APL 3027 Lenda da Fidalga de Branco

Quem percorreu descansadamente a estrada que liga Braga ao Gerês decerto ouviu falar na «fidalga de branco», esse vulto fantástico e diáfano que aparece em noites de luar, vagueando por entre as paredes vazias do velho Castro situado nas terras que ficam entre o rio Homem e o rio Cávado. Pois essa fidalga tem a sua história. Uma história que vou contar.

Há muitos anos já que entre as mui nobres famílias de Castro e as da Tapada existiam as melhores relações de amizade. D. Francisco Machado — o senhor do castelo de Castro — apaixonara-se perdidamente por uma jovem senhora de Ponte da Barca, D. Maria da Silva. Como esse amor transbordava de si mesmo, tomou para confidente seu primo D. Jerónimo de Sá. E levava horas e horas falando apenas da sua bem-amada. D. Jerónimo ouvia em silêncio. Porém, certo dia não se conteve e perguntou:
— Francisco, tendes a certeza de que a vossa dama é assim tão bela?
D. Francisco, olhos perdidos num ponto vago, sublinhou com calor:
— Não existem palavras que a descrevam, acreditai! O que vos digo é apenas um esboço dessa obra-prima. Sabeis como lhe chamo, só para mim, quando estou longe dela?
D. Jerónimo não sentiu grande curiosidade, mas indagou:
— Como lhe chamais?
Sempre num tom apaixonado, D. Francisco declarou:
— Chamo-lhe Nossa Senhora da Silva!
D. Jerónimo riu.
— Calculem como estais preso, meu primo! Nossa Senhora!... Não achais que ides longe demais?
— Para mim, ela é como uma santa! Adoro-a!
D. Jerónimo continuou a rir.
— Pois se assim é... casai-vos, e depressa!
D. Francisco entusiasmou-se.
— É esse o vosso conselho? Vós, que detestais os casamentos?...
O outro encolheu os ombros antes de responder:
— Que quereis que vos diga? Eu detesto os casamentos porque nunca amarei como vós, com semelhante exagero...
D. Francisco atalhou:
— Não há exagero, podeis crer! Quando a conhecerdes, compreendereis.
D. Jerónimo voltou a rir.
— Não penseis, senhor meu primo, que os meus olhos vêem o mundo como vós o observais. Mas, de qualquer forma, sei apreciar as mulheres bonitas. E, já agora, uma pergunta: ela ama-vos de igual modo?
Sorriu enleado D. Francisco.
— Assim o creio!
— Então porque esperam? Nesse caso estão a perder um tempo precioso.
D. Francisco apertou a mão do primo.
— Tendes razão! Cada segundo sem ela sinto-me envelhecer! Seguirei o vosso conselho. Vai terminar a minha vida de solteiro!
D. Jerónimo voltou a rir, e ambos seguiram pela alameda que os levava ao castelo de Castro.

Tal como D. Francisco havia dito a seu primo, o casamento foi celebrado e a jovem D. Maria da Silva entrava como ama e senhora no castelo de Castro pelo braço de seu marido D. Francisco Machado.
D. Jerónimo, o primo descrente, ao encarar com a sua nova prima não conseguiu disfarçar a surpresa. Ela era maravilhosa! Muito mais bela ainda que havia previsto! Algo de estranho e atraente havia no seu olhar, na sua voz, nos seus gestos discretos. Algo que o deixava irremediavelmente preso, ele que sempre fora um céptico em questões de amor!
Durante dias, semanas, meses, D. Jerónimo buscou um instante em que pudesse encontrar-se a sós com D. Maria. O amor estalava-lhe o peito e só com ela queria desabafar. Mas esse momento tardava. E esse facto tornava-o inquieto, revoltado contra a própria situação, esquecido de todas as conveniências devidas. Um dia, porém, esse momento surgiu. Parecia arranjado propositadamente para D. Jerónimo. D. Francisco afastara-se para uma povoação vizinha e D. Maria sentiu desejo de passear sozinha pelo parque. Mas afastou-se demasiado. Em dada altura sentiu passos. Indagou:
— Sois vós, meu bom esposo?...
Duas mãos afastaram um arbusto, e a figura alta de D. Jerónimo surgiu diante da jovem senhora. Esta teve um ligeiro movimento de susto. Dominando-se, o fidalgo pediu:
— Senhora, perdoai-me a ousadia... mas há uma eternidade que espero este momento!
D. Maria não compreendeu logo as intenções do primo de seu esposo. Deu-lhe a mão para que ele a beijasse. Sentindo a ardência, a sofreguidão daquele beijo, retirou-a, perguntando:
— Que se passa, senhor D. Jerónimo?
Sem perder tempo, o fidalgo replicou:
— Passa-se, senhora, que apesar da minha descrença no amor… estou verdadeiramente apaixonado!
— Alegro-me por isso! A paixão sempre fez bem aos homens.
— A paixão ou os exalta ou os avilta. Depende do objecto amado.
— Decerto. Mas não creio que não soubésseis escolher… depois de terdes conhecido tantas mulheres!
— Senhora... Creio bem que não soube escolher!
— Se ela é indigna do vosso amor, tentai esquecê-la.
— Eu é que não devo amá-la!
— Então porque a amais?
— Porque o homem não pode dominar-se quando a paixão o domina!
— Pois aconselhai-vos com vosso primo. É vosso amigo e nunca descurou qualquer assunto de honra.
— Bem o sei. Por isso mesmo é que ele não deve saber o que se passa comigo.
— E porquê?
— Porque é a vós que eu amo, senhora!
D. Maria levou uma das mãos ao rosto e exclamou, aflita:
— Oh, calai-vos, senhor! Nem uma palavra mais!
— Impossível! Agora terei de ir até ao fim!
— Já vos disse o que deveis fazer!
— Eu sei!
E pegando numa das mãos de D. Maria, cobriu-a de beijos apaixonados. Ela tentou recuar.
— Largai-me, senhor! Pois nem sequer respeitais a amizade de vosso primo?
A paixão de D. Jerónimo estava ao rubro. Ciciou:
— Neste momento não respeito nada… nem ninguém!
Agarrou-a fortemente, dizendo:
— Só te quero a ti!... A ti, meu amor!
Libertando-se, D. Maria tentava impor-se.
— Basta! Pagareis cara a vossa ousadia! O vosso primo é intolerante em questões de honra, bem o sabeis! Afastai-vos!
Mas D. Jerónimo cada vez dominava melhor a jovem senhora, que sentia ir perdendo as forças. Aterrorizada, gritou:
— Ó meu Deus! Valei-me!
D. Jerónimo julgava já ganha a sua causa quando ouviu passos apressados. Afrouxou um pouco o abraço com que prendia a jovem, para escutar melhor.
Então, D. Maria voltou a gritar:
— Meu Deus! Valei-me!
Nesse mesmo instante o comendador D. Henrique de Sousa surgiu na alameda. Ouvira a luta ao passar na estrada. Saltara o muro. Gritou:
— Que é isso, canalha? Tentais abusar de uma mulher indefesa?
D. Jerónimo largou a sua presa. Sem mostrar completamente o rosto, regougou:
— Metei-vos na vossa vida! Não sois para aqui chamado!
O outro respondeu-lhe com energia:
— Enganais-vos! Sou sempre chamado quando a honra de alguém está em perigo!
— Desaparecei daqui!
— Não, sem vos expulsar!
— Expulsar? Acaso tendes autoridade bastante para tal?
— Sou um homem de honra e vós sois um ladrão, decerto!
— Vede o que dizeis!
Dizendo isto, D. Jerónimo mostrou o rosto. O comendador, mais velho que D. Jerónimo, teve uma expressão de espanto:
— Pois é possível? Vós… o primo co-irmão do dono desta casa?
O outro gracejou:
— Sempre tivemos os mesmos gostos... É esse o mal!
O comendador enfureceu-se.
— D. Jerónimo de Sá! Eu vos digo, à fé de quem sou, que se não desaparecerdes imediatamente, amanhã mesmo sereis preso!
D. Jerónimo sorriu. Um sorriso estranho. Olhou D. Maria, que chorava em silêncio. E disse:
— Está bem, eu irei! Mas em breve nos encontraremos de novo!
E num movimento ligeiro saltou o muro, para a estrada. Entretanto D. Maria, envergonhada com o que se passara, olhou o seu salvador.
— Senhor, nem sei como agradecer-vos!
Numa vénia, o comendador replicou:
— Esquecendo tudo quanto acaba de passar-se.
— Foi a Providência que vos enviou em meu auxílio!
Ele ofereceu-lhe o braço.
— Pois, se me permitis, é em nome dessa mesma Providência que vos acompanho a casa. Enquanto estiverdes só, podereis ter maus encontros!
Ela tentou sorrir.
— Quanto vos agradeço!
E caminharam juntos em direcção à casa.
 
Mal podiam eles adivinhar que, a essa mesma hora, a vingança ardia em altas labaredas de ódio no coração de D. Jerónimo de Sá. Fugindo dali, montou a cavalo e correu ao encontro de seu primo. Quando o avistou ia pálido e de feições transtornadas. D. Francisco assustou-se.
— Que aconteceu?
— Uma coisa horrível!
D. Francisco fez parar o cavalo. Gritou:
— Falai, depressa! Não vedes a minha angústia?
— É horrível o que tenho a dizer-vos!
D. Francisco bem o notava. Gritou mais:
— Que aconteceu a minha esposa?
D. Jerónimo olhou-o bem nos olhos. Todo o seu ódio fervia agora por D. Maria, o primo que a possuía, o comendador que surgira de imprevisto. Não se calou:
— Francisco! A vossa mulher...
Calou-se propositadamente. D. Francisco tremia de impaciência.
— Dizei, depressa! Que lhe aconteceu?
D. Jerónimo meneou a cabeça:
— Meu primo, tende calma! É doloroso o que ides ouvir.
— Ela morreu?
— Antes isso!
O outro gritou como louco:
— Falai, ou não respondo por mim!
— Pois bem: sem ser visto, fui encontrar vossa mulher… com o comendador D. Henrique de Sousa!
D. Jerónimo teve de afastar-se para não ser atingido pela espada de D. Francisco.
— Mentis! Confessai que mentis!
— Vi com os meus próprios olhos! A esta hora talvez ainda os apanheis em vossa casa!
— Em minha casa?
— Sim! Ela foi ter com ele ao fundo do parque, mas ambos regressaram a casa!
D. Francisco rangia os dentes.
— Vinde comigo! Se for verdade, mato-os a ambos! Se for mentira, sereis vós quem arrostará com a minha ira!
— Pois seja!
E dando esporas aos cavalos, D. Jerónimo e D. Francisco seguiram a caminho do castelo de Castro. Ao acercarem-se dele, abrandaram a correria. D. Jerónimo lembrou:
— Devemos entrar sem fazer barulho.
Da alameda, D. Francisco divisou dentro de casa o vulto de sua mulher e o de um homem. O coração batia-lhe como um louco. A raiva e o ciúme transtornavam-lhe os pensamentos. O primo segredou-lhe:
— Ainda duvidais?
D. Francisco sibilou:
— Só a morte poderá vingar tamanha afronta!
D. Jerónimo, também pálido e nervoso, lembrou:
— Encarregai-vos da vossa esposa, que eu me encarregarei do comendador!
Tresloucado, D. Francisco viu sair D. Henrique de Sousa. D. Jerónimo falou baixo:
— Este vou já eu apanhar! Correi vós a agarrar a vossa presa!
E enquanto D. Jerónimo caía sobre o velho comendador, D. Francisco entrava ébrio de ciúme na alcova onde sua esposa acabara de se recostar. Vendo-o de espada em punho, ela perguntou:
— Que ides fazer, senhor?
— Encomendai a vossa alma a Deus, porque vou matar-vos!
— Matar-me?
— Sim! Preciso lavar com sangue a minha honra ultrajada! Meu primo Jerónimo preveniu-me a tempo!
— Jerónimo? Mas... acreditais nele?
Secamente, D. Francisco gritou:
— Nem mais uma palavra!
E brandindo a espada viu que a esposa caía no chão sem que esta a houvesse tocado. D. Maria dissera apenas:
— Que o Divino Espírito Santo nos proteja!

E conta a lenda que a infeliz senhora, morta subitamente sem que a espada lhe tenha tocado, vagueia ainda hoje, junto ao antigo castelo, bela como sempre, envolta em tecidos leves e brancos, como se não mais se pudesse afastar do local onde fora tão feliz e onde a desgraça a atingira.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 221-226
Place of collection
Crasto, PONTE DA BARCA, VIANA DO CASTELO
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography