APL 2703 Lenda da Batalha da Cobra

Naquele tempo — há muito tempo... — o filho de um rei egípcio saiu do seu país e veio aportar a terras da antiga Lusitânia.
Encontrou vasto campo disponível e instalou-se aí depois de breve luta. Sem dificuldade, rodeando-se de alguns dos seus homens de armas, formou o seu reino. Ora Hércules Líbio — assim se chamava o príncipe — tinha uma filha lindíssima, à qual pusera o nome de Neiva e era o encanto de quantos tinham a dita de a conhecer. Porém Hércules Líbio escondia-a ciosamente, pois todos os jovens lhe pareciam indignos da sua formosa filha.
Certa manhã, um guerreiro chegou junto do palácio. Vinha em jornada de outras terras. O sol abrasava e o jovem sentia sede. Viu os muros que circundavam a faustosa residência. Fez parar o cavalo, que batia na terra quente com impaciência desusada. O portão estava entreaberto. O guerreiro apeou-se e entrou num pátio de boas sombras, levando o cavalo pela rédea. Como não visse ninguém, ergueu a voz, pedindo água:
— Há aí alguém que dê de beber a quem tem sede?
Logo uma rapariguita morena acorreu e apresentou-lhe uma infusa que o jovem aceitou com júbilo. Esqueceu-se dos seus modos fidalgos, do seu ar arrogante, e bebeu como qualquer homem sedento.
A rapariga sorriu. Apesar do pó que lhe cobria o rosto, os cabelos e o vestuário, percebia-se que se tratava de um fidalgo, forte e belo. Daí aquele sorriso. E por esse sorriso ele teve coragem de mais pedir.
— Como hei-de dessedentar também o meu cavalo?
A rapariga mordeu os lábios, pensativa.
— Esperai, senhor cavaleiro! Meu amo não gosta de ver jovens como vós para cá destes muros... Mas... vou tentar arranjar-me de forma que ele não saiba...
—  E porque é ele assim tão severo?
— Porque... Bem... A minha jovem ama é muito nova... E muito bela...
O cavaleiro sorriu.
— Compreendo. Tem medo que lhe roubem a mulher...
A rapariga riu com vontade.
— Oh... não é mulher dele... É filha!
— Filha?
— Sim, meu senhor.
— E tem desse modo fechada uma jovem, para mais formosa, impedindo-a de conhecer o mundo?
— É verdade. Tem posto fora quantos chegam a estas paragens e por acaso avistam a minha ama!
A curiosidade do jovem cavaleiro aguçou-se.
— Como se chama a tua ama?
— Neiva, e é filha de Hércules Líbio, senhor destas terras.
O rapaz sorriu e murmurou como para si mesmo:
— Neiva... Bonito nome!
Depois, mais alto:
— E tu, como te chamas?
— Marta... Uma criada para vos servir.
De longe, uma voz bonita soou então:
— Marta! Marta!
A rapariga assustou-se:
— Aí vem a menina... Vá-se embora, senhor!
O jovem desceu do cavalo.
— Enganas-te, Marta! O meu pobre «Vingador» não irá muito longe se lhe não der de beber.
A voz de Neiva chamava agora mais próxima:
— Marta!
Ele incitou-a:
— Responde daqui! Quero vê-la!
Sem saber resistir-lhe, Marta obedeceu.
— Senhora... estou aqui perto... Vinde ver!...
Então Gastão de Mendonça e a jovem Neiva encontraram-se pela primeira vez frente a frente. No olhar de ambos havia surpresa e alegria. Havia luz e calor. Lá fora, o sol continuava quente. Quente e luminoso. Um fortíssimo sol de Verão!
 
Encostada ao muro, olhos perdidos no horizonte, Marta espiava. Perto, a jovem Neiva, coração batendo, tinha todos os seus sentidos presos aos movimentos da sua dedicada aia. De súbito, ela anunciou baixinho:
— Ele aí vem!
Baixinho também, a jovem murmurou;
— Vai tomar conta, não venha alguém surpreender-nos...
E a rapariga, contente por ver contente a sua ama, saltou ligeira um banco de pedra e foi colocar-se mais adiante, atenta como um cão de guarda.
O cavalo ficou do lado de lá do muro. Num movimento lesto, em breve o cavaleiro beijava com ardor os dedos delicados da sua amada.
— Gastão! Tardaste um pouco e já estava receosa!
Ele apertou de encontro ao peito a mãozinha que se lhe entregava confiante.
— Meu amor! Isto não pode continuar assim! Vemo-nos às escondidas... Entro aqui como um ladrão... Estamos sempre receosos de que nos descubram...
Neiva suspirou fundo.
— Bem sabes que meu pai encontra defeitos em todos os meus pretendentes...
Marta fez sinal para que falassem mais baixo. Gastão levou uma das mãos à testa, num gesto de impaciência.
— Não, não pode ser! Somos tratados como se praticássemos algum crime!
— Desobedecemos a meu pai...
— Mas eu quero-te! Quero-te para minha esposa, compreendes?
As lágrimas afluíram aos olhos da jovem.
— Compreendo-te, Gastão. Mas também sei que no dia em que falares a meu pai, tudo acabará. Bem sabes como ele anda inquieto com o que se passa entre o povo. Essa serpente horrorosa, que entra nas casas mal fechadas e mata sem piedade, traz a população num alvoroço. A toda a hora lhe pedem providências...
— Também eu preciso de tomar resoluções rápidas. Não irei saltar mais este muro como um criminoso, só porque te amo. Vou falar-lhe hoje mesmo.
Aflita, Neiva agarrou-lhe um braço.
— Não... Não vás! Ele expulsa-te!
Gastão cerrou os dentes. Era um guerreiro e estava habituado a grandes lutas; mas essa, interior, cansava-o muito mais!
— Está dito: hoje mesmo tenho de falar a teu pai! De homem para homem. Sou nobre e tenho fortuna, amo-te e sou um guerreiro!
De novo Marta fez sinal para que não gritasse. Gastão de Mendonça beijou de novo a mãozinha trémula de Neiva e pediu:
— Vai para os teus aposentos. Marta que te acompanhe. Vou falar a teu pai!
Quando o guerreiro lusitano entrou no salão nobre do palácio de Hércules Líbio, este já o esperava, pois que ele se fizera anunciar. Ao vê-lo tão jovem e de porte altaneiro, Hércules teve um ligeiro movimento de desagrado. Depois de um frio cumprimento, perguntou:
— Que desejais de mim? Não tenho tempo a perder, devo prevenir-vos!
Gastão olhou-o de frente, com segurança:
— Nobre senhor! É sobre a minha espada que vos juro ser de grande interesse para mim o assunto que me traz à vossa presença.
Hércules Líbio teve um sorriso irónico.
— Não me custa acreditar-vos. E de que assunto se trata?
— Da minha felicidade e da vossa filha.
O assombro e o furor estamparam-se no rosto do dono da casa.
— Que dizeis? Porque misturais a minha filha com a vossa felicidade?
Rápida, a resposta surgiu:
— Porque só com ela serei feliz!
Hércules tentou gracejar.
— Tão-pouco me custa acreditar nessa afirmação. No que, porém, não posso crer é que dependa de vós a felicidade da minha filha!
— Perguntai-lhe, então...
Perante a serenidade do jovem, Hércules Líbio perdeu o domínio de si mesmo. E gritou quase:
— As cabeças jovens como a dela não sabem o que querem. Eu, sim, sei o que desejo para Neiva. Casará, mas com um guerreiro forte e destemido. Um guerreiro da minha estirpe!
Ofendido, Gastão explicou:
— Sou um guerreiro, senhor! E não será necessário juntar qualquer palavra a esta, para lhe dar maior realce ou definir o sentido.
Hércules Líbio franziu as sobrancelhas.
— Conheceis Neiva?
— Desde o Verão passado.
— E... já se falaram?
— Devo confessar-vos que iludimos a vossa vigilância...
A cólera tingiu de vermelho o rosto de Hércules Líbio. Vociferou:
— Sois portanto um traidor!
— Traidor é aquele que falta à sua promessa ou a um sagrado dever. Nada vos prometi, senhor!
— Mas zombastes das minhas ordens!
Gastão tentou acalmar-se:
— Se o tivesse feito, não estaria aqui a pedir-vos com o devido respeito a mão de vossa filha. Sou nobre, rico e guerreiro acreditado entre os meus. Possuo a juventude que a juventude da vossa filha reclama. Amo-a e sou amado por ela. Necessitamos apenas do vosso consentimento para...
Interrompendo-o com fúria, Hércules Líbio levantou-se e indicou-lhe com um gesto a saída, enquanto gritava, já fora de si:
—Basta! Ide já embora... se não quereis que vos mande matar!...
Gastão ergueu a cabeça, num desafio.
— Cuidado, senhor! Não estais falando a uma criança, nem a nenhum dos vossos criados!
A voz de Hércules Líbio saiu quase rouca:
— Retirai-vos!
Gastão inclinou-se, cerrando os dentes para se conter. Respirou fundo e conseguiu afirmar:
— Irei! Mas acreditai que ainda haveis de precisar de mim!
Mal o guerreiro lusitano abandonara a sala, ouviu-se enorme burburinho. A porta do salão abriu-se num repente e Neiva entrou a correr, com o horror estampado no rosto. Caiu aos pés do pai e falou, ofegante:
—Senhor meu pai!... A Coluber... entrou no palácio e matou uma das minhas aias!
Hércules levantou do chão a filha, que soluçava agora perdidamente.
— Que dizes, minha querida filha?
Por entre os soluços, Neiva confirmou:
— A Coluber... está aqui! Já matou Marta, que se sacrificou para me salvar... Os criados fugiram... O povo grita... Senhor meu pai, tendes de pôr termo a este horror!
Hércules voltou-se para os guerreiros que o rodeavam.
— Procurai a serpente, homens da minha guarda! Que fazeis aí, parados? A morte entrou no palácio... é preciso destruí-la!
Olhou-os, um por um. Nenhum deles parecia disposto a sair.
— Porque esperais?
Neiva agarrou as mãos do pai:
— São guerreiros... mas temem a Coluber... Bem sabeis que ninguém jamais ousou fazer-lhe frente.
Hércules empalideceu.
— Que homens de armas são estes, afinal? Sois muitos... e a serpente é só uma!
Os homens entreolharam-se, envergonhados. Mas ninguém arredou pé. O próprio Hércules começou a perder o seu ar arrogante:
— Pois quê? Vamos esperá-la aqui, para que ela faça a sua escolha?... Morreremos todos, um após outro, sem nada intentar para nos defendermos?...
Neiva voltou a olhar o pai, que de todo perdera a autoridade.
— Todos temem a morte, senhor... Até vós!
Então, por entre os que enchiam a sala, rompeu uma voz firme:
— Todos... menos eu!
Houve um movimento de surpresa. Em silêncio todos os rostos se voltaram para quem mostrava tal coragem. E um grito soou:
— Gastão! Estavas aí e nem dei pela tua presença! Sereno, ele volveu:
— Teu pai acaba de expulsar-me em termos impróprios de um cavaleiro. Ouvi quanto disseste e sinto muito a morte da nossa pobre Marta!
Neiva voltou a soluçar. Ele aproximou-se com carinho.
— Não chores mais. Aflige-me ver-te assim!
— Gastão! A morte entrou neste palácio...
— Já antes entrara no meu coração. E como levo a morte comigo não receio enfrentar essa Coluber que põe os homens parados como crianças medrosas!
Hércules, que tudo ouvira atentamente, observou:
— Não sois daqui, por isso não sabeis o poder da Coluber. Todavia, já que vos atrevestes a chamar-nos crianças medrosas… desafio-vos a que proveis o vosso desplante! Procurai sem demora a serpente e matai-a!
Gastão fez um gesto cerimonioso com a cabeça. A sua voz era triste mas pausada:
— Aceito o desafio, com uma condição: a mão da vossa filha Neiva!
Hércules olhou de frente o jovem atrevido. Passou revista rápida à expressão dos que tinham invadido a sala e percebeu que todos esperavam, ansiosos, uma decisão afirmativa. Baixou os olhos. Depois tornou a olhar o jovem.
— Seja! A Coluber é uma calamidade! Se a conseguirdes vencer — o que duvido — sereis, justamente, consagrado como herói. E com um herói poderei casar a minha filha.
— Não te exponhas assim pelo nosso amor! Ela vai matar-te! Vai matar-te...
O jovem guerreiro tomou nas suas as mãos de Neiva. Beijou-as com ternura. Depois, fazendo uma elegante reverência, como se fosse iniciar um torneio, saiu da sala. Sozinho.
Neiva, que de novo soluçava perdidamente, sentiu-se de súbito agarrada pelos braços fortes do pai. A sua voz chegou-lhe aos ouvidos numa cadência cariciosa que jamais lhe escutara:
— Coragem, minha filha! Ele vai morrer… mas amaste um homem extraordinário!

A tarde caminhava de mansinho, indiferente ao drama que se desenrolava no palácio de Hércules Líbio. Só, tendo apenas a espada na mão e no peito a vontade inquebrantável, Gastão tentava fugir ao encantamento da serpente. Encontrá-la, fora-lhe fácil. Vencê-la é que seria difícil. Rangendo os dentes, ele tentava não a fitar, sem deixar de estar atento aos rapidíssimos movimentos do terrível monstro. Frente a frente, a vida e a morte mediam distâncias. A Coluber ficara estática. Dir-se-ia ter descoberto pela primeira vez um adversário perigoso. De repente, deu um salto no ar para cair sobre o jovem. Mas ele esquivou o ataque, brandiu a espada — e decepou-lhe a cabeça, de um só golpe!
Agora, porém, em vez de uma, a Coluber transformara-se em duas serpentes que procuravam atacá-lo, cada uma do seu lado.
Gastão empalideceu. Mas não se desorientou. Da sua espada surgiram golpes sucessivos, como se estivesse em plena batalha, rodeado de inimigos. Atingiu várias vezes a Coluber, de tal sorte que, por fim, ela ficou imóvel. Com a espada meteu-a dentro de um caixote, sem deixar esquecido qualquer dos fragmentos a que a reduziu. Depois, levou o caixote para o ar livre e deitou-lhe fogo.
As chamas começaram a subir num colorido estranho. O suor corria pelo corpo do guerreiro, inundando-o. Arfava de cansaço. A distância respeitável, um grupo enorme observava-o. Eram os aldeões, prevenidos do que se estava passando por um dos criados fugidos do palácio.
Um clamor imenso saiu de todas as bocas, vitoriando o jovem herói. Ouvindo o alarido, os homens de Hércules Líbio foram saindo da sala, a pouco e pouco. Dando largas ao seu contentamento, o povo saltara os muros e invadira o terreno do seu senhor. Os mais novos dançavam à volta do caixote em cinzas, misturadas com as cinzas da própria Coluber. Entre gritos de vitória, o herói foi levado em triunfo até ao limiar do salão nobre. Aí, Hércules e Neiva esperavam-no, mais pálidos do que a própria morte. Nem queriam acreditar na maravilhosa verdade: Gastão de Mendonça vencera a pavorosa serpente!
Acenderam luzes, todo o palácio estava em festa. Os cortesãos e o povo aclamavam o herói que, nos braços de Neiva, recebia a merecida recompensa.

Hércules Líbio cumpriu a sua promessa: Gastão casou com a jovem Neiva. E para comemorar tão valoroso feito, Hércules determinou que se chamasse daí para o futuro, ao local onde a serpente Coluber fora morta — Coluber Briga, ou seja, a batalha da cobra.
O tempo foi fazendo crescer a povoação, dando-lhe mais habitantes, mais casas, mais importância. E o tempo também, que a tudo assiste, foi transformando o nome de Coluber Briga, primeiramente em Conimbriga e depois em Coimbra, a formosa e famosa cidade do Mondego.

 

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 87-93
Place of collection
COIMBRA, COIMBRA
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
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