APL 2707 Lenda das Meninas Belas
Manhã. Claridade e sossego. O ar fresco da serra fustigava os cabelos brancos de um homem alto, de longas barbas e aspecto fidalgo. No olhar, uma luminosidade estranha dava-lhe um ar de profeta. Junto dele a mulher — baixinha, simples, de olhar bondoso — fitava-o com ansiedade.
— Como te sentes agora?
O homem respirou fundo:
— O que nós já caminhamos! Mas aqui, nesta serra, parece-me que encontraremos refúgio seguro. Construiremos uma casinha modesta. Para nós chegará...
Carinhosamente, ela tomou-lhe uma das mãos e encostou-a ao rosto, onde deslizavam lágrimas silenciosas.
Sentindo na pele a humidade dessas lágrimas, o homem sobressaltou-se.
— Porque choras?
Ela sorriu, sem o olhar.
— Porque finalmente encontrámos a paz. As nossas filhas estarão a salvo!
— E onde estão elas? Que não se afastem!
— Já ali vêm. Andam a juntar pedras para a nossa casa. Lá em baixo vive gente. Creio que vão ajudar-nos.
O olhar do homem percorreu todo o horizonte.
— É necessário prudência!
— Elas já aí vêm.
Com efeito, gargalhadas juvenis brincavam no ar frio que envolvia a serra. Ao descobrirem os pais, duas jovens dirigiram-se-lhes, contentes.
— Gosto tanto disto, meu pai!
— E eu também! Aqui há sossego, há paz de espírito... E que linda paisagem!
O homem olhou em volta.
— Construiremos também uma capelinha onde possamos colocar este Senhor Crucificado, que foi quem nos salvou!
Uma das meninas bateu palmas, exclamando:
— O povo nos ajudará!
O homem meneou a cabeça.
— Cuidado, minhas filhas! Não basta que peçamos a Deus para nos salvar. E preciso colaborarmos com ele. Guardem pois avaramente o nosso segredo! Que ninguém o conheça! Ninguém...
Solenemente, as duas jovens juraram calar-se.
Então o pai ergueu de novo os olhos ao céu, dizendo numa oração:
— Graças, Senhor, pelo refúgio que nos destes! Aqui juramos nada revelar do nosso nascimento ou dos pensamentos que nos assediam!
— Ámen! — disse baixinho a esposa.
E o Sol luminoso, de uma luz azulada, transparente, veio acariciar aquele homem de barbas brancas mas de aspecto viril, aquela mulher de olhar meigo como um cordeiro, e as duas donzelas, lindas como as flores em plena Primavera.
Algum tempo passou. Certo dia, à tardinha, após a última refeição, o homem de barbas brancas olhou as filhas com ar penetrante.
— Preciso falar-vos.
Elas quedaram-se, entreolhando-se. Ele continuou:
— Quis Deus que as minhas duas filhas, Branca e Lídia, nascessem e crescessem belas de corpo e de alma. Mas a beleza da alma não atrai tanto como a beleza física. Por causa dessa beleza temos sofrido muito. Portanto não tireis daí vaidade e continuai prudentes, pois o povo dos arredores já vos chama — as Belas! Ora, como sabeis, isso é perigoso... Pode chegar aos ouvidos desse monstro que tanto nos fez sofrer!
Branca perguntou:
— E que havemos de fazer, meu pai?
— Mostrai-vos o menos possível.
Lídia observou:
— O pai não sai daqui. Contudo... o povo já o trata pelo «Senhor da Serra»...
O homem suspirou fundo.
— A curiosidade é um grande mal, por vezes! Como nada sabem de nós, ardem em desejo de desvendar o mistério que nos rodeia. Cuidado, pois, minhas filhas! No dia em que se souber quem somos... ou se falar bastante de vós… nesse dia teremos deixado de colaborar com Deus e ficaremos abandonados ao nosso destino!
Lídia tranquilizou-o:
— Teremos cuidado, meu pai. Não iremos mais ao povoado.
O vento bateu na porta de mansinho, como que a chamar, cariciosamente, as irmãs Belas... Mas a noite aproximava-se, e as meninas taparam os ouvidos aos murmúrios do vento e foram deitar-se, tentando dormir. Todavia, os seus pensamentos jovens sonhavam coisas mirabolantes, afastando o sono e dando guarida à insónia...
Nessa manhã clara que prometia um dia de sol, Branca e Lídia obtiveram licença dos pais para darem um passeio pela serra, sem contudo descerem à povoação. Inquieta, a mãe recomendou que não se afastassem. Sedentas de liberdade, Branca e Lídia saíram como borboletas, pousando de flor em flor.
Tinham talvez andado uns duzentos metros, quando Branca estacou, chamando a irmã que vinha um pouco mais atrás:
— Lídia!
A rapariga correu e ficou estática. A poucos passos, um jovem alto, belo, distinto, sorria-lhes, num sorriso de triunfo. Falou-lhes, quando percebeu que elas iam fugir.
— Esperai um pouco! Há dias que vos procuro nesta serra...
Elas voltaram-lhe as costas. Mas ele agarrou Branca por um braço.
— Não vos deveis afligir… Sou um cavaleiro cristão. Chamo-me Lucílio e combato a moirama. Sou nobre e de uma família de bem!
Timidamente, Branca conseguiu perguntar:
— E que fazeis aqui, senhor?
Ele sorriu.
— Procurava as irmãs Belas, de que o povo tanto fala, lá em baixo. E não se enganou, o povo. Sois tão igualmente belas, que não sei distinguir qual é a dama dos meus sonhos.
Lídia achou forças para falar também.
— A dama dos vossos sonhos?
O jovem fez sentar as donzelas num tronco de pinheiro caído no chão. Depois sentou-se, em frente, num pequeno rochedo.
— Sabeis que fiquei como petrificado quando vos vi?... Há muito que sonho com uma formosíssima dama que me olha, sorri e diz que será a dona do meu coração. Pois sabeis o que me aconteceu agora?... A dama dos meus sonhos está na minha presença!
Como Lucílio olhasse as duas irmãs, Branca indagou:
— E qual das duas senhor, é a dama a que vos referis?
Lucílio hesitou antes de responder. Mostrava-se embaraçado.
— Eis o meu dilema: qual de vós, afinal, é a dama dos meus sonhos?... Vós, a quem ouvi chamar Lídia, e cujo olhar já tantas vezes me envolveu em sonhos, que se tornou meu conhecido?... Ou sereis vós, a de cabelos loiros, os quais beijei tantas vezes já, que lhe perdi a conta?...
As jovens entreolharam-se, confusas. Já nem pensavam nos pais, nem no dia de sol quente, nem na gente do povo falando a todos nas meninas Belas... Nem mesmo no segredo de que tão avaras se teriam de mostrar. Desde esse momento, o pensamento de ambas era uníssono com o bater dos corações: o jovem e belo cavaleiro cristão que as encontrara na serra!
Ele sorria para ambas, mas uma pontinha de ciúme parecia despontar na expressão de cada uma delas.
Branca voltou a interromper o jovem fidalgo, agora entregue às descrições da Corte:
— Senhor... Perdoai-me a curiosidade... Mas tentai recordar-vos bem do vosso sonho.
Ele sorriu.
— É inútil. A dama que me aparecia tinha a cor dos vossos cabelos e o olhar de vossa irmã Lídia.
Lídia entristeceu.
— Pois creio, senhor, que teremos de continuar a ser para vós um sonho...
Ele sobressaltou-se.
— Porquê? Acaso vos ofendi?
— Não. Mas nossos pais esperam-nos e temos de partir.
Lucílio olhou o Sol a pino.
— Tendes razão. Não vos demoro mais. Contudo... permiti que vos afirme o meu propósito de voltar aqui muitas vezes, onde espero encontrar-vos.
Lídia foi a primeira a estender a mão ao jovem fidalgo. Branca imitou-a. E em silêncio tomaram o caminho de casa.
Lá no alto, o Sol espreitava-as, insuflando-lhes o seu bafo de fogo. E de fogo parecia o peito dessas pobres jovens, separadas do mundo pelo seu trágico segredo.
Alguns dias passaram. Como fazia calor, o homem das barbas brancas deixou-se ficar junto à porta de casa, gozando o ar fresco da manhã. Olhava o céu com preocupação. De súbito, chamou a esposa:
— Maria!... Vem cá.
Solícita, ela abeirou-se do marido.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não. Por enquanto, não. Mas ando apreensivo. As nossas filhas saem todas as manhãs e todas as tardes!
— Sim, já reparei nisso. Mas que hão-de elas fazer, as pobrezitas?
— Reparaste também nas suas expressões? Deixaram de rir e brincar. Em casa evitam-se... Não falam uma à outra... Mas saem sempre juntas.
A mulher suspirou.
— Tens razão, eu já tinha notado... Porém a situação em que nos encontramos... este isolamento... explica o estado de espírito das nossas pobres filhas...
O homem abanou a cabeça.
— Não creio! Pressinto algo que não consigo discernir. Mas hei-de descobri-lo! Vou dar uma volta.
— Cuidado!... Tu nunca saíste daqui...
— Não terá decerto maior perigo do que deixá-las sozinhas na serra...
Era quase meio-dia quando o homem de barbas brancas se dispôs a voltar a casa. Não encontrara ainda as filhas. Caminhava devagar, sob o peso dos anos, do calor e das preocupações. De súbito, ouviu um ligeiro estalido. Abriu com os braços uma das moitas e viu uma rapariguita da aldeia a fugir espavorida. Que estaria ela ali a fazer e porque se assustara tanto? Mas logo ouviu vozes. Vozes suas conhecidas — e a de um homem, que nunca ouvira antes... Aproximou-se devagar, oculto pelas moitas, sem dar sinal da sua presença, e pôs-se à escuta. As duas jovens continuavam falando. Agora era Branca que dizia:
— Ben Azac também se enamorou de nós duas. E isso foi terrível!
Lídia contrariou:
— Foi terrível porque ele é um rei mouro e mau! Desejou-nos às duas e tentou raptar-nos. Por isso fugimos para aqui, como já Branca lhe contou há pouco...
Então, uma voz dura soou, no alto da serra:
— Perjuras!
Loucas de medo, as duas irmãs olharam a figura estática do pai e a sua expressão de cólera. Caíram-lhe aos pés, implorando perdão.
— Senhor meu pai! Foi o amor que me fez falar!
— Quem o ama sou eu e é a mim que ele ama!
O homem deixou de olhar as filhas, para medir de alto a baixo o jovem cavaleiro, agora um tanto confuso. Por fim, com uma vénia respeitosa, apresentou-se:
— Senhor... O meu nome é Lucílio de Mascarenhas e Lorena...
O velho pareceu serenar aos poucos. Depois acabou por dizer, fitando o cavaleiro:
— Sabeis agora a nossa história. Está descoberto o nosso segredo. Se amais alguma das minhas filhas, ficai sabendo também que o perigo voltou.
— Eu jurei-lhes pela minha honra não vos descobrir. E acrescento agora: pela minha espada juro defender vossas filhas, até à morte!
Um vento fresco fez murmurar as ramadas das árvores. Junto à casa da serra, as duas irmãs conversavam com o jovem cavaleiro, que as visitava agora diariamente. Os dias de Verão tinham passado, um após outro, abrindo passo ao Outono. Folhas amarelecidas punham pinceladas de ouro no quadro grandioso da Natureza. A terra cheirava a humidade fecundadora. Porém o sol ainda era quente...
Lucílio olhava agora com ternura os lindos olhos de Lídia.
— Porque vos fez Deus tão bela? Creio que sois vós a dama dos meus sonhos!
Ela sorriu com amargura.
— Mas não possuo cabelos loiros, como os da minha irmã...
Branca aproximou-se.
— Lucílio! Tendes de vos decidir! Nós já não somos as mesmas. Andamos inquietas... espiamo-nos... já não nos ajudamos uma à outra...
— E se eu decidisse?
— A que fosse preferida partiria convosco... A que ficasse... saberia resignar-se. Assim, nesta dúvida, acabaremos por nos odiar...
Lídia gritou:
— Branca! Como podes dizer tais coisas?
— Prefiro dizê-las a conservá-las no pensamento, como tu!
— Antes tê-las em pensamento e saber calar do que falar demais. Foste tu que começaste a divulgar o nosso segredo...
— Contei-o apenas a Lucílio!
— Mas o pai diz que mais alguém o escutou! Ele viu fugir uma rapariga da aldeia. Ela andou a espalhar tudo. Já não estamos em segurança!
Lucílio olhou-a com firmeza:
— Branca! Jurei defender-vos até à morte e cumprirei a minha promessa!
A donzela mordeu os lábios para não chorar.
— E julgais que a vossa morte poderá salvar-nos?...
Lucílio ia responder, quando uma algazarra vinda do sopé da montanha chegou até eles. Olharam. Uma multidão de homens armados subia apressadamente em direcção à casinha da serra. A frente, um homem que parecia o chefe gritava com fúria. Quando o vento trouxe a sua voz não houve mais dúvidas.
— Velho maldito! Finalmente descobri o teu esconderijo! Chamam-te o «Senhor da Serra»... Pois na serra ficarás para sempre! Tu... e tua mulher! Mas elas, as tuas filhas, serão para mim! Tê-las-ei, custe o que custar! Não tentes fugir! Já estão cercados!
Ouvindo aquela voz, o homem de barbas brancas fez-se tão branco como as suas barbas. Sabendo a sorte que o esperava, falou ainda ao seu inimigo:
— Rei tirano! Os nossos hão-de acabar com o teu reinado! Vem, cobarde! Somos cinco contra quinhentos! Morreremos, mas com honra!
A batalha foi rápida. Lucílio correu a defrontar o rei mouro. Lutavam com ferocidade, enquanto o velho tentava defender as filhas. Mas logo caiu ferido ao lado da mulher, que o levou com dificuldade para a capelinha da serra. E também Lucílio não tardou a sucumbir. Então, ainda ofegante pelo esforço da luta, o rei mouro aproximou-se de Branca, que um guerreiro sarraceno segurava.
— Minha pombinha! O teu cavaleiro já não existe!
Branca olhou-o com raiva.
— Não me toqueis! Odeio-vos!
— Que pena! Serás minha dentro em breve!
— Lucílio morreu por mim! Eu morrerei por ele! Só a ele devia pertencer!
E arrancando a adaga ao mouro que a segurava, cravou-a no peito!
Lídia soltou um grito. O rei mouro olhou-a.
— Ficarás tu, então! Segurem-na! Não a deixem fazer o mesmo!...
Mas já era tarde. Lídia seguira o exemplo da irmã.
Praguejando, o Mouro bateu em retirada. E na serra onde o vento fresco do Outono soprava, ficaram os corpos ensanguentados dos protagonistas de tão grande tragédia.
Lado a lado, as duas jovens, pareciam mais belas do que nunca!
O velho expirou pouco depois na capelinha da serra. Diz-se que os mouros ainda viram, com pasmo, o seu corpo erguer-se e subir lentamente no espaço, levado por dois anjos. De tal modo se tomaram de pavor que fugiram dali para não mais voltar.
Só ficou a pobre viúva, chorando a sua mágoa sem fim. E conta a lenda velhinha que foram tantas as lágrimas da pobre mãe, que o local onde ela se finou passou a ser chamado «Mãe de água» — local que ainda hoje existe nos arredores de Belas.
De pais para filhos, a história das meninas Belas tem vindo a ser contada. E a terra onde elas viveram passou a chamar-se Terra das Belas. E mais tarde — apenas Belas.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 129-135
- Place of collection
- Belas, SINTRA, LISBOA