APL 1404 Enterrado vivo

Decorria o ano de mil oitocentos e quinze e Amélia, filha da aristocrática família Quadros, era por essa altura uma linda rapariga de pele ligeiramente morena, olhos brilhantes e negros e assim também eram os seus cabelos. O seu sorriso bondoso cativou Alfredo, um rapaz pobre da Horta, mas de grande inteligência e capacidade de trabalho, desempenhando já um cargo importante numa firma inglesa, que exportava o famoso vinho de verdelho do Pico. Amélia também não ficou indiferente às graças de Alfredo e juraram amor eterno, apesar das severas repreensões da família e principalmente do pai o morgado Quadros.
 Destinada ao convento, como a maioria das jovens da aristocracia da sua altura, Amélia resistiu com muita determinação à decisão do pai, mas acabou por entrar arrastada para o noviciado.
 No Convento de S. João, as freiras mais velhas tentavam catequizar Amélia, mas ela vagueava constantemente com a imaginação pelos campos da Horta, sentindo, em sonhos, pousar nos seus lábios a boca viril de Alfredo.
 Um dia, o pai foi visitá-la ao convento e comunicou-lhe que o noviciado tinha chegado ao fim. Amélia, decidida como era, afirmou ao pai que nunca seria freira e que, na igreja, no momento que a obrigassem a professar, diria bem alto que estava ali à força.
 O morgado José de Quadros, pondo a razão acima do sentimento, disse com rosto duro e voz aparentemente serena:
 — Eu estarei a teu lado e, se disseres tais palavras, enterro-te no peito este espadim. Até daqui a oito dias!
 Amélia ficou desorientada, escreveu uma carta a Alfredo a explicar-lhe o cruel destino que a esperava. A resposta não tardou, anunciando que Alfredo era obrigado a partir em negócios para a Inglaterra.
 Amélia redobrou de tristeza e, no dia de fazer os seus votos, enquanto uma alegria geral dominava o convento, a jovem noviça estava quase inconsciente quanto ao que se passava à sua volta.
 Ao chegar grande momento, o pai, indiferente ao sofrimento da filha, lembrou-lhe mais uma vez a sua obrigação. A infeliz rapariga ainda teve força para se opor e disse:
 — Assim, vós, senhor meu pai, estais a enterrar-me viva!
 O pai, um homem para quem a honra era tudo, não se compadeceu, e o ritual continuou, solene e majestoso. Nem a fria tesoura a cortar os cabelos negros causou qualquer mágoa a Amélia, como se estivesse a guardar todas as suas forças para o momento do juramento.
 Chegou finalmente. A jovem, tomada de uma súbita resolução, fez a profissão e, sentindo o que quer que fosse a estalar-lhe no peito, levou o lenço à boca que ficou tingido de sangue. A partir de então a irmã Amélia da Purificação nem tinha força para escrever a Alfredo.
 Numa manhã de Primavera, quando já tinham florido todas as rosas que tinha plantado no jardim, a infeliz Amélia morreu.
 Alfredo sofreu muito, mas acabou por casar, passados alguns anos. O morgado, o pai de Amélia, viveu muitos anos, sempre amado e respeitado por todos. Um dia foi encontrado aparentemente morto na sua cama e foi sepultado no Carmo, no jazigo da família Quadros.
 Passados anos foi preciso assoalhar o recinto por cima do jazigo dos Quadros e, ao levantar as lajes, um pedreiro deparou com um esqueleto fora do caixão no degrau superior da escada. Chamou o sacristão, que se foi informar nos livros de registo e ficaram a saber que aquele esqueleto era da última pessoa que tinha sido ali enterrada, o morgado José de Quadros.
 Assim, o pai de Amélia que, como diz o povo, enterrara a filha viva num convento acabou por ser enterrado vivo também.

Source
FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.250-251
Place of collection
Horta (Matriz), HORTA, ILHA DO FAIAL (AÇORES)
Narrative
When
1815
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography