APL 3033 Lenda da Cabana do Remorso
Esta lenda conta-se no concelho de Meda e situam a sua origem numa povoação que é freguesia desse concelho e se chama Longroiva. Diz-se que tudo se passou há muitos anos, antes mesmo desta região ser Portugal.
Conta a lenda que em Longroiva vivia um grande senhor chamado D. Ramiro de Altar. Era poderoso, nobre e bom. Apesar disso, já estava quase a fazer trinta anos e não havia arranjado noiva. O porquê desse facto era a sua exigência na escolha. Queria para esposa uma mulher tão bela de corpo como de alma!
Os parentes de D. Ramiro convidavam-no a visitar os seus castelos para que ele escolhesse noiva entre as damas mais requestadas. Porém, D. Ramiro sempre voltava desanimado aos seus domínios. Se encontrava dama que o encantasse pelos seus dotes físicos, logo a encontrava vaidosa, egoísta, indolente. Se, pelo contrário, as suas virtudes o entusiasmavam, não gostava da sua voz, ou do seu corpo, ou das suas feições.
Quando havia já desistido do seu propósito, resignando-se a continuar solteiro, a casualidade levou-o, certa tarde em que passeava sozinho, a uma localidade próxima. A sede atormentava-o e procurou uma fonte. Encontrou-a. Desmontou. Uma jovem aldeã enchia um cântaro.
Sentindo passos, a jovem voltou-se. D. Ramiro viu o recorte do seu corpo, a sua cara bonita, os seus olhos rasgados e brilhantes. Disse, sorrindo:
— Tenho sede.
Logo a jovem inclinou o cântaro, dizendo com timidez:
— Senhor, esta água é vossa.
D. Ramiro bebeu. Entregou o cântaro. Depois perguntou;
— Onde morais?
— Aqui perto.
— Nunca saístes deste lugar?
— Para quê, Senhor? Aqui vivo com o meu pai, minha mãe e meu irmão.
— Não tendes conversado?
— Não, meu senhor.
— Porquê?
Ela corou. D. Ramiro insistiu:
— Porquê, se sois tão bela e me pareceis tão bondosa?
Ela encolheu os ombros. A sua voz doce soava a timidez.
— Senhor, se fosse tão bondosa como vos pareço, já teria aceitado o convite de Fernão.
— E porque não aceitastes?
— Porque... não sei bem... Porque não desejo muito estar junto dele, embora os meus parentes o admirem.
— Não gostais dele?
— Eu gosto, Senhor! Desejo que ele seja feliz. Porém… não me atrevo a pensar que um dia seria sua mulher... Não sei porque é isto!
— É porque não o amais.
— É o que ele me diz.
— Não falais com ele muitas vezes?
— Não.
— Porquê?
— Porque fujo dele.
— E porque estais agora a falar comigo?
A jovem fez-se vermelha.
— Senhor... perdoai... já devia ter-me ido embora!
— Esperai! Dizei-me como vos chamais.
— Rosa.
D. Ramiro sorriu.
— Olhai bem para os meus olhos, Rosa, e ouvi o que vos vou dizer: não amastes ainda esse tal Fernão porque estáveis destinada para mim, que ainda não conseguira escolher esposa!
Ela ficou surpreendida.
— Que dizeis, Senhor? Vós?... Sou uma pobre filha do povo!
— Bem vejo. Mas sereis vós a minha esposa!
Pouco tempo depois, com grande assombro por parte da nobreza, o castelão D. Ramiro casava-se rodeado de grande pompa com a mais humilde aldeã dos seus domínios. Vestiu-a ricamente e foi-lhe dando lições para que ficasse à altura de receber as damas da sua família e amizade. Porque era inteligente e amava muito o seu senhor, Rosa depressa aprendeu o que lhe faltava para responder a todos os requisitos desejados por D. Ramiro, o marido difícil de contentar.
A dita do castelão durante os dois primeiros anos foi perfeita. Um dia, porém, a guerra chamou D. Ramiro. Era necessário partir. Passado o primeiro momento de desespero, os dois esposos conseguiram a resignação necessária para aceitarem o que o destino lhes reservara, justamente quando esperavam o primeiro filho.
Fazendo das fraquezas forças, Rosa despediu-se daquele a quem havia jurado fidelidade. As últimas palavras de D. Ramiro antes de esporear o cavalo, foram para a mulher:
— Meu amor! Quando voltar hei-de ver à vossa beira um herdeiro digno do nosso nome!
Ela não teve coragem para falar. Mas o seu olhar disse quanto iria sentir a falta do marido, nesse castelo enorme onde tão cedo não tornaria a ouvir a sua voz.
A guerra foi larga e dura. Rosa, a solitária esposa, esperava impacientemente o regresso do marido. Mas ao castelo apenas chegava a fama das suas façanhas. E D. Ramiro, lá longe, sonhava noite e dia com a hora do regresso.
Certa vez, D. Ramiro salvou a vida a um aventureiro, não sem que este ficasse gravemente ferido. O cavaleiro salvo conseguiu ganhar a estima e confiança de D. Ramiro de tal modo que conseguiu dele licença para se ir recompor, no seu castelo, dos ferimentos recebidos.
D. Gonçalo — que era o nome do cavaleiro — meteu-se ao caminho, disposto a curar-se e a cumprir o encargo de entregar à esposa do seu novo amigo uma carta que este lhe enviava.
Era quase ao fim da tarde quando D. Gonçalo chegou ao castelo. Recebido com delicadas atenções por parte da castelã, logo lhe entregou a carta de D. Ramiro. Rosa afastou-se para a ler com emoção. Nela encontrou renovados os protestos de amor e a promessa de um rápido regresso.
Radiante, Rosa voltou para junto do seu hóspede, a quem, na carta, o marido fazia lisonjeiras referências. E dia após dia ficavam a ver o Sol descer no horizonte, falando da corte, das guerras, das damas solitárias e tristes...
Um mês passou. D. Gonçalo, já curado, não falava em voltar para junto de D. Ramiro. Apaixonara-se loucamente por essa linda mulher, esquecendo que ela era a esposa daquele a quem devia a vida.
Como Rosa nunca assistira a torneios e se interessava vivamente por tudo quanto pertencesse à classe nobre, soube o galanteador servir-se do poder de descrição para conquistar a amizade e o interesse da castelã. A sua juventude, a sua voz de bom trovador, a maneira elegante como falava, fizeram o resto. Rosa começou por ouvir o seu hóspede com simpatia e acabou por escutá-lo com paixão. Então, vendo D. Gonçalo que havia chegado o momento de assegurar o seu triunfo, imaginou recorrer a um ardil. Falou então do momento em que deixara D. Ramiro, dizendo que este ficara gravemente ferido. Rosa assustou-se:
— Senhor, mas…
Ele acudiu:
— Sem esperanças de salvação.
Rosa ergueu-se, aflita.
— Que dizeis?
— A verdade, minha boa amiga!
— E porque só agora me falais em tal?
— Porque receei pela vossa vida… se tivesse usado desta franqueza logo que cheguei!
Rosa mordeu os lábios. Compreendia a alusão. Terminou:
— Devíeis ter-me dito a verdade!
Fingindo-se compungido, ele redarguiu:
— Sim, devia! Peço-vos que perdoeis a minha fraqueza.
— E como saberei de meu esposo?
— Ele disse-me que, se ao fim de dois meses não recebêssemos notícias dele, vos entregasse o seu último adeus.
Rosa cobriu o rosto com as mãos, exclamando:
— Mas já passaram mais de dois meses…
— Por isso vos torturo com esta revelação.
Rosa olhou o seu hóspede de forma que o surpreendeu.
— D. Gonçalo! Se, na verdade, meu esposo morreu, não devo alegrar-me mais. O castelo ficará de luto. Vós não me vereis. Podereis ficar aqui mais algum tempo se ainda não vos sentis bem. Mas permiti que me retire e vos diga também adeus!
O cavaleiro tomou as mãos da dama. Tremiam as suas.
— Adeus, minha amiga! Ficarei apenas o tempo necessário para me certificar de que a vossa saúde não inspirará cuidados. Depois, partirei para sempre, cumprindo o vosso desejo!
Rosa não respondeu. Saiu a fechar-se nos seus aposentos, chorando de dor pelo esposo que havia morrido enquanto ela ouvia deliciada as trocas de D. Gonçalo. Mas este, ficando no castelo, pensava para consigo que o tempo é a grande esponja que apaga o nosso pensamento as tragédias mais arrepiantes.
Na verdade, D. Gonçalo esperou um ano inteiro, morando no mesmo castelo sem ver Rosa.. Mas D. Gonçalo venceu. Acreditando na morte de seu esposo, vendo-se jovem e só, com um filho pequeno, acabou por ter desejo de voltar a ouvir e a ver o jovem cavaleiro. E, poucos meses depois, Rosa entregou a D. Gonçalo o seu coração e a sua mão!
Chegou o dia das bodas. No castelo, onde fora levantado o luto, reinava uma animação extraordinária. Os convidados riam, cantavam, dançavam e brindavam aos noivos que tão bem os recebiam. De súbito, alguém segredou a D. Gonçalo:
— Senhor, acaba de chegar à ponte levadiça um cavaleiro de brancos cabelos e montado num corcel de batalha.
D. Gonçalo empertigou-se:
— O cavaleiro disse quem era?
— Senhor, sou novo ao vosso serviço. Mas um dos vossos servos mais velhos quase ajoelhou quando o viu e as lágrimas caíram-lhe pelo rosto. Achei isso estranho e vim avisar-vos.
D. Gonçalo fez-se tão pálido que assustou o servo.
— Senhor, sentis-vos mal?
O jovem cavaleiro respirou fundo. Entretanto, Rosa correu solícita para junto do seu novo esposo. Reparando na sua palidez, perguntou, inquieta:
— Que tendes, Senhor?
Ele sorriu.
— Minha bem-amada! Um pressentimento diz-me que hoje será o último dia da minha vida.
Ela assustou-se.
— Porque falais assim?
D. Gonçalo não respondeu. Ao fundo do salão, o mestre de cerimónias anunciava com voz solene e emocionada:
— O senhor D. Ramiro de Alvar!
Rosa agarrou-se fortemente ao braço de D. Gonçalo, para não cair. Mas já D. Ramiro estava em frente da mulher, olhando-a sem esconder a sua admiração por tanta beleza. De súbito, numa fúria, desembainhou a espada. O mesmo fez D. Gonçalo. Com o assombro de todos os presentes, a luta foi feroz. Mas D. Gonçalo apenas se defendia. E a um golpe mais arrojado caiu morto, trespassado pela espada daquele que por ele pusera em risco a vida.
Rosa caiu desmaiada nos braços de D. Ramiro. Os convidados saíram levando o corpo de D. Gonçalo. D. Ramiro e Rosa ficaram sós. Quando a jovem castelã voltou a si e se deu conta da realidade, pediu a seu esposo:
— D. Ramiro, dai-me também a morte!
— Assim vos prendeu esse homem que me traiu?
Rosa tinha os olhos marejados de lágrimas.
— Senhor, não é por ele que desejo morrer, mas pelo que fui capaz de fazer-vos!
— Mas eu amo-vos ainda e quero perdoar-vos.
— Eu é que não me perdoo a mim mesma! Matai-me, porque não soube esperar por vós!
D. Ramiro tocou-lhe ao de leve numa das mãos, que ela retirou com pressa.
— Senhor, não sou digna de que me toqueis! Nem sequer de permanecer sob o tecto que cobre a cabeça de meu filho! Sou uma mulher desonrada!
— Mas eu exijo a vossa vida!
— Pois viverei para remediar a minha culpa!
— Vou deixar-vos descansar e logo conversaremos de novo.
E, com a amargura na alma, D. Ramiro retirou-se para os seus aposentos, onde outrora fora tão feliz!
Em vão foram os esforços de D. Ramiro para dissuadir sua esposa do propósito de uma severa penitência. Rosa resolvera voltar à pobreza em que vivia quando D. Ramiro a encontrara. Retirou-se para a cabana onde havia nascido e ali, sozinha, procurou com estoicismo o resgate da sua honra, para D. Ramiro, para o filho e para Deus. Ali viveu na maior humildade a que fora a mais bela castelã do seu tempo. E quis Deus que fosse por largos anos. Quando morreu, D. Ramiro mandou que lhe fizessem um funeral como sua esposa que era. E os aldeões, depois de ela morrer, não queriam passar junto da cabana do bosque, pois diziam que ouviam ainda chorar lá dentro.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 259-264
- Place of collection
- Longroiva, MÊDA, GUARDA