa do marido e recolheu a um convento, entregando-se a uma vida exemplar de sacrifício e devoção. E o caso foi esmorecendo no rancor do povo. Todavia, um homem continuava a não lhe perdoar: Augusto, o pai de Valentim. Quando vinham contar-lhe algum acto de grande caridade praticado por Ester e louvavam a sua conduta, ele exclamava furioso:
— Não me venham dizer que essa mulher é santa! É a criatura mais falsa que eu conheço!... Foi ela a única culpada da morte do meu Valentim!
Ora, esta opinião do velho Augusto chegou aos ouvidos de Ester. E logo ela enviou alguém a suplicar-lhe que viesse falar com ela ao convento.
 
Assediado, ele acedeu de má vontade. Mal o viu, Ester deixou correr livremente o pranto que a oprimia. Depois falou-lhe, cheia de humildade:
— Sei a razão do vosso ódio. Reconheço que, em parte, fui culpada da morte do vosso filho. Eu nunca deveria ter alimentado a esperança no coração desse belo moço. O meu arrependimento é sincero. Apoquenta-me o remorso. E peço a Deus que me atormente com os castigos que mereço! A morte de Valentim foi o começo do meu calvário!
A voz extinguiu-se-lhe no peito. A comoção sufocava-a. Porém o velho, com a chaga do desespero cada vez mais viva, gritou colérico:
— Impostora! Nem um milagre ouvis bem? — nem um milagre me faria mudar de opinião a vosso respeito! Sois a mais miserável das criaturas! 
Ela mordeu os lábios, curvou a cabeça e murmurou apenas:
— Que se cumpra em mim a Soberana Vontade do Senhor!
Em silêncio, o velho retirou-se. E a pobre monja recolheu-se também — mais humilde, mais abatida, mais distante daquela mulher bela e airosa que Valentim descobrira certo dia.

Conta ainda a lenda que, não muito tempo depois da conversa do Tio Augusto com a monja do convento, o tal milagre em que ele falara deu-se na verdade!
Ali, no cais de Setúbal, havia uma imagem de Nossa Senhora, adorada pelos pescadores. Certa vez, no turbilhão das lutas, atiraram essa imagem ao mar. Um pescador velho mas corajoso atreveu-se a ir buscá-la debaixo das balas. Era o Tio Augusto. Mas quando chegou a terra e os outros o rodearam, parecia aparvalhado, olhando a imagem de Nossa Senhora. Como lhe perguntassem o que se passava, ele, no auge da excitação gritou-lhes:
— Vejam! Estão a ver? É a Nossa Senhora... mas com a cara da outra… daquela que matou o meu filho! Afinal… deu-se o milagre! Ela deve falar verdade! Deve ser hoje uma pessoa de bem! Bendito seja o nome de Deus!
Em coro os outros responderam:
— Ámen!
Tomado dum repentino ataque de choro, o velho lobo do mar, que afrontara as ondas e afrontara as balas, caiu de joelhos, beijando a imagem da Senhora do Cais!
E desde esse tempo, na tradição lendária, a imagem de Nossa Senhora do Cais que ainda hoje existe em Setúbal — num novo nicho e sempre adorada pelos pescadores — tem o rosto daquela que se pusera ao serviço de Deus para apagar o pecado de ter consentido, sendo esposa dum poderoso fidalgo, no amor dum pobre homem do mar.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 75-78
Place of collection
SETÚBAL, SETÚBAL
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography