APL 2851 Lenda do Monte da Dor

Das várias versões que eu conheço desta lenda, escolho e aproveito para contar a que aprendi em certa viagem saudosa ao Minho.
A sua história dramática está ligada a esse pitoresco e simbólico Montedor, situado nas vizinhanças de Âncora e Moledo.
É uma lenda de amor e de morte, e sempre me faz lembrar o maravilhoso soneto de Antero de Quental:


Esse negro corcel cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
De noite, nas fantásticas estradas
Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido no porte,
Vestido de armadura reluzente

Cavalga a fera estranha sem temor.
E o corcel diz: «Eu sou a Morte!»
Responde o cavaleiro: « Eu sou o Amor!»

Sim, tal como a própria História nos conta, aí por inícios do século X, governava em Gaia um poderoso emir, guerreiro e poeta. Este tinha uma irmã jovem e formosa que se chamava Aldara. E não queria de modo algum que a sua irmã vivesse escondida do mundo.
— Aldara, minha querida irmã, precisamos de festas, de torneios... A vossa beleza, irmã, vive apagada, longe dos olhos do mundo, desse olhos que poderão encantar-se decerto com ela, como se encantam os meus.
Ruborizada, quase tímida, Aldara limitou-se a dizer:
— Oh, senhor meu irmão, eu não mereço tanto. Mas precisamos, sim, de festejar as vossas conquistas, para que os visitantes admirem o vosso poder e a vossa coragem.
— Pois ides ver, querida Aldara, ides ver... Quero organizar o mais sumptuoso dos torneios havidos até hoje!

E, de facto, perante o alarde proclamado pelos emissários do poderoso emir, todos os nobres das redondezas ali acorreram.
Aldara era, sem dúvida alguma, a estrela mais brilhante da corte. Para ela convergiam, sem qualquer excepção, os olhares e as atenções de todos. E o poderoso emir não escondia o seu orgulho, a sua vaidade perante o efeito produzido pela beleza de Aldara.
— Senhora minha irmã, vedes como vos olham?... Eu tinha razão, absoluta razão... Todos estão enfeitiçados por vós!
Ambos se riram. Depois Aldara baixou pudicamente os seus belos olhos negros.
— Como vós sois bom e amável, senhor meu irmão!... Parece-me contudo que é a vós, senhor poderoso e invencível, que eles mais admiram.
Calaram-se por instantes, fixando demoradamente, voluptuosamente, a multidão de grandes senhores que se espraiava diante dos seus olhos.
Mas, de súbito, uma bonita melodia, romântica e aliciante, chegou até junto deles, envolvendo-os, cativando-os.
— Que será isto? Escutais, meu senhor irmão?... Ouvis esta música tão bela... e tão estranha?
O emir ergueu-se, e do alto da sua figura dominadora observou:
— Algum trovador, com certeza... Talvez aquele... Sim, aquele mesmo... além!
— Aquele moço de olhos azuis e ar triste?
— Esse mesmo, senhora minha irmã.
E logo, num ar de bom amigo, aconselhou numa voz baixa mas incisiva:
— Mas não deveis perder tempo a olhar para ele, Aldara. Tendes aqui, a vossos pés, nobres valentes e ricos. Um trovador não vos pode interessar.
Soltou uma risada e acentuou:
— Sim... Que vos pode interessar um pobre trovador?
Todavia enganava-se o poderoso emir. Enganava-se redondamente. Desde logo, Aldara, sem saber dizer porquê, sentia-se arrastada para o moço trovador desconhecido. Os olhos de ambos várias vezes se encontraram, demorando-se em apaixonada contemplação. E a música que ele tocava fazia-os sorrir. Sorrir e viver mais intensamente. E sentir o bater impetuoso dos seus corações. A certa altura, Aldara viu que o moço trovador desconhecido se aproximava dela, aproveitando o afastamento do poderoso emir.
A sua voz soou-lhe aos ouvidos como se fizesse parte da própria música.
— Senhora... Permiti que eu, que vim de longes terras, possa ao menos ver mais de perto a vossa beleza.
Aldara sorriu enleada. Suspirou. Voltou a sorrir. E voltou a suspirar.
— Ora, palavras de trovador!... Todos vós falais da mesma maneira...
Ele curvou-se, aproximando-se. A sua voz baixou de volume mas aumentou de fervor.
— Senhora... Nem todos sentem igualmente o que dizem...
Aldara reparou que estavam a ser observados por muitos dos outros concorrentes.
— Reparai, que vos podem achar por demais ousado...
Mas logo ele, num rompante de enamorado, disse num misto de exaltação e de encantamento:
— Oh, senhora, como não ser ousado diante do fulgor dos vossos olhos... do perfume do vosso cabelo… da esbelteza do vosso colo!
Aldara fixou-o atentamente, como que a querer ler-lhe no íntimo.
— Mas, afinal, como vos chamais... e donde vindes?
Ele respondeu apenas com outra pergunta:
— Que importa o nome, senhora?
Perante o silêncio de Aldara, ele insistiu:
— Sim, que importa o nome?... Sou um escravo que deseja ardentemente servir-vos, nada mais. Venho de longes terras, onde tocava e cantava nos palácios e nos castelos. A fama deste torneio chegou até lá. Principalmente a fama da vossa beleza, senhora!
Aldara pareceu não ficar satisfeita.
— Senhor trovador... Há nas vossas palavras um mistério qualquer... O meu coração bem o pressente!
Então, o moço trovador desconhecido voltou a inclinar-se para ela e a dizer baixinho, numa voz meiga que mais parecia murmúrio de música:
— Talvez, senhora... Talvez exista, sim, um mistério, um enorme mistério... o mistério do amor!

E mistério foi ele, tão grande, tão forte e dominador, que nessa mesma noite a jovem e bela Aldara fugiu com o moço trovador desconhecido. O destino os juntara, o destino os levou pelos caminhos fora, ao ritmo dos seus corações enamorados.
Na noite quieta, o galope doido do cavalo da aventura era bem o símbolo da grande jornada para o amor e para a morte...
Mal soube o que acontecera, o poderoso e temido emir de Gaia jurou vingança.
Reuniu os seus melhores guerreiros e partiu imediatamente em perseguição dos dois fugitivos.
— Havemos de encontrá-los, custe o que custar!... E não haverá perdão para eles... Não haverá perdão!
Sentindo-se perseguidos, a jovem e bela Aldara e o trovador desconhecido tinham-se escondido no alto de um monte, junto ao rio Âncora. Iludido pelo seu desejo, o trovador dissera:
— Eles não nos descobrirão aqui, meu amor...
Trémula, aconchegando-se nos seus braços fortes, Aldara não se mostrou tão esperançosa.
— Creio bem que vos enganais.
E entre dois suspiros — tristes, amargos, profundos — acrescentou:
— Aperta-se-me o coração, ao pensar na nossa triste sorte!...
O moço trovador ergueu-se então e olhou-a bem de frente.
— Escutai, querida. Tenho uma ideia para vos propor. Deixai este monte e gritai ao vosso irmão que me abandonastes, que não mais quereis saber de mim... Ele decerto não vos castigará.
Aldara abanou a cabeça tristemente.
— Não o conheceis, para falar assim. Eu conheço-o bem. Meu irmão não mais me poderá perdoar... a não ser com a morte!
Ele apertou-a de encontro ao peito.
— Não! Não o consentirei!
— E que podeis vós, meu amor, contra tantos... e tão valentes?
Fê-lo sentar-se e sentou-se junto dele.
— Não sejais insensato...
Depois, tentando sorrir através das lágrimas que lhe inundavam os belos olhos negros, pediu-lhe docemente:
— Tocai, meu amor, tocai a vossa música maravilhosa… enquanto esperamos pelo fim!...
Mas ele não teve coragem para tanto. Rojou-se aos pés de Aldara, exclamando, humilde e sincero:
— Oh meu amor, minha adorada, a culpa foi minha!... Só eu mereço castigo!
Ela ajudou-o a soerguer-se e a sentar-se de novo a seu lado.
— A culpa não vos pertence. Eu esperava-vos. Sabia que um dia havia de encontrar um homem como vós, capaz de me enfeitiçar...
— E eu, Aldara, corri o mundo à procura de uma mulher como vós!
Uniram-se num amplexo maior. E até eles chegou certo ruído que os fez estremecer. Sem romper o abraço, Aldara murmurou:
— Escutai... Creio que se aproximam...
O jovem apurou o ouvido.
— Sim, tendes razão, meu amor... Já devem ter descoberto o nosso refúgio!
E quedaram assim, nos braços um do outro, até que se viram cercados pelos homens do emir. Este gritou, num acesso de ódio:
— Miseráveis!... Eu bem sabia que havia de os encontrar!
Num gesto de violência ordenou, raivosamente:
— Separai-os! Depressa! Depressa!
Todavia, apesar dos esforços dos sequazes do emir, a jovem e bela Aldara e o moço trovador desconhecido permaneceram unidos no mesmo abraço desesperado que ninguém era capaz de desfazer...
Então, apopléctico, ardendo em fúria assassina, o emir não hesitou mais. Levantando a sua adaga, com um golpe brutal matou o moço trovador desconhecido.
— Vamos, atirai-o ao rio! A ela, trazei-a convosco, para a castigar depois!
Mas Aldara, num assomo de coragem, conseguiu libertar-se das mãos dos captores.
— Não! Não irei!... Já não és mais o meu irmão!... És um monstro!... Um monstro!... Larguem-me!... Deixem-me!... Eu quero ir para junto do meu amor!... Ninguém mais nos poderá separar!
E Aldara atirou-se do alto do monte, desaparecendo ofegante nas águas que já guardavam o corpo do moço trovador desconhecido...

Segundo reza a tradição popular, foi por essa razão que esse monte junto do rio Âncora passou a chamar-se Monte da Dor, nome que veio a fundir-se no actual Montedor.
E diz-se que ainda lá estão no fundo do rio os corpos da bela e jovem Aldara e do moço trovador desconhecido, unidos para sempre no mesmo abraço indestrutível de amor e de morte.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 357-361
Place of collection
Carreço, VIANA DO CASTELO, VIANA DO CASTELO
Narrative
When
10 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography