APL 2708 Lenda do Pé de Ferro
Ali estava ele. Desesperado e inquieto. E furioso também. Calcando com a fúria do seu desespero a areia do arruamento, Pêro Gonçalves, homem forte e sadio, no fervor dos seus vinte e cinco anos, esperava a sua antiga namorada. Ela fora à beira do rio buscar o peixe e não deveria demorar. Iria falar-lhe. Pôr-lhe tudo em pratos limpos. Entenderem-se de uma vez para sempre. Gostava dela ainda. Sabia mesmo que não voltaria a gostar assim de mais nenhuma mulher, pois Aninhas era a jovem mais bela e mais requestada desse bairro de Santos onde a marinhagem fazia quartel.
Amar uma mulher muito bonita trazia os seus dissabores. Principalmente quando essa mulher bonita era estouvada e alegre como a Aninhas. Raivoso, Pêro Gonçalves esborrachava com a ponta do pé enorme os grãozinhos de areia, que rangiam, gemiam timidamente...
De súbito, Aninhas surgiu lá em baixo e começou a subir a rua, de canastra à cabeça e ancas a dar-a-dar.
Pêro Gonçalves mordeu os lábios grossos. Ela estava cada vez mais fresca, mais gaiata, mais apetitosa!
A rapariga viu-o, sorriu-lhe de longe, mas não se desviou. Passaria de largo. Evitaria assim falas embaraçosas. Mas o homem adivinhou-lhe o intento e saltou-lhe ao caminho, barrando a passagem. Ela parou. Olhou-o sobranceira, bem de frente. Ele nem pestanejou. Parecia inspeccionar-lhe as entranhas. Então Aninhas decidiu falar.
— Que me queres? Deixa-me passar, que tenho pressa!
Ele deu um trejeito gingão aos lábios. Um trejeito de desprezo.
— Também eu tenho pressa de despejar tudo o que trago para te dizer.
Aninhas encolheu os ombros.
— Pois vomita para aí, que não serei eu que te impeça de o fazeres!
Pêro Gonçalves ficou subitamente sério, com aquela cara de caso que ela já lhe conhecia tão bem.
— Olha, cachopa! Não brinques comigo, porque podes ter algum dissabor!
A rapariga embespinhou-se:
— Mas quem anda a brincar contigo?
— Tu! Tu e ele... esse fidalgo de má morte, que não serve para mais nada do que para cabide de fatos novos!
Ela esboçou um sorriso zombeteiro e desfechou-lhe com azedume simulado:
— O que tu tens é inveja!
Ele cresceu de raiva, gritou quase:
— Inveja, eu? De quê? Do dinheiro que o pai lhe dá? Talvez! Do resto não me servia nem para capacho!
Ela mostrou-se ofendida. Olhou-o furiosa.
— Deixa-me passar e guarda as tuas arrogâncias para quando eu tiver menos que fazer!
Receoso de que a oportunidade se escapasse, Pêro Gonçalves fez um esforço sobre si mesmo e tentou adoçar a voz.
— Ouve, Aninhas! Dantes... dizias que gostavas de mim. Vivemos momentos de felicidade pensando no nosso casamento... na nossa futura casa...
Ela interrompeu-o.
— Sim... dantes falávamos disso tudo. E depois?
O homem cerrou os dentes antes de responder.
— Depois... surgiu esse fidalgo naquela triste noite de romaria… e estragou tudo!
Ela troçou, para ganhar tempo.
— Cada um chama-lhe como lhe parece. Eu gostei bem dessa noite...
Pêro Gonçalves continuou, mais sereno:
— Ao princípio deixei correr o marfim porque pensei cá com os meus botões: esse birbante enfeitiçou-se com a cachopa e enquanto for novidade não a larga. Mas depois... hão-de vir as senhoras da Corte e passa-se qualquer dia sem dar mais aquela palha!
Ela replicou logo, mordaz:
— Isso era o que tu querias... Mas enganaste-te!
O homem concordou, com certa tristeza estampada no rosto másculo:
— Enganei-me, sim! Mas a razão foi outra. Imaginei que ele era ainda um menino de leite, incapaz de maus pensamentos e gostando apenas do que era bonito... Mas está a sair-se um bom malandro e eu nunca consentirei que façam pouco de ti!
Ela voltou a assanhar-se.
— Que queres dizer com isso?
Pêro Gonçalves encheu o peito de ar e despejou-o em seguida, como quem toma uma grande resolução. Baixou a voz, sem conseguir contudo abafar a raiva que lhe ia na alma:
— Fica sabendo, Aninhas, que ele está noivo da sobrinha do senhor D. Vasco. Está noivo, ouviste?... Irá casar dentro em breve com grande pompa e riqueza. E tu? Para que lhe serves?...
Ela levou uma das mãos ao peito. A expressão transformou-se-lhe. Gritou com fúria:
— Mentes! Mentes por ciúme!
Pêro Gonçalves meneou a cabeça negativamente:
— Não minto, não! Nem mesmo ao dizer-te que o marcarei bem marcado, se ele voltar a falar-te em público!
Numa revolta, ela censurou-o:
— Não tens nada com isso!
Ele fingiu-se impassível.
— Ai, tenho... tenho... Tu és a minha futura mulher!
Com raiva e mágoa, ela ripostou:
— Já não gosto de ti!
Apenas um sorriso de tristeza.
— Voltarás a gostar de mim quando ele partir para as Índias...
Os olhos dela brilharam mais. Pêro Gonçalves notou esse brilho de amarga surpresa e acrescentou:
— Sim... ele partirá, logo que casar!
Aninhas segurou-lhe um braço. A sua respiração alterara-se.
— Não pode ser! Como sabes tu isso?
— Averiguei. Eu não sou dos que fogem à verdade com medo de a ouvir!
Num acesso de fúria, ela aproximou o seu rosto do dele, quase a tocar-lhe.
— Se tudo isso for mentira... cuspo-te na cara!
Ele sentiu desejos de a agarrar, de a puxar mais a si. Mostrou-se porém sereno e acrescentou apenas:
— ... mas se for verdade… casarás comigo!
Como num eco, ela afirmou:
— Casarei! Juro!
E, largando-lhe o braço ao qual continuara segura, Aninhas subiu a rua em passadas largas, embora sempre airosa.
Em baixo, o olhar de Pêro Gonçalves seguiu-a, num misto de raiva, amor e tristeza...
Gaiatos seminus corriam pelas ruas estreitas, gritando a sua alegria. Havia arraial no bairro. As moças casadoiras tinham-se esfalfado para ajudar os promotores do bailarico, no terreiro de Santos. E Aninhas fora uma delas.
Oito dias tinham decorrido desde que Pêro Gonçalves decidira falar à sua antiga namorada. Durante esse tempo ela procurara sempre evitá-lo. Ele, com o coração a transbordar de orgulho e ciúme, esperava o momento oportuno para dar o supremo salto. E esse tão ansiado momento chegara, finalmente.
A poeira dançava no espaço, sem o menor respeito pelo ritmo da música que alegrava o recinto. Pares eufóricos e garridos batiam essa mesma poeira. Mas esses já respeitavam o compasso das suas danças predilectas...
Destacando-se entre as demais raparigas, Aninhas chegou, sorrindo aqui e além aos seus conhecidos. Foi então que D. Afonso de Faria, um jovem de elegante estatura, saiu do escuro de um recanto mal iluminado e veio ao encontro de Aninhas. Ela estendeu-lhe a mão, radiante. Seus olhos bonitos brilhavam como jóias preciosíssimas. E começaram também a bailar.
No ar, a poeira subiu em ondas crescentes e decrescentes, como voluptuosa serpente, ao sabor da brisa fresca, que brincava também com as notas desgarradas dos músicos de ocasião...
À volta do par, fez-se um vazio. Ninguém ousava aproximar-se demasiadamente do jovem fidalgo. Feliz, Aninhas vivia um maravilhoso conto de fadas. De súbito, seu olhar encontrou-se com o de Pêro Gonçalves. Sorriu-lhe, triunfante. Ele conservou a mesma expressão de dura tristeza. Mas os homens que tocavam deram-se um pequeno descanso e D. Afonso, ao dirigir-se com o seu par para o recanto donde saíra, viu-se obrigado a passar mesmo em frente de Pêro Gonçalves.
Foi então que este lhe barrou o caminho.
— Olá, senhor D. Afonso! O fidalgo por aqui?
A resposta saiu seca e rápida:
— Ando por onde quero!
— O fidalgo poderá andar por onde deseje... desde que não faça tudo quanto lhe apetecer!...
— Acaso pensas que eu tenho de te dar conta dos meus actos?
— Sim, fidalgo... porque o senhor se lembrou de olhar para onde não deve olhar!
Aninhas, vendo a palidez que se estampava no rosto do fidalgo e a ira que via crescer no olhar do seu antigo namorado, tentou cortar a conversa:
— Vai-te embora e deixa-nos, Pêro Gonçalves! Não desejo em público ser obrigada a pagar-te a promessa que te fiz de cuspir-te na cara!
D. Afonso virou-se para a companheira.
— Quem é este homem, Aninhas?
Pêro Gonçalves não a deixou falar.
— Eu respondo, fidalgo! Sou o namorado de Aninhas.., e vós sois o noivo da sobrinha do senhor D. Vasco!
D. Afonso sorriu, sobranceiramente.
— Pois se és, na verdade, seu namorado, guarda-a melhor do que tens feito. Quanto à nobre família que acabaste de citar, será melhor que não tornes a pronunciar os seus nomes!
— Porquê?
— Para que os não sujes com a tua língua...
O furor transtornou as feições de Pêro Gonçalves.
— Pois, senhor, também vos proíbo de sujar a honra das raparigas pobres com quem vos apetece divertir!
Aninhas parecia petrificada. Olhava agora o fidalgo, na ânsia de saber ao certo em que lei vivia. D. Afonso ripostou, altivo:
— Se fosses de nascimento semelhante ao meu, terias de pagar bem caro e já o teu arrogante despropósito. Mas apesar disso não abuses... A minha casa possui bastantes criados capazes de se baterem com um homem como tu!...
Pêro Gonçalves recalcou a raiva que lhe subia ao peito e tentava sair pela boca, pelos punhos e pelos pés. Com grande esforço retorquiu, numa calma aparente, embora firme:
— Sou um homem, sim... dizeis bem... E se vós sois outro, confirmai sem rebuço que estais noivo da sobrinha do senhor D. Vasco!
O fidalgo sorriu com superioridade.
— Toda a gente o sabe! E isso impede que venha distrair-me à festa e dê a Aninhas a honra de a escolher para meu par?
— Obrigado, fidalgo! Só desejava que Aninhas ouvisse isso da sua boca.
Aninhas parecia ter perdido a fala. Mas conseguiu fazer um esforço sobre si mesma, perguntando em voz débil:
— Ides casar... senhor fidalgo?
O rapaz sorriu antes de responder:
— Que há de estranho nisso, Aninhas?
As lágrimas assomaram aos olhos da rapariga. A boca tremeu-lhe de mágoa e decepção.
— Senhor... então... porque me disseste que gostáveis de mim e...
Calou-se, subitamente confusa.
Pêro Gonçalves animou-a a prosseguir:
— Vamos... continua... As frases em meio não fazem sentido. Que mais te disse o fidalgo?
Ela concluiu, resoluta:
— ... que se eu fosse esta noite depois da festa ter com ele à sua carruagem... me encheria de jóias e vestidos caros...
Arrogante, o fidalgo perguntou:
— E depois? Que tem isso que ver com o meu casamento?
Sem lhe dar tempo a acabar a frase, Pêro Gonçalves, olhos chispando fúria, deu um tremendo pontapé no seu rival, prostrando-o no chão, como morto. Depois, fazendo-o rolar na areia, cuspiu para o lado num gesto de desprezo, quase rosnando:
— Dou-te com os pés, que já estão habituados a sujarem-se na lama!
Aninhas olhou Pêro Gonçalves com olhos cheios de pasmo por tão ousada atitude. O burburinho cresceu. Juntou-se gente. Faziam-se perguntas. E a rapariga, aproveitando a enorme confusão, fugiu para casa com o coração desfeito. Era a sua primeira desilusão de amor...
Foi preso o jovem Pêro Gonçalves. Alguns amigos tentaram pedir por ele ao rei. Mas, durante dois anos, Pêro Gonçalves expiou a culpa de haver derrubado a fortes pontapés um jovem de uma das famílias mais benquistas da cidade.
Ao sair da prisão, deu de caras com Aninhas que o esperava. Ele sorriu, zombeteiro:
— Vens cuspir-me na cara?
A voz dela já não era arrogante.
— Não... venho para casar contigo!
Ele encolheu os ombros.
— Liberto-te da jura que fizeste...
Aninhas aproximou-se, dócil.
— Prometo gostar de ti. Foste um valente!
— E tu... uma leviana! Não quero para mim uma mulher que esteve quase a perder-se só porque a deslumbraram com promessas de vestidos e jóias!
Soou humilde a voz da rapariga:
— Estou mudada, Pêro Gonçalves! E agora admiro-te muito. Sabes que te chamam «O Pé de Ferro»?
Como resposta, houve um suspiro fundo. E depois, como falando consigo próprio:
— Pé de ferro! Pé de ferro!... Mais valia um coração de ferro que me livrasse das artimanhas das mulheres!
Aninhas sorriu-lhe e encostou-se ao seu braço.
— Vamos! Precisas de um bom jantar!
Sem responder, Pêro Gonçalves começou a descer a rua. Aninhas não lhe largara o braço. Caminhavam silenciosos, corações batendo em uníssono.
Sobre a areia, os passos de ambos marcavam o compasso, rangendo, gemendo, a prevenir que a vida é um duro caminho pelo qual pés leves ou pés de ferro terão sempre de passar...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 139-144
- Place of collection
- Santos-O-Velho, LISBOA, LISBOA