APL 2837 Lenda dos Aloendros
FARO... a histórica Santa Maria de El Gharb, ou Santa Maria de Ossónoba, e mais tarde apenas Harume, donde lhe vieram por corruptela da linguagem popular os nomes de Haron, Farão e Faro, mantendo-se este último desde os meados do século XVI... Faro, a cidade maravilhosa que mereceu ser cantada pelo rei Afonso de Castela, o Sábio, nas «Cantigas de Santa Maria», possui também as suas histórias de lenda e feitiço. Esta, por exemplo...
Andava el-rei Afonso III de Portugal na conquista do Algarve, então ainda quase totalmente dominado pela moirama. E a seu lado, fiel e amigo, cavalgava sempre D. João Peres de Aboim, guerreiro de alma nobre e coração grande.
Era altura de tentar a posse de Faro, nesse tempo chamada Harume pelos mouros e Santa Maria de Haro pelos cristãos.
Estava já próximo o fim do mês de Março desse ano de 1249. D. Afonso III viera com os seus homens, em marchas forçadas desde Beja, e acampara junto de Alportel, na pitoresca e também lendária «Terra de Todos». Aí se prepararia o ataque final.
Ora, segundo se conta, na madrugada desse dia, estando D. João Peres Aboim vigilante e atento, ouviu certo ruído misterioso que muito o intrigou. Cautelosamente, deu-se a investigar, tanto mais que o seu próprio cavalo parecia também inquieto.
Peres de Aboim avançou a passos vagarosos. Alerta. Espreitando. Preparado para o imprevisto.
— Então que se passa? Sossega, meu bom companheiro!... Eu saberei defender-te, como tu me tens defendido... Lembra-te de que já andamos juntos em muitas batalhas. Parece-te que anda alguém escondido por aqui, não é verdade?
Dando a perfeita ideia de o ter compreendido, o cavalo relinchou por três vezes. D. João Peres de Aboim sorriu.
— Claro! Claro! Também a mim me parece...
Rápido, saltou para terra. O cavalo pareceu mais inquieto do que nunca, tentando libertar-se do dono.
— Quieto! Quieto! Mas então que é isso agora? Que desassossego é esse?
Mas não o conseguiu dominar. Excitado por algo desconhecido, o cavalo de D. João Peres de Aboim acabou por soltar-se, e abalou correndo pelo campo fora.
O bravo guerreiro português ficou ainda mais apreensivo. Tinha porém, confiança absoluta no seu instinto. E o instinto conduziu-o a um maciço de arbustos.
Então, sem mais hesitações, correu sobre o local, de espada em punho, gritando com a voz imponente:
— Salta daí, miserável espião! Vamos! Se tens coragem para te bateres comigo, aparece!
E, de facto, alguém apareceu. Um vulto franzino, com o rosto meio escondido por um turbante e aparentando juventude.
— Aqui estou, Senhor!
A sua voz tremia um pouco. Uma voz estranha, de falsete. O vulto procurou dar-lhe um tom mais seguro.
— Mas não me quero bater contigo... Vim apenas para falar com o teu rei.
D. João Peres de Aboim olhou-o melhor. Mais atentamente. Mais desconfiado.
— Se queres falar com o meu rei... porque te escondes dessa maneira?
No mesmo tom anterior, o desconhecido respondeu:
— Bem sabes, Senhor, que se viesse às claras e sem disfarce seria imediatamente preso e arrastado para longe... E eu quero falar com o rei Afonso!
D. João Peres de Aboim deu um passo em frente.
— Quem és tu, afinal?... Há qualquer coisa na tua voz… na tua figura... que me faz desconfiar...
O vulto deu a sensação de não se sentir à vontade. Recuou ligeiramente ao ver o fidalgo português avançar para ele.
— Sou um guerreiro fiel ao príncipe de Harume, que defenderá o seu senhor até à última gota de sangue...
João de Aboim riu com gosto, embora sem perder o outro de vista.
— Tu? Tão novo ainda?... Nem tens sinal de barba!
De novo se aproximou.
— E esse olhar... Esse olhar, meu Deus, lembra-me o olhar de alguém...
O desconhecido cortou-lhe cerce a palavra. Talvez para evitar mais profundas reflexões.
— Lembra-te decerto, Senhor, o olhar de todos os da minha raça, que temem agora a ferocidade dos teus guerreiros...
D. João Peres de Aboim enfureceu-se.
— Mentes! Tu estás a mentir!...
E antes que o desconhecido se pudesse esquivar ou defender, o fidalgo português, num golpe de surpresa, arrancou-lhe o turbante. Aos seus olhos apareceu então o rosto jovem duma linda mulher.
— Alandra!
Ela baixou o olhar, ruborizada. E a sua voz, já sem disfarce, voltou a ser docemente feminina.
— Perdoa-me, Senhor!... Mas fui eu própria que deliberei vir assim... para pedir misericórdia para meu pai e a sua gente... Perdoa-me!
E era verdade. Desse modo, segundo dizem relatos velhinhos, encontraram-se frente a frente, na «Terra de Todos», o valente e brioso D. João Peres de Aboim e a formosa princesa moura Alandra, filha do príncipe de Harume.
Havia já muito tempo que o coração de João de Aboim, tão grande amoroso como guerreiro, andava cheio com a imagem da bela princesa que muitas vezes encontrara nos seus caminhos de batalhador. Mas agora era a primeira vez que a tinha ao alcance das mãos.
Assim, delicadamente, encaminhou-a para a sua tenda de campanha e obrigou-a a sentar-se e a descansar.
— Que ideia foi essa de vires assim disfarçada ao meu acampamento?
Alandra suspirou. E acabou por confessar:
— Senhor, mais do que falar ao teu rei, queria falar contigo...
Afoitamente, olhou-o de frente. E com a voz um pouco mais trémula, rematou:
— Mesmo à distância, tenho lido nos teus olhos o que sentes por mim... e preciso do teu auxílio!
D. João Peres de Aboim sorriu meigamente.
— O que sinto por ti, bem sabes que é amor... Quanto ao auxílio, diz o que precisas.
Ela ergueu-se. A sua figurinha gentil punha uma nota de suavidade no ambiente bélico da tenda.
— Preciso que poupes a vida das mulheres e das crianças de Harume... nem que para isso eu tenha de sacrificar a minha honra!
Ele ergueu-se também e interrompeu-a com um gesto.
Depois, avançando para ela, segurando-a bem pelos ombros, fitando-a bem nos olhos, afirmou:
— Nós não somos feras, princesa Alandra... Prometo-te solenemente o que desejas, sem que para tal seja necessário qualquer sacrifício da tua parte!
Ela baixou a cabeça. Quando a reergueu, tinha os olhos embaciados por lágrimas. E a sua voz acusava grande emoção interior.
— João Peres de Aboim... É esse o teu nome, não é verdade?... Lembras-te do que se passou na tomada de Chelb?... Pois nós...
O mordomo-mor de D. Afonso III de Portugal não a deixou continuar.
— Esses homens não eram portugueses! Se fossem portugueses, não procederiam assim!
Alandra voltou a sentar-se, em silêncio. O silêncio durou algum tempo. Depois, ela desabafou sinceramente o que lhe ia na alma:
— Pois acredita, Senhor, que todos nós vivemos aterrorizados com o que possa vir a acontecer.
E inclinando-se, quase numa confidência, revelou:
— Ainda ontem, à meia-noite, o governador do castelo de Loulé encantou as suas três filhas: Zara, Lídia e Cassima, numa velha nora...
Levou as mãos ao rosto, num jeito amuado de susto, e as palavras sairam como que num soluço.
— Oh! O Algarve ficará para sempre cheio de mouras encantadas!
Devagarinho, D. João Peres de Aboim aproximou-se dela.
— Felizmente para mim, tu ainda não estás encantada…
E debruçando-se sobre o rosto da bela princesa moura, ciciou-lhe ao ouvido:
— Eu, sim, é que estou encantado por te ver na minha frente!
Sem se voltar, sem se mostrar perturbada, ela apenas perguntou:
— Senhor... posso acreditar no que dizes?
Então, João Peres fê-la erguer-se suavemente. Ficaram rosto a rosto.
— Olha bem no fundo dos meus olhos... Tu, que tens o poder de enfeitiçar, e de tal modo que fizeste fugir o meu cavalo, para que eu ficasse sozinho contigo... Tu, que sabes ler dentro da alma dos outros... Tu, quem eu amo e que me amas também, segundo creio… olha bem para o fundo dos meus olhos. E se te parecer que minto, vai-te embora, foge que eu não te perseguirei. Mas se julgas que falo verdade, então fica nos meus braços, minha bem-amada Alandra!
E conforme reza a lenda antiga — Alandra ficou!
Quando chegou a véspera do dia 28 de Março de 1249, o exército português estava pronto para o ataque final a Harume.
Na madrugada seguinte, D. Afonso III resolveu reunir conselho e pediu a D. João Peres de Aboim, seu mordomo-mor, que falasse em primeiro lugar.
Ele não se fez escusado.
— Senhor meu rei, já tratei de tudo, para que tudo se passe da melhor maneira... Harume entregar-se-á sem luta nem derramamento de sangue.
Então, olhou o rei de Portugal e pediu-lhe com voz emocionada:
— Mas, por amor de Deus, Senhor meu rei, respeitai as mulheres e as crianças!... Foi a condição que prometi. Estou por penhor dessa condição, que vale a minha honra!
D. Afonso III baixou a cabeça lentamente, num gesto afirmativo, a tranquilizá-lo.
João Peres mostrou-se mais desanuviado e propôs:
— Deveis agora ir falar ao príncipe de Harume, para que ele vos entregue as chaves!
O rei de Portugal olhou-o surpreendido.
— O quê? Sozinho?
D. João Peres de Aboim riu com gosto.
— Não, Senhor meu rei, de modo algum! Levais uma guarda de honra. Estêvão Anes, Afonso Peres Farinha, Gonçalo Peres e eu próprio iremos convosco. E tudo correrá pelo melhor, acreditai!
Assim aconteceu, de facto. Numa demorada entrevista, havida com a maior cordialidade, o príncipe Alandro entregou a D. Afonso III de Portugal as chaves da fortaleza que servia de capital ao principado de Harume.
As condições eram honrosas para os vencidos. E os vencedores, acima de tudo, afirmavam respeitar integralmente a vida das mulheres e das crianças, conforme promessa feita por D. João Peres de Aboim à bela princesa Alandra.
Tudo parecia, na verdade, seguir pelo melhor dos caminhos. Porém, como sempre acontece nestes casos, talvez pela demora das negociações, alguns espíritos mais exaltados envolveram-se em luta, apesar de todas as precauções tomadas. E foi mister que o próprio rei D. Afonso III de Portugal corresse ao centro da refrega.
— Parai, portugueses! Parai! Deixai de lutar porque a cidade é nossa. Aqui estão as chaves da fortaleza!
A luta parou de repente. Ali estavam na verdade as chaves de Harume.
Nessa mesma altura, o príncipe Alandro saía da cidade com o seu séquito, depois de declarar à população que a paz fora honrosa e digna, e que nada havia a temer dos portugueses. Antes pelo contrário!
Foi já no regresso de uma volta pela cidade tão facilmente conquistada (em grande parte graças a ele) que D. João Peres de Aboim deparou de súbito com o rei D. Afonso III sentado debaixo dum bonito arco.
— Senhor meu rei, que fazeis aqui?
D. Afonso III sorriu afavelmente. Sorriu e semicerrou os olhos.
— Descanso, meu bom João, de tudo o que se passou. Isto faz-me bem. E sabeis que mais? Sinto aqui um repouso tão perfeito, tão bom, tão completo, que vou passar a chamar a este arco, daqui em diante, o Arco do Repouso!
Foi a vez de João Peres de Aboim sorrir.
— Dizeis bem, Senhor meu rei, dizeis bem!
Tais palavras espevitaram a curiosidade do monarca, que reabriu os olhos e o fitou melhor.
— E vós, que tendes, João Peres de Aboim?
João Peres baixou a cabeça, num suspiro.
— Também eu venho inquieto e triste, meu Senhor e rei... E aqui também estou a sentir um repouso de alma como ainda não sentira... Tendes razão em chamar a este local o Arco do Repouso!
El-rei de Portugal inclinou-se ligeiramente para diante.
— Algum percalço amoroso, João Peres de Aboim?
Desta vez, João Peres não baixou a cabeça nem desviou o olhar. Falou francamente:
— E percalço bem grande, Senhor meu rei!... Fugiu, desapareceu misteriosamente a mulher que eu amava... Deixou-me apenas um pequeno ramo de flores... Vedes, Senhor?
E mostrou o ramo que trazia religiosamente seguro, enquanto continuava a falar.
— Sim, meu rei, são flores rubras como o sangue e belas como o desejo…
E logo, num impulso de imaginação, João Peres ajuntou:
— Se me permitis, Senhor meu rei, como ela se chamava Alandra… em homenagem à sua memória, daqui em diante passarei a chamar alandras a estas flores de amor e saudade...
Desde então, essas flores belas e rubras ficaram a chamar-se alandra nome que mais tarde se transformou em aloandras, e depois em aloendros — ou apenas loendros, seu nome actual...
Quanto ao Arco do Repouso, esse lá continua no mesmo local de sempre, a perpetuar na tradição a passagem do rei D. Afonso III de Portugal, após a conquista de Faro.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 237-242
- Place of collection
- Faro (Sé), FARO, FARO