APL 2734 Lenda da Flor que Nasceu da Lama
Contam velhos pergaminhos — que ficaram na memória de alguns, os quais por sua vez contaram a outros — que em tempos remotos viviam ali, nas terras por detrás dos montes, lá bem ao norte de Portugal, dois irmãos muito virtuosos e estimados por toda a gente: um rapaz e uma rapariga.
Ninguém sabia donde tinham vindo, nem quem eram, na verdade. Mas mostravam-se tão bons, tão sossegados, que os deixavam viver em sossego, sem cuidar da sua origem.
Ela era muito jovem e muito bonita, talvez a mais bonita de todas as raparigas das redondezas. Ele parecia bastante mais velho e possuía uma cultura que embaraçava as pessoas sabidas.
Todavia, apesar da diferença de idades, o irmão em tudo obedecia às determinações da irmã...
E como passatempo favorito entretinham-se a andar pelos campos, falando das coisas do Céu e namorando as coisas da Terra.
Ora aconteceu que, certo dia, o rei mouro que então dominava a região soube também da existência desses dois irmãos, que a toda gente mereciam respeito e simpatia. E quis conhecê-los. Porém, matreiro como era, preferiu ir ao encontro deles sem que dessem por isso... E assim, mandou aparelhar o seu melhor cavalo.
— Vamos, depressa!... Aprontai-me o melhor dos meus cavalos... Tenho de fazer uma grande viagem!
E como se quedassem a olhá-lo, gritou mais forte e mais furioso:
— Vamos, imbecis, porque esperais?... E que o cavalo fique digno do seu cavaleiro, perceberam?...
Depois, numa gargalhada, gracejou:
— Que os meus próprios inimigos rebentem de inveja, quando eu passar!...
Cavalgando o seu cavalo branco ajaezado a ouro, o terrível monarca correu montes e vales, até que encontrou quem procurava.
Com aparente ar de singeleza, aproximou-se devagar dos dois irmãos.
— Vós estais sozinhos, jovens?
Olharam-no, sobressaltados. Mas, vendo o sorriso que lhes dirigia, sentiram-se mais tranquilos.
E o mais velho respondeu, sorrindo também:
— Senhor Dom Cavaleiro, basta que estejamos os dois para nos acompanharmos um ao outro...
O cavaleiro concordou, aproximando-se mais:
— Dizeis bem. — E logo, num ar brejeiro, acentuou: — Para dois jovens que vêm viver para o campo o seu romance de amor, todas as presenças são importunas...
Numa expressão de magoada e ofendida, a jovem retorquiu imediatamente:
— Perdão, senhor Dom Cavaleiro... Ele é meu irmão!
O cavaleiro fingiu surpresa.
— Sim? Então aceitai as minhas desculpas. Mas, sinceramente... considero excepcional o facto de encontrar dois irmãos... assim tão amigos...
Foi o irmão quem respondeu:
— Pois assim vivemos, senhor Dom Cavaleiro... E assim morreremos.
Depois, num reflexo de pura curiosidade, perguntou:
— E vós, senhor... quem sois?
Houve uma pequena pausa, antes do cavaleiro responder:
— Bem... Sou um dos favoritos do rei... A propósito: o rei já vos conhece?
Foi a vez da rapariga informar:
— Não, não nos conhece... Nem nós desejamos conhecer esse tirano, que tanto mal tem feito.
Num berro, o outro deixou transparecer o seu espanto:
— Que dizeis?
Mas logo o irmão se juntou à irmã, a reforçar-lhe as palavras.
— Dizemos a verdade, senhor Dom Cavaleiro! Vós decerto o sabeis... já que sois um dos seus favoritos.
A cólera do outro cresceu, na voz e no olhar e nos gestos.
— Pois quê? Atreveis-vos, diante de mim, a dizer tais coisas?
Os dois irmãos silenciaram, temerosos, perante o ar irado do cavaleiro. Porém a rapariga ainda se atreveu a acrescentar.
— E porque não, senhor Dom Cavaleiro? Falamos pela voz da verdade. Bem sabemos, por experiência própria, quanto este bom povo sofre com a tirania do rei.
A voz dela encheu-se de lágrimas.
— Foi por ordem desse tirano que mataram nossos pais!
Um sorriso misterioso voltou a nascer no rosto do cavaleiro.
— Ah! Compreendo agora... Estão aqui para se vingarem, não é?
— Não, senhor Dom Cavaleiro — retorquiu a voz tranquila da rapariga — a vingança não entra em nossos corações!
O rosto do rei mouro carregou-se de pequenas rugas interrogativas.
— Então... que pretendeis? Que intenção é a vossa?
Foi ela ainda quem respondeu, com a mesma tranquilidade de alma.
— Iluminar os espíritos dos bons... e encaminhar o espírito dos maus... É essa a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O cavaleiro deu mostras de ficar pouco satisfeito com a resposta. Esporeou o cavalo e gritou:
— Bem, vou seguir viagem... Já aqui me demorei bastante!
Depois a sua voz tornou-se mais branda, mais melíflua.
— Sempre vos digo, meu rapaz, que não deveis deixar andar por aqui vossa irmã. Ela é tão bonita, tão fresca, que faz entontecer o coração de qualquer homem.
O irmão da jovem limitou-se a afirmar convictamente:
— Não faz mal. Ela sabe defender-se. E, se precisar, terá sempre a minha ajuda!
Uma gargalhada maldosa saltou dos lábios do cavaleiro.
— Julgais-vos decerto muito forte...
O outro olhou-o de frente, com calma. E com calma retorquiu:
— Tenho a força que Deus me dá!
Nova gargalhada se fez ouvir. Desta vez mais grosseira, mais brutal.
— Pois ficai com a vossa força… que melhor ficará quem ficar com vossa irmã!
E abalou correndo pelos campos, sem mais olhar para trás...
Os dois irmãos, depois da abalada do estranho cavaleiro, ficaram a meditar no caso. Foi a jovem quem rompeu primeiramente o silêncio.
— Que homem tão singular... Falava com voz áspera, mas o olhar dele era doce e meigo...
O irmão sorriu.
— Ora, irmãzinha... Era doce e meigo, quando olhava para ti... Mas eu confesso: não gostei nada desse olhar!
Ela deixou que todo o seu receio se lhe estampasse no rosto. E perguntou:
— Que pensas tu?
Ele inclinou-se para ela. E murmurou, quase em segredo:
— Penso que ele nos veio espiar... para ir contar tudo ao rei tirano!
Suspirou fundo e concluiu tristemente:
— Se estávamos em perigo, agora o perigo é maior.
A rapariga ergueu os olhos ao céu, num ar de serena confiança.
— Deus encaminhará os nossos passos no melhor e no mais seguro dos caminhos...
Ele seguiu-lhe o olhar. E disse, como quem reza:
— Que Deus te oiça, irmãzinha!
Não podiam eles adivinhar que o estranho cavaleiro nem sequer se afastara dali...
Ficara de atalaia, bem perto, esperando que a noite cobrisse tudo e todos com o seu manto de luar...
E quando julgou chegada a hora propícia para pôr em prática os seus planos, começou a avançar cautelosamente...
Olhando o céu estrelado, os dois irmãos prepararam-se para dormir sobre a relva fofa. Ficariam ali, mais uma vez, longe do tumulto das gentes. Aliás, já se tinham habituado a viver assim, em contacto directo com a Natureza...
Nessa noite, porém, a rapariga parecia desassossegada.
— Ai, meu irmão! Pressinto qualquer coisa que me faz estar inquieta...
Ele bocejou, olhou-a sorrindo, e disse-lhe meigamente:
— Olha bem em teu redor... A noite está serena... Temos por cama a relva do campo e por tecto o céu... Que desejas tu de melhor?
Ela suspirou. A sua voz tornou-se mais dorida, mais íntima:
— Tens razão... Nada de melhor posso desejar! Mas... repito-te, meu irmão... É como que um pressentimento... algo de sobrenatural que me avisa de que esteja alerta.
O irmão deu uma pequena risada.
— Ora, ora... Ficaste com certeza a pensar no tal cavaleiro...
Mas o sono pesava sobre ele. Encolheu-se todo, voltou-se para o outro lado, voltou a bocejar e recomendou:
— Dorme, dorme, irmãzinha… e verás como isso passa depressa.
Ela estendeu-se também no seu leito de ervas.
— Vou tentar, meu irmão... Já que não posso dormir, rezarei ao menos...
E assim fez. Pouco a pouco, porém, vendo o irmão a dormir profundamente, a jovem acabou também por mergulhar num torpor muito próximo do sono. Somente acordou, surpreendida e aterrada, quando escutou uma voz a segredar-lhe, mesmo junto ao seu rosto:
— Não fujas! Não grites! Sou eu que te venho buscar...
Com voz de coração amedrontado, a rapariga gemeu o seu espanto:
— O senhor Dom Cavaleiro!...
O rosto dele aproximou-se mais. E mais segredou:
— Não, eu não sou qualquer Dom Cavaleiro... Eu sou o próprio Rei... E quero levar-te comigo!
Então a jovem compreendeu tudo. O seu pressentimento concretizava-se. Quis afastar-se.
— Não me toqueis! Sois um cobarde e um mentiroso... Afastai-vos, senão grito!
Mas nem fugiu nem gritou. Mais possante, aguardando já tal reacção, o rei mouro prendeu-a nos seus braços fortes e amordaçou-a, murmurando:
— Ainda ficas mais bela quando te irritas, minha pombinha... Terás de vir comigo, quer queiras quer não...
Embora amordaçada e bem segura, a jovem ainda tentou lutar, debatendo-se. Mas ele apertava-a com mais força, arrastando-a consigo.
— Agora pertences-me, compreendes?... A mim, nunca ninguém disse que não!
E desse modo a foi levando até uma pequena comba próxima, onde se recolheu com ela. Então, vendo-a quase inerte, abandonada aos seus desejos sádicos, beijou-a, como que enlouquecido, numa volúpia mórbida.
— Já não conseguirás fugir... És minha! Só minha! A minha Rainha!
E a jovem apenas teve forças para rogar, com toda a sua alma:
— Oh, meu Deus!... Meu Deus, valei-me!
E logo nesse mesmo instante — conforme corre de geração em geração, ao sabor dos séculos — algo se passou de maravilhoso... Inesperadamente, decerto por milagre, a jovem tornou-se invisível, completamente invisível, aos olhos do rei mouro!...
Entretanto, o irmão acordara sobressaltado, e mais sobressaltado ficara ao dar pelo desaparecimento da irmã. A sua voz ecoou angústias e desesperos.
— Irmãzinha! Minha querida irmãzinha, onde estás?... Onde estás, irmãzinha?...
E correu pelos campos, na ânsia de a encontrar.
No fundo da pequena comba, por seu turno, o rei mouro gritava também, como que alucinado:
— Mas que é isto? Que se passa? Onde estás tu, que eu não te vejo? Não, não é possível!... Maldição! Maldição! Isto é feitiçaria!...
Nisto chegaram-lhe aos ouvidos os gritos aflitivos do jovem, em busca da irmã.
Os olhos do rei mouro luziram de ódio, sequiosos de vingança.
— Ah, és tu?... Vem cá!... Vem cá!...
O outro aproximou-se. E, ao ver o mouro, imediatamente compreendeu o que se passara.
— Vós, senhor Dom Cavaleiro?... Que fizeste de minha irmã?
Uma gargalhada brutal foi a resposta.
— Que fizestes? Dizei-mo!
— Pois não sei!... Ela desapareceu de repente!
Estavam a olhar-se e a medir-se. O jovem não se atemorizou.
— Fostes vós que a fizestes desaparecer... Sois tão cobarde como o vosso rei!
Outra gargalhada. Cruel. Ferina.
— Enganais-vos. O rei... sou eu próprio!
Os olhos do rapaz encheram-se de espanto.
— O rei? Sois vós o próprio rei?...
E logo, numa fúria, atirou-se ao outro, bradando:
— Rei, não! Assassino! Assassino é que sois!
Mas o rei mouro era forte e astuto. E estava bem preparado para a luta. Assim, habilmente, num golpe seguro, fez com que o rapaz caísse por terra, dobrado a seus pés. E levantando o alfange descarregou-o sem dó nem piedade sobre o pobre moço.
— Ides pagar por vós… por vós e por ela!
Coberto de sangue, já sem forças, o jovem irmão murmurou somente:
— Ai, maldito, que me matais!
Todavia o rei mouro continuou a descarregar sobre ele, em golpes furiosos, todo o seu ódio e sede de vingança.
— Sim, mato-vos!... Mato-vos, miserável feiticeiro, para que ela apareça!... Ela há-de aparecer!
E ela apareceu, precisamente nesse mesmo instante. Chorosa e linda. Como alguém que já não é da Terra mas ainda também não pertence ao Céu.
Debruçou-se sobre o jovem ferido de morte.
— Meu irmão! Meu querido irmão... Foi por minha causa, eu bem sei!...
Ele ainda teve forças para a olhar uma última vez. Para lhe falar uma última vez.
— Deixa lá, irmãzinha... Deus sabe o que faz... Ele assim o quis!
— Irmão! Meu irmão!
Ele já não a ouvia. E ela também nada mais pôde dizer, porque o rei mouro avançava em sua direcção, espumando raiva.
— Agora nós, pombinha feiticeira!...
Hirta e solene, a rapariga fez um gesto.
— Nem mais um passo!
Parecia uma estátua. Estátua de dor. Estátua de dignidade.
— Se derdes um passo mais... ficareis atolado nesse lodo que está em vossa frente!
Os olhos dele voltaram-se para a terra e pasmaram.
— Sim... É lodo... É lama!... Mais uma das tuas feitiçarias!
Logo porém tentou reagir, com a força do seu ódio.
— É mesmo lodo, sim!... Mas não te ficarás a rir de mim... Não ficarás!
E dum só golpe, brutalmente, com o seu alfange ainda tinto de sangue, o rei mouro cortou a cabeça da jovem cristã...
Depois, para esconder o seu crime, o rei mouro afogou no lodo o corpo decapitado da jovem e o cadáver do irmão...
E fugiu, convencido de que ninguém conseguiria descobrir a verdade...
Mas Deus tudo pode! Alguém decerto assistira à cena terrível, pois no outro dia, gente que acorreu ao lameiro para recolher os corpos viu, maravilhada, que no lodo imundo nascera uma flor lindíssima, viçosa e pura...
Logo a notícia do prodígio se espalhou de terra em terra. E porque tudo isso se passava numa pequena comba, cerca duma terra chamada Orelhão, começou aquele sítio a ser designado por Santa Comba das Lamas de Orelhão, pois o povo encarregava-se de santificar a jovem meiga e bonita que morrera sacrificada às mãos bárbaras do sanguinário rei mouro e que se transformara em flor nascida da lama...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 383-389
- Place of collection
- Lamas De Orelhão, MIRANDELA, BRAGANÇA