APL 3006 Lenda da Serra da Romã

Na freguesia da Freiria existe uma serra à qual chamam serra da Romã. Este nome tem uma lenda que poucos conhecem e que — segundo me informaram — é muito antiga.

Em tempos que se perdem nas esquinas do tempo, aqueles terrenos à volta da actual freguesia de Freiria pertenciam a uma poderosa fidalga viúva que tinha um filho, belo, valente, mas um tanto estouvado em assuntos de amor. Sabemos apenas que ele era um jovem conde e se chamava Pedro. Andava sempre em passeios por terras estrangeiras, e a mãe afligia-se por saber a vida libertina do filho. Os anos iam passando. Ela sentia-se envelhecer, e o jovem conde não conseguia escolher noiva entre as donzelas casadoiras que a mãe lhe propunha. Certo dia, porém...

Foi na festa da Primavera. Todos os camponeses que estavam sob o feudo de D. Elderica — a velha condessa — vinham trazer-lhe, além das suas homenagens, carneiros, porcos, leite, fruta. D. Pedro, que chegara havia pouco de uma das suas viagens, a pedido de sua mãe veio receber dos camponeses o pagamento das suas rendas e as suas generosas oferendas. Para ele, isso era um sacrifício, mas não queria desgostar a velha condessa.
Olhava arrogante e indiferente a fila da gente humilde que chegava e entregava aos criados o que trazia. Os camponeses dirigiam-se depois a D. Elderica, a quem saudavam respeitosamente, pois tinham em grande estima a generosa senhora.
D. Elderica sorria a todos, tendo uma pequena palavra de simpatia para cada um. Mas D. Pedro parecia distante. Dir-se-ia uma bela estátua imaginada por artista de mérito. De súbito, a estátua animou-se. Na fila dos camponeses, já perto, vinha uma pobre viúva acompanhada pela filha. Trazia a viúva um cesto de fruta, e a filha um braçado de lindas flores de romã. Quando a vez delas chegou e as flores e os frutos foram entregues, D. Pedro inclinou-se para a formosíssima camponesa e perguntou-lhe:
— Como te chamas?
Um pouco atordoada, ela respondeu numa voz sumida:
Maria.
Ia retirar-se para dar a vez a outra, mas ele reteve-a na sua voz de comando.
— Espera! Preciso ainda fazer-te mais perguntas.
Ela ficou estática. Quase aflita. Esperou em silêncio as tais perguntas que não vinham, pois ele olhava-a de um modo estranho, que não deixou dúvida à condessa do interesse que Maria lhe inspirara. Por fim perguntou:
— Onde moras?
— Além... mais para a serra...
— Sabes que as flores que trouxeste são muito belas?
Maria sorriu.
— É tudo quanto tenho!
Ele fingiu não ouvir e fez outra pergunta:
— Sabes também que és mais bela ainda do que essas flores?
Maria corou. Seu rosto enrubescido era como romãs. Baixou os olhos sem responder. Mas a pobre viúva, vendo o ar descontente da velha condessa, pediu:
— Senhor... Se nos pudéssemos retirar...
D. Elderica rematou logo.
— Decerto que sim! Ainda faltam mais dez dos vossos companheiros e todos têm a sua vida.
Silenciosamente, mãe e filha retiraram-se. Pedro, sorrindo, ficou a olhá-las até as perder de vista.

Quando a cerimónia terminou, mãe e filho ficaram sós. D. Elderica, numa voz pouco serena, pediu ao filho que ia já afastar-se:
— Esperai um pouco, Pedro!
Ele fingiu mostrar-se surpreendido.
— Que me quereis, Senhora? Não vos acompanhei até ao fim desta quase interminável procissão?
Ela acenou a cabeça. A sua expressão era firme, bem como a sua voz.
— Assim foi. E se achastes quase interminável a fila dos que nos pagam o seu dízimo, é porque somos, na realidade, muito poderosos.
Ele encolheu os ombros.
— Como poderei esquecê-lo?
— Pois creio que o conseguistes ainda há pouco.
Ele admirou-se.
— Esqueci-me? Quando, Senhora?
— Quando dirigistes galanteios despropositados à camponesa das flores de romã!
D. Pedro riu. Depois tentou tornar mais austera a sua expressão, ao replicar:
— Senhora minha mãe... Tanto desejastes que ficasse junto de vós... que atendesse esses pobres camponeses!...
— Mas não vos pedi para galanteardes as filhas do campo como se fossem filhas de algo!
D. Pedro não respondeu logo. Fitava um ponto vago no salão. Depois murmurou, como para si próprio:
— Tantas mulheres que tenho visto por esse mundo fora, nunca vi nenhuma cuja beleza se igualasse à de Maria!
D. Elderica afligiu-se.
— Pedro, meu filho, vede o que estais dizendo!... Prometei-me que não ireis procurar essa pobre rapariga! Seria duro para ela... e para nós!
Pedro não prometeu. Ironizou:
— Depois de estar enamorado de dezenas de mulheres, pensais que iria prender-me à jovem Maria?
A condessa, num ar altivo, retorquiu-lhe:
— Claro que não! Mas também não deveis sequer desorientá-la. Com o fogo e o ferro não devemos brincar!
E sem mais explicações saiu do salão, deixando o jovem entregue a surpreendentes pensamentos.

Dois dias passaram sobre a festa das flores. D. Pedro, sem poder mais conter-se, saiu do seu palácio e foi dar ao monte onde morava a viúva, guiado pela cor das flores das romãzeiras. Levava o cavalo a passo. O coração batia-lhe como em dia de grande caçada. De súbito puxou as rédeas, com mais precipitação do que seria necessário. O cavalo estacou. Ali estava Maria, sentada num banco improvisado e olhando extasiada o horizonte, como se algo mais os seus olhos descortinassem. D. Pedro via-a de perfil. Desceu do cavalo e encaminhou-se para ela, de mansinho. Tão absorta estava ela na sua meditação que nem ouviu os passos do recém-chegado pisando a terra fresca. Foi necessário que este chamasse baixinho.
— Maria...
Ela sobressaltou-se. Ergueu-se dum salto, e os seus olhos arrasaram-se de lágrimas. Tremia. Ele notou-lhe a emoção. Perguntou docemente:
— Tens medo de mim? Assustei-te?
Maria tentou reagir.
— Senhor... eu estava a imaginar-vos… lá em baixo...
Pedro sorriu satisfeito.
— Mas viste-me junto de ti e duvidaste dos teus próprios sentidos. Pois devias esperar-me!
Ela mordeu os lábios antes de responder:
— Senhor! Como poderia ousar...
Tornou-se mais quente a voz do jovem conde.
— Maria, és a mulher que maior impressão me causou até hoje. E tenho visto tantas!...
As lágrimas libertaram-se e correram serenas, silenciosas, pelo rosto da rapariga. Ela murmurou:
— Senhor, vós podeis amar a quantas mulheres quiserdes! Sois jovem, sois belo, sois conde! Ao passo que eu...
Ele atalhou:
— O teu coração, se está livre, poderá amar quem nele tiver entrada!
Ela ripostou numa voz que se perdeu no espaço:
— O meu coração está cheio. Nele não cabe mais nada!
D. Pedro pegou-lhe numa das mãos.
— Maria! Tu amas a quem?
— É meu segredo, Senhor!
— E não és amada?
— Como eu amo, não!
— Não posso crer! Diz-me de quem se trata!
— Perdoai-me, Senhor… mas prometi a mim própria só falar no dia em que acreditar num amor feliz.
— A que chamas tu amor feliz?
— Aquele que é compartilhado com igual ardor.
— Também eu desejo um amor feliz. E se tu pudesses, Maria... Maria… se tu pudesses!...
Ela fez-se pálida.
— Se eu pudesse... o quê?
— Se pudesses amar-me como eu sinto que te amo...
Maria, como resposta, tapou o rosto com as mãos e chorou silenciosamente. Pedro estreitou-a contra si, num arrebatamento. Perguntou:
— Maria, Maria, diz-me! Preciso ouvir da tua boca... Tu amas-me? Num murmúrio, ela confirmou:
— Desde a festa da Primavera!

Durante um mês seguido, Maria e o jovem conde encontraram-se na serra coberta de flores de romã. Pedro sentia que não poderia separar-se da única mulher que soubera conquistar o seu coração volúvel. Ciente de tal certeza, certa manhã confessou à velha condessa a sua decisão de casar com a jovem Maria. A desagradável surpresa deixou a condessa tão transtornada que caiu sem sentidos. Aflito, D. Pedro tentou reanimá-la.
Mas a velha senhora, depois de voltar a si, só serenou um pouco quando D. Pedro lhe jurou renunciar ao casamento com a formosíssima Maria. Todavia, não podendo continuar ali, partiu para uma guerra em longes paragens. E a mãe, acreditando que esse seria o melhor meio de ele esquecer Maria, conformou-se com a sua abalada.
Partiu D. Pedro sem sequer se despedir da jovem camponesa. Sabia que se o intentasse não poderia cumprir a jura que fizera a sua mãe. Mas levava o desejo de morrer por lá, perdido nas aventuras guerreiras. Como despedida, enviou à jovem o cesto que ela ofertara à condessa, também repleto de flores de romãzeira.
Quando a jovem soube o que acontecera não chorou, nem disse uma só palavra. Mas deixou de comer. Tinha sempre o olhar distante. Não dormia. Não falava.
Vinham de longe os camponeses para se inteirarem da sua saúde. Mas ela guardava ciosamente o seu segredo.
Certo dia, a condessa ouviu dizer que a jovem estava a morrer. Ia-se definhando hora a hora, minuto a minuto. O remorso entrou no coração da velha fidalga. Deixou para trás os pergaminhos e foi visitar Maria.
Foi no princípio do dia. O sol doirava os campos e punha mais vivas as cores das flores das romãzeiras. Quando a carruagem chegou, com dificuldade, ao cimo do monte, a mãe de Maria correu a anunciar a nova.
— Filha, olha para mim! Calcula que a senhora condessa veio visitar-te!
Maria soergueu-se um pouco. As faces rosaram-se-lhe levemente. A fidalga entrou sem pedir licença e disse para a pobre viúva:
— Deixa-nos sós.
Atarantada, a mulher saiu do aposento pobre. A senhora aproximou-se do leito e inclinou-se. A sua voz tremeu.
— Maria! Sei porque desejas morrer. Pedro partiu para a guerra e fui eu que o obriguei a jurar que te deixasse. Quero que me perdoes esse excesso de orgulho que me ia matando e te vai roubando a vida. Já tentei comunicar com o meu filho. Disseram-me que se mete nas batalhas mais arriscadas, sem gosto pela vida. Diz que me perdoas, Maria!
A jovem tinha os olhos rasos de lágrimas, mas os músculos do rosto continuavam parados.
A condessa voltou a falar:
— Maria! Venho levantar a jura que obriguei meu filho a fazer. E logo que tenha mensageiro dir-lhe-ei para voltar!
Maria suspirou fundo. Mexeu os lábios e por fim murmurou:
— Já será tarde!
Com um gesto, pediu que chamassem a mãe. A condessa satisfez-lhe o desejo. Maria fez sinal à mãe para que se chegasse mais perto. Depois, numa voz fraquíssima, quase de além-túmulo, pediu: 
— Mãe... Encha o cesto que levámos… naquele dia... com flores de romã… e entregue-o à senhora condessa... São para o Pedro!
Chorando, a velha camponesa apressou-se a cumprir o desejo da filha. A condessa levou o cesto repleto de flores. À noitinha, Maria expirava, sorrindo docemente.
Dois meses depois, o jovem conde regressou da guerra. Tarde demais para casar com Maria. Mas a horas de entrar para um mosteiro, onde se isolaria de tudo quanto tinha amado neste mundo. Tudo, não! Antes de partir, subiu à serra que ele e depois o povo chamaram «da Romã» e colheu uma flor. Levou-a consigo, escondida. E abandonou para sempre aquelas paragens onde poderia ter sido um conde poderoso e feliz.
Na sua vida de religioso, procurou sempre auxiliar os rapazes ou raparigas que não podiam casar por falta de dote. E os outros monges, vendo o seu estranho labor, começaram a chamar-lhe, por graça, o «monge casamenteiro».

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 73-78
Place of collection
Freiria, TORRES VEDRAS, LISBOA
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography