APL 2780 Lenda da Última Vontade de Ranosindo
A acção da lenda que vou contar decorre na antiga Lusitânia, que então abrangia muitas das terras que hoje pertencem à Espanha. Mas tem perfeito cabimento nestas «Lendas de Portugal», pois a ela se atribui a origem do nome de uma terra bem portuguesa: Alfeizerão. E os feitos que relata, pelo seu valor e audácia, bem justificam a sua inclusão entre as Lendas Heróicas, a que este volume é dedicado.
Os dois exércitos investiram com ímpeto igual ao das torrentes quando baixam dos altos cumes das montanhas. A peleja foi dura e cruel. Largo tempo esteve duvidosa a vitória para qualquer das partes contendoras. Ayub, o árabe que depois da morte do seu primo Abd-el-Azi tomara as rédeas do governo interno da Espanha, queria continuar na conquista das terras ocupadas pelos Godos. E essa batalha perto dos desfiladeiros de Corca apresentara-se difícil para os muçulmanos. Os godos, embora inferiores em número, ocupavam as melhores posições. Largo tempo durou a luta sanguinolenta. Viam-se espadas ao alto escorrendo sangue, e sempre, sempre prontas a cair sobre nova presa, num macabro vaivém. Fazendo prodígios no seu cavalo árabe, Ayub corria ao mais aceso da peleja a encorajar os seus. Nos desfiladeiros, os godos vendiam cara a vida, pois sabiam que, uma vez desalojados, a batalha estaria perdida para eles. Do lado dos godos, alguém gritou:
— Levaram-nos o estandarte!
Foi então que Ranosindo, dando de esporas ao cavalo, entrou no campo inimigo, seguido no seu gesto desvairado por mais dois ou três cavaleiros. Num ímpeto invencível, Ranosindo conseguiu reaver o estandarte. Entregando-o a um dos seus companheiros, gritou-lhe então:
— Vai-te e leva contigo o símbolo da nossa liberdade! Esconde-o na montanha para que não o encontrem, pois cedo de lá nos farão sair!
Internando-se no aceso da luta para cobrir a retirada do companheiro, em breve uma lança o apanhou pelas costas e o derrubou do cavalo. Depois, o mundo pareceu girar à sua volta e o fragor da luta deixou de soar aos seus ouvidos. E, na sua boca ensanguentada, a areia do chão deixou de ter sabor...
O sol que passava pela fresta da tenda mal fechada iluminava em cheio o rosto macerado de Ranosindo. A seu lado, outros homens muito feridos gemiam as suas dores. O jovem godo olhou com dificuldade cada um dos seus companheiros. Eram feridos do combate, como ele. A presença de um árabe de olhar vivo e expressão endurecida deu-lhe a conhecer, sem palavras, a trágica situação: estavam prisioneiros! Já restavam dúvidas ao jovem Ranosindo: a batalha nos desfiladeiros fora mais uma catástrofe para os Godos! Depois de Guadalete, a sorte virara-se contra eles!
Respirando com dificuldade, Ranosindo perguntou a si próprio quanto tempo mais teria de vida. Mas, antes que obtivesse de si mesmo uma resposta, viu o árabe perfilar-se, a tenda abrir-se, e na sua frente surgir a figura altiva do chefe Ayub.
Alto, de compleição hercúlea, o governador árabe trazia no olhar uma expressão isenta de ódio. A sua voz soou com simpatia.
— Que Alá melhore a tua sorte, Ranosindo!
Com dificuldade, o jovem respondeu:
— Pelo menos que Deus não se esqueça da minha alma... quando breve ela voar ao tribunal da Penitência!
Baixando o tom de voz, Ayub perguntou:
— Sofres muito?
Tentou o jovem godo sorrir, mas no seu rosto desenhou-se apenas um esgar de dor.
— É bem de calcular…
O seu olhar, que teimava em não querer apagar-se, tomou novo brilho. E perguntou ainda:
— A que devo a honra… da visita… do chefe vencedor?
Sem querer reparar na ironia, o árabe respondeu, sereno:
— Lutaste com denodado brio e fiquei a admirar-te. Além disso… sou o chefe Ayub!
— Bem o sei.
— Primo de Abd-el-Aziz!
Ranosindo engoliu a saliva ensanguentada que lhe vinha aos lábios. Respirou o melhor que pôde. E perguntou, com certa ansiedade mal disfarçada:
— Como está a minha irmã… depois da morte de teu primo?
— Desgostosa. Ela viu-o morrer!
— Bem sei... Foi por ordem de Soleimão...
— O meu primo foi morto ao lado da tua irmã, enquanto oravam na mesquita!
Alteou-se a voz do ferido.
— Minha irmã... orava na mesquita?
— Sim. Meu primo e ela apaixonaram-se de tal forma, que tua irmã tomou a nossa fé antes de casarem. Contudo... Soleimão mandou-o matar, sob o pretexto de Abd-el-Aziz, por influência da mulher, ser brando com os Godos!
Ranosindo respirava com mais dificuldade. Mas continuou falando:
— Na verdade… constou-me tudo isso! Nesse dia... em que me disseram... que ela tinha renegado a nossa fé... para casar com um árabe... jurei combatê-lo… até à morte!
Como falando consigo próprio, o árabe declarou:
— Mas Omalisan era feliz!
— Omalisan?...
— Sim, ela mudou também de nome.
Quase tão baixo que mal se ouvia, o jovem godo sussurrou:
— Mudou de nome… de marido… de família... de religião… de pátria… de carácter...
— Amavam-se, acredita!
— Mesmo assim... deveria saber resistir... Era a esposa do nosso rei Rodrigo...
— Que não a sabia apreciar... e desapareceu...
— Andava na guerra...
— E quando não andava? Julgas acaso que não sabemos quem foi o vosso rei Rodrigo?...
— Falas como se ele já tivesse morrido!
— Depois de Guadalete, já ouviste falar dele?... Já o viste?... Já te enviou alguma mensagem?...
— Não.
— Sinal de que morreu ou quer viver o resto da vida ignorado. Mas escuta: tua irmã nunca amou o teu rei!
— Talvez não. Mas ele… escolheu-a!
— Porque ela é muito bela.
— Sim... era a mais formosa das damas da corte...
— Descansa agora. Não deves falar tanto.
— Que importa... uma hora a mais... ou a menos de vida? Isto é o fim!
O chefe árabe pousou uma das mãos num braço do jovem godo e segredou-lhe.
— Posso ser-te útil nalguma coisa?
Admirado, Ranosindo olhou-o bem nos olhos. A sua voz soou fraca mas cheia de ansiedade.
— Sou teu prisioneiro... Porque me fazes isso?
— Porque te admiro.
— Poderei... deveras… confiar em ti?
Solenemente, o jovem árabe pronunciou:
— Juro-o por Alá!
A respiração de Ranosindo tornou-se mais ofegante. Estendeu-lhe uma das mãos.
— Então... tira-me este anel!
Ayub obedeceu. Já de posse do anel, olhou-o com certa curiosidade.
— É bonito e bom!
— É de família... Da família... que se extingue... comigo!
— Que devo fazer, então, desta preciosa esmeralda?
— Entregá-la... à jovem... mais bela... da Lusitânia...
— E onde está essa jovem?
Um ataque de tosse sacudiu os ombros e o peito do cavaleiro godo. Ayub insistiu:
— Descansa! Logo voltarei aqui.
Ranosindo afligiu-se.
— Não! Não te vás… sem te dizer... Aproxima-te mais... Assim...
Respirou tanto quanto pôde. Depois, tão baixo que mal se ouvia, o moribundo continuou:
— Ela... está escondida… num porto de mar... próximo de Eburóbriga...
— E como se chama essa jovem?
— Juliana.
— É também tua irmã?
Mais baixo ainda, o jovem murmurou:
— É minha noiva...
Ayub interrogou, sensivelmente emocionado:
— E que devo fazer? Procurá-la e entregar-lhe este anel?
— Sim... e dizer-lhe... que o meu pensamento... esteve sempre a seu lado!
— Dir-lhe-ei que morreste com honra!
Julgando que o árabe ia já retirar-se, o jovem teve um movimento rápido para o reter. E murmurou a custo:
— Espera...! Quero recomendar-te… que não te apresentes a Juliana como triunfador… ostentando o meu anel... Ela ama-me… é sensível… violenta… poderia… matar-te!
O árabe esboçou um sorriso que não chegou a concretizar-se. Ranosindo entrava nos seus últimos momentos.
O chefe ordenou, rápido, a um dos subalternos:
— Chama um físico. Depressa!
Mas quando a ordem foi cumprida, já o jovem e valente Ranosindo, havia entregue a alma ao Criador!
Depois que o cavaleiro godo deixou de viver, Ayub confiou o seu governo a Zayad-ben-Zaide e internou-se para oeste da Lusitânia. Ninguém conhecia a jura que o chefe árabe fizera a um cavaleiro godo. Ninguém estava ao facto do verdadeiro motivo que levava Ayub a ausentar-se. Assim, os seus imaginavam que o Vali procurava, apenas o meio mais seguro de cair sobre o resto da província. E em parte não se enganavam. Para estar bem com a sua consciência de árabe perfeito Ayub aliara ao cumprimento de uma promessa feita a um inimigo, o prosseguimento do combate contra esse mesmo inimigo. Grande foi, pois, a luta de Ayub até encontrar o local e a jovem de quem Ranosindo se lembrara ao morrer. Muitos dias, muitas semanas, disfarçado de vendedor ambulante, levou Ayub a percorrer a Lusitânia. Mas, por fim, logrou ter êxito na sua busca. Encontrara finalmente o porto de mar indicado e a jovem Juliana!
Foi numa tarde de Outono. O Sol punha riscos de fogo no horizonte, enfeitado por outros laivos de nuvens cor de chumbo.
Numa sala modesta mas do melhor gosto, uma jovem olhava o horizonte estranhamente colorido, através duma janela envidraçada. A seu lado, uma serva, a única que lhe ficara e era para ela quase uma irmã, chamou-a à realidade.
— Senhora! Está lá fora um homem novo, bem parecido, que trouxe isto...
E mostrava uma caixa contendo um bolo!
A jovem olhou a estranha oferta.
— Um bolo? E quem o manda?
— Não sei. Ele ficou à espera.
Os olhos da jovem goda brilharam, subitamente. A sua voz soou com ansiedade mal contida.
— Falou-te em Ranosindo?
— Não. Disse apenas que te entregasse este bolo, que o partisses e comesses...
Juliana olhou o bolo com assombro e murmurou, pensativa:
— Que estranho!
Mas já Marina, a jovem serva, recomendava:
— Não te precipites! O bolo pode estar envenenado.
Juliana concordou.
— Nestes tempos, tudo é possível! Mas para me descobrirem aqui seria necessário que Ranosindo…
— Que vais fazer?
— Vou partir o bolo. Pode ser que nele venha alguma mensagem.
Desfez o bolo fofo e enxuto com as suas mãos esguias e nervosas. E, de repente, ficou estática.
Vendo-a de olhos muito abertos, Marina, aproximou-se.
— Que há?
Estupefacta, Juliana respondeu:
— O anel de Ranosindo!
Fez-se um pequeno silêncio. A jovem goda tornara-se subitamente pálida. Depois, como se a energia voltasse a dar-lhe vida, ordenou numa voz que não admitia réplica:
— Manda entrar esse homem!
Marina intimidou-se.
— E se for um inimigo? Os seus olhos parecem brasas…
Um grito imperativo soou na sala:
— Manda entrar esse homem! Quero vê-lo!
Baixando os olhos e a voz, Marina saiu da sala, desculpando-se:
— Eu vou... Queria apenas prevenir-te...
Só, Juliana deu largas à sua extrema aflição. O anel de Ranosindo parecia tinto de sangue. O coração batia-lhe descompassado. Mas quando o desconhecido apareceu na sua frente, a jovem goda conseguiu dominar-se. Altiva, serena na aparência, Juliana falou:
— És um desconhecido que me trazes algo que os meus olhos e o meu coração bem conhecem!
Ayub desviou o assunto, com um cumprimento sincero:
— És na verdade a mulher mais bela da Lusitânia!
Sem o ouvir, a jovem perguntou:
— Onde está Ranosindo?
Anuviou-se o rosto de Ayub, antes de responder com outra pergunta:
— Pois não o adivinhaste já?
Baixando a voz para dominar a comoção, Juliana perguntou apenas:
— Morreu?
— Como um bom chefe militar! A derrota foi total.
— E pensou em mim ao morrer?
— Falou sempre em ti e pediu-me que te entregasse esse anel.
Olhando o precioso presente com os olhos rasos de lágrimas, Juliana murmurou numa voz surda:
— Como o mundo agora me parece mau, tempestuoso, sem interesse! Mas o ideal pelo qual ele morreu seguirá comigo! Juro-o, no momento em que entro na posse deste seu anel!
Fez-se um pequeno silêncio, quebrado ainda por Juliana.
— Quem és tu, mensageiro da desgraça?
O chefe árabe, embora preparado para tal pergunta, hesitou um instante, a tomar coragem. Depois, com sinceridade, respondeu:
— Podia mentir-te, mas não o tentarei. Sou... Ayub, o chefe árabe desta província.
Juliana nem queria acreditar.
— És Ayub... e ousaste vir até aqui?
— Sim! Ayub veio procurar Juliana a pedido de Ranosindo e encontrou-a no Al-cheirazan.
— Vieste só por isto?
— Não. Dentro de pouco tempo estaremos aqui... Então, quando esta terra ficar totalmente sob o nosso domínio, em memória da mulher mais bela que vi até hoje edificarei aqui uma grande povoação, à qual daremos o nome de Al-feiziran.
— Porquê Al-feiziran?
— Para que me recorde a riqueza da tua dignidade, o brilho do teu olhar...
Interrompendo-o, Juhana concluiu:
— ... e a grandeza de alma dos que sabem ser grandes chefes. E agora, vai-te! Preciso de estar só.
— Não queres denunciar-me? Amanhã serei o teu maior inimigo, porque encetarei uma correria por todo este lado da Lusitânia!
Sempre serena e altiva, Juliana retorquiu-lhe:
— O dia de amanhã virá depois da morte do dia presente. Vai-te, Ayub, Ranosindo soube sempre escolher aqueles em quem devia confiar!
— Partes ainda hoje?
— Não. Ficarei no meu posto e tu no teu!
— Então... até breve! Voltaremos a encontrar-nos no Al-feiziran!
— Mas dessa vez encontrarás uma Juliana com a alma de Ranosindo!
E, sem mais olhar o chefe árabe, desviou para a janela o seu rosto empalidecido.
Ayub curvou-se numa reverência e saiu silencioso, nesse fim de tarde onde os riscos de fogo, no horizonte, se confundiam já com os laivos das nuvens cor de chumbo.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 135-141
- Place of collection
- Alfeizerão, ALCOBAÇA, LEIRIA