APL 71 A mal-degolada
O Carro era de prata e d’aquelles em que se pintam as deusas da velha Grecia.
Puxavam-no seis cavallos brancos despidos de jaezes. Semilhavam cordões de seda as redeas finissimas.
O luar, batendo em cheio, deu-me occasião a contemplar por instantes a conductora da singular equipagem, que seguia a estrada de Ponte do Lima a Vianna. Mulher bella, mas de belleza estranha, pallida, extremamente pallida, franzina e alta. Envolvia-a manto negro, e os cabellos da côr do oiro levava-os mal encobertos por um crepe.
Phantastica miragem!
Seria.
Fui andando. A poucos passos enturvouse a noite; metti por um atalho, e, ao approximar-me d’esta aldeia, caía chuva tão forte, que me obrigou a buscar guarida. Bati á porta de uma choupana e entrei.
Acercando-me da lareira fui conversando com os donos da casa. D’ahi a pouco entrava um rapazito; vinha atemorisado, sem fala. Interroguei-o e elle após algum tempo foi dizer um segredo ao ouvido da mãi.
— Coitado — explicou esta;— encontrou a Mal-Degolada, e deu uma grande volta com receio de a tornar a ver.
— Mas quem é essa Mal-Degolada? — perguntei curioso.
Todos se calaram, e só depois de instancias é que uma velha muito velha me contou a lenda, que sinto no saber trasladar com o estylo da narradora e o mesmo tom de convencimento.
* *
Ali defronte na freguezia da Facha viveu em tempos remotos o senhor mais poderoso d’esta Ribeira Lima. Chamava-se D. Ruy Mendes.
Bom e esforçado fidalgo, se o rei precisava do auxilio de seus vassallos, era o primeiro a apparecer no combate, seguido de seus muitos homens-de-armas, e o ultimo na retirada, após a victoria.
Não contava mais de vinte e cinco annos, e já havia perdido a conta dos moiros que mandára de presente a Satanaz com o seu pesado montante, que um homem de hoje mal poderia levantar do chão.
Na cabeça das raparigas d’estas povoações anda o retrato do mancebo tão finamente composto, que parece, ao ouvil-as, ser o mesmo o ideal de todas. E asseveram ellas que tinha o moço castellão assim attrahente o gesto; como era cortante o fio de sua espada: nem havendo corpo de infiel que esta não dividisse de um só golpe, nem coração de mulher que seus olhos não captivassem.
Depois de correria que fizera contra sarracenos, deixou de repente de apparecer em montarias de ursos e javalis; e nos saraus dos castellos vizinhos as ricas-donas viam com enfado que faltava ao lado de suas filhas o mais appetecido galanteador.
E todavia o cavalleiro, quando furtivamente passava a galope no seu companheiro de proezas, mostrava no semblante enorme contentamento.
Quem ao cair da noite se avizinhasse d’esta freguezia de Bertiandos havia de perceber o mysterio.
Perto da fonte que tem hoje o nome da lenda — A fonte da Mal-Degolada — estava uma torre circumdada por arvores magestosas. Fôra ali que Ruy Mendes escondêra a olhos avidos a mais formosa donzella de quantas se tém creado em terras do Alcorão. E era de taes primores esse ninho de sonhos, que não haveria princeza que não podesse invejal-o, se no ceo d’estrellas da sua felicidade não houvesse um negrume — a differença da fé.
Diz-se que a linda moira, nas suas horas de solidão, cantava da janella rendilhada tão suaves harmonias, que os passaros vinham escutal-a e aprender-lhe o canto.
— E por isso, é — affirmava a camponeza — que ainda hoje os pintasilgos de Bertiandos têm uns trinados que em nenhures se ouvem. Hão de ser cantigas dos eirados da Moirama...
A lua, que neste momento se espelha nas aguas do sereno rio, alumiou por algum tempo os passeios dos dois enamorados. Ella assiste desde muitos seculos a iguaes scenas, e talvez seja um sorriso seu de zombaria o luar, com certeza mais, encantador, que nessas occasiões manda aos que protestam que amor tamanho nunca houve peito que o sentisse.
Mas o christão e a moira que tal diziam é porque devéras o acreditavam, e não se passou uma só vez que, ao separarem-se, um juramento por Deus e outro por Allah deixassem de firmar suas promessas de lealdade eterna.
Uma noite… — ai que horrivel noite aquella! — D. Ruy aportou á margem na sua barquinha azul, e não encontrou a bella Tagilda, que sempre ali o esperava anciosa. Foi caminhando para a torre, e, quando chegou perto, differençou vozes que percebeu serem d’ella e de um homem.
Dando um grito abafado e rouco, de salto appareceu junto da moira; puxou de uma faca de mato, e deu-lhe golpe tão fundo no pescoço que a deixou por morta. Depois arremetteu contra um vulto negro, mas... quedou espantado, reconhecendo o ermita da serra de Arga.
Este não se atemorisou, e, voltando-se para o corpo ensanguentado, da sarracena, disse-lhe:
— Querias ser christã, vais sel-o.
Enche de agua o cancavo da mão e, approximando-se da infiel, esparge-lhe o rosto, dizendo solemnemente: «Maria, eu te baptiso em nome do Padre, do Filho e... » Mas neste proprio instante exhalou a moribunda o suspiro derradeiro.
D. Ruy, com os cabellos hirtos e os olhos esbugalhados, estava ainda tão pegado a terra como um penedo do monte!
*
— E viu alguma vez a Mal-Degolada— perguntei, certissimo de que eu proprio a vira
meia hora antes.
— Nunca; mas é como se a estivesse vendo. Contava meu avô que bastas vezes a descortinou sobre a fonte, alisando com pente de prata os seus cabellos de oiro, e outras seguindo por esses caminhos fóra num carrinho puxado a seis cavalos. Faltaram-lhe palavra no baptismo, por isso anda ahi a penar ha muitos centos de annos. É o que pôde succeder a todos nós, se tal nos houver acontecido.
Agora percebo certa canção de um rouxinol que em noites de lua cheia vai gorgear para o freixo da margem do rio. Bem pensava eu que os seus queixumes doloridos endeixas eram talvez de algum rimance de amores.
- Source
- BERTIANDOS, Conde de Lendas Ponte de Lima, Hospital Conde de Bertiandos, 1993 [1898] , p.105-112
- Place of collection
- PONTE DE LIMA, VIANA DO CASTELO
- Collector
- Conde de Bertiandos (M)