APL 3035 Lenda da Pedra Mágica
Em tempos muito recuados, antes mesmo da Nacionalidade, existia em Requião a casa de um velho fidalgo que tinha uma filha lindíssima chamada Bárbara. Perto dessa casa vivia um outro fidalgo irmão do de Requião, o qual, por sua vez, tinha um filho chamado Ricila.
Nascera Ricila e crescera tão cheio de boa ventura que a todos abismava. Os criados diziam que Ricila recebera ao nascer, de um velho que viera do Oriente, uma estranha e bela pedra preciosa que ele usava num dos dedos, encastoada num anel, e à qual atribuíam poderes mágicos.
Ricila fez-se homem. Era belo, rico, e conseguia tudo quanto ambicionava. Mas a pedra mágica não o dotara apenas de belas qualidades físicas. Ricila era bom, valente, e encantava quem tinha a dita de conversar com ele. E Ricila amava sua prima com tal veemência que jamais poderia amar outra qualquer.
Bárbara e Ricila davam longos passeios pelo campo. Acompanhavam-nos a certa distância duas damas de companhia da jovem fidalga.
Uma tarde, depois de cavalgarem durante uma hora, resolveram descansar à sombra de frondosas árvores. Os pássaros brincavam despreocupados, fugindo uns dos outros. Bárbara olhava-os enlevada. Por fim exclamou:
— Como eles são felizes!
Ricila tomou-lhe uma das mãos.
— E vós, minha prima, não o sois?
Ela sorriu.
— Tanto, que receio a inveja dos próprios passarinhos!
Riu, alegre, o jovem cavaleiro:
— Bárbara, nada deveis recear. Tudo quanto vos aconteça terá reflexo em mim. Ora, eu serei sempre feliz! Portanto...
A jovem tapou-lhe a boca com a sua pequenina mão. Ele agarrou-a e cobriu-a de beijos. Depois perguntou:
— Porque impedistes que eu falasse?
Bárbara já não sorria.
— Não sei. Foi uma estranha impressão que senti. Não devemos vangloriar-nos assim da nossa felicidade e atribuí-la a nós próprios.
— Mas eu não a atribuo a mim: atribuo-a a esta pedra mágica...
E mostrava a jóia rara que trazia no dedo.
— E se a perdêsseis?
Sorriu, o jovem cavaleiro.
— Se a não perdi enquanto menino irrequieto, não será agora que a irei perder...
— Sei lá!
Continuava triste, a donzela. Então Ricila propôs:
— Voltemos para casa. Este fim de tarde está a tornar-vos melancólica.
Sem responder, a jovem levantou-se. Quando ia a montar, escorregou. Ricila apressou-se a agarrá-la. Ela, porém, dera um jeito ao corpo e ficara magoada. Voltaram para casa. De súbito, a jovem exclamou:
— Ricila! Não tendes a vossa pedra!
O jovem olhou o anel onde a pedra costumava refulgir. Alarmou-se:
— Bárbara, perdi o meu talismã! Volto ao campo onde estivemos. Devia ter sido quando ias caindo e eu vos ajudei... Não compreendo como isto foi!
Bárbara estava pálida. A emoção que a tomava era demasiadamente grande para falar. Fez ao noivo um gesto com a mão para que partisse, e ele correu a buscar o seu cavalo. Tinha pressa de voltar à posse da sua pedra mágica!
Três dias passaram. Ricila não encontrara a pedra. Deixara de sorrir, de ser feliz. Bárbara adoecera subitamente, de mal desconhecido. Todos os criados de Bárbara e de seu noivo andaram pelo campo, horas e horas, na ânsia de encontrar a pedra do anel de seu amo. Ricila oferecera uma verdadeira fortuna àquele que a encontrasse. Mas tudo em vão.
O jovem cavaleiro passava os dias junto da sua amada, que ardia em febre. Uma febre terrível, que a prostrava. O desespero tomava o coração e o cérebro de Ricila. Suplicava:
— Bárbara, não fecheis esses olhos tão belos! Quero vê-los! Quero sentir o vosso olhar sobre mim!
A jovem tentava sorrir-lhe. Um simples esgar que tornava mais profunda a tragédia daquele amor cujo futuro era uma incógnita.
Às vezes, quando tudo estava em silêncio, Ricila pedia:
— Amor, não vos deixeis adormecer! Dizei-me qualquer coisa! Tenho horror a esta espera interminável! Dizei-me algo que alegre o meu coração!
Tentando reagir, a jovem confessava:
— Amo-vos tanto… meu amor! Amo-vos… sempre vos amei… e desejaria não estar enferma...
Mas a jovem empalidecia cada vez mais. Perdia as forças. E Ricila, que se alojara no palácio dos seus tios, passava horas seguidas sem dormir e sem comer, suspenso da respiração da sua bem-amada. No solar dizia-se que Ricila estava mais enfermo ainda do que Bárbara.
Ora, uma noite, já quase madrugada, os pais do jovem, que tinham ido visitar a sobrinha, haviam persuadido Ricila a descansar um pouco na antecâmara. Bárbara parecia também dormitar. De súbito, ele ouviu um choro convulsivo. Correu ao quarto de Bárbára. Ela parecia sorrir. Mas desmaiara. Foi um vaivém de criados para chamar o fisico. Mas o que a tinha visto antes partira para a Galiza a fim de ver outra enferma. Ricila e os pais de Bárbara desesperavam. A jovem não voltava a si. Ricila esteve três dias e três noites à cabeceira da noiva, sem comer nem dormir. Também não se lamentava. Ouvia de olhos muito abertos o que os pais de Bárbara diziam. Era preciso enterrar a jovem, pois ela havia deixado de viver. Ao terceiro dia, quando se dispunham a enterrar a formosa donzela, Ricila levantou-se do cadeirão onde parecia colado, beijou ternamente a jovem que era tudo para ele e murmurou:
— Esperai um pouco. Eu não tardarei a seguir-vos. Perdi aquela maravilhosa pedra mágica e o nosso destino mudou!
Calou-se. Parecia extático. Subitamente levou uma das mãos ao peito e caiu desamparado no chão. A dor matara-o.
Choravam-no os pais de Bárbara e de Ricila. Ali mesmo decidiram enterrar juntos os dois jovens. Levaram-nos para o panteão da família. Aí ficaram para serem visitados pelos amigos e servidores até que se realizassem os funerais.
Ladeando os ataúdes, estavam os criados e criadas com círios nas mãos. De súbito, um deles gritou:
— Olhai! A nossa ama... está a sentar-se!...
Assim era. O letargo que havia transformado Bárbara num aparente corpo morto desaparecera e ela voltava à vida! A surpresa e o medo que se apoderou dos servidores do palácio obrigou-os a fugir. Mas os pais de Bárbara correram para ela e verificaram que não se tratava de um ser sobrenatural mas da sua própria filha que revivia. O letargo não lhe havia parado o coração: apenas o havia adormecido.
Tão grande era o contentamento dos pais de Bárbara quão profundo o desgosto da jovem ao inteirar-se da morte do seu bem-amado. Chorava, suplicando:
— Não quero viver sem o meu doce cavaleiro! Quero vê-lo! Quero ouvi-lo! Preciso da sua mão a apertar a minha!
Mas a morte de Ricila era mesmo morte. Não mais voltou à vida aquele jovem belo, másculo, de expressão ao mesmo tempo doce e enérgica. Então, Bárbara prometeu:
— Ricila, meu bem-amado! Não gozarei este mundo sem ti, nem mais um momento. Vou esperar que Deus me chame a ver-te, para o mosteiro onde tantas vezes parámos para conversar à sua sombra! Hei-de chorar e recordar o nosso amor o resto dos dias que terei para viver. E não será pecado recordar um homem de amor tão puro e forte, que morreu por não poder sobreviver à nossa separação. Mas o mundo enganou-vos, meu bem! Eu vivia ainda. E sou eu, agora, que terei de sobreviver-vos?
Os pais de Bárbara enlaçaram-na e carinhosamente a levaram do panteão. Ela deixou-se conduzir. Depois olhou o aposento que tantas horas felizes lhe conhecera, e declarou:
— Meu pai! Espero que não leve a mal, mas quero cumprir a minha promessa o mais brevemente possível. Quero entrar para o mosteiro.
Não responderam os pais. A dor continuava a subjugá-los. No parapeito do varandim, os passarinhos esvoaçavam, pipilando. Bárbara sorriu pela primeira vez e murmurou:
— Como são felizes os passarinhos! Como são felizes!
Calou-se. Suspirou fundo. Olhou o crucifixo que tinha num dos móveis da antecâmara. E caiu de joelhos, soluçando.
Entrou Bárbara para um convento. E ali permaneceu o resto da sua vida, recordando e chorando sempre aquele que a havia amado de maneira tão fiel.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 277-280
- Place of collection
- Requião, VILA NOVA DE FAMALICÃO, BRAGA