APL 702 A lenda do rio seco

Diz a longa tradição
Que foi, por nossas avós,
Passada de mão em mão
Ou, talvez, de voz em voz,

Que naquel’ lugar havia
Um poço de água, sem fundo,
E dentro dele vivia,
Desde o princípio do mundo,

Uma serpente tão bela,
Co’uma voz tão maviosa,
Que mais par’cia uma estrela
Ou a haste duma rosa.

À noite, quando o luar,
Era mais branco que a luz,
As aves vinham trinar
Sobre os braços duma cruz.

Era tão doce o seu canto,
Tão suave de se ouvir,
Que a serpente dava ao pranto
Sons de cristal a tinir.

Chorava, que até parece
Que era choro de mulher
Que de amor inda vivesse,
Mas que ali vinha morrer.

Também os astros dispersos
Paravam, de entontecidos,
Para ouvir os lindos versos
Cantados nos seus gemidos.

Dizem, até, que do alto,
Por aquelas horas mortas,
Vinham cristais de basalto
Brilhar em todas as portas.
 
Às tardes, quando o sol posto
Era um pincel de mil cores,
Havia pranto no rosto
Das ervinhas e das flores.

Tudo, enfim, ali chorava...
Por quem? que sabemos nós?
A lenda não nos narrava,
Nem sequer nossas avós.

Era tudo tão estranho,
Naquele poço sem fundo,
Que a lenda não tem tamanho
Desde o começo do mundo.

Diz coisas tristes, assim,
Que é de gente arrepiar…
o pranto não tinha fim,
Nessas noites de luar,
 
Por quem chorava a serpente
Aqueles ais tão magoados,
Que os ouvia só a gente,
Tão tristes, despedaçados?
 
Que história linda de amores
Esses choros traduziam,
Que a decifravam as flores
E as gentes não o sabiam?

Calemos, agora, o canto
Deste nosso linguajar.
Calemo-nos, pois, enquanto
Outras vozes vão falar...

* *
Também diz a tradição
Que ali bem perto existiu
Um palácio feito de oiro,
Que outro assim nunca se viu.

Quando o sol deitava nele,
De fogo, os ardentes raios,
Ouviam-se, ao seu redor,
Vãos gemidos e desmaios.

Eram as aves e os cisnes,
Nas gaiolas e nos lagos,
Que suspiravam de longe
Por carícias, por afagos.

E dizem, até, que as fontes
Tinham outro murmurar;
Par’ciam deusas de além,
Com vozes de outro cantar.

Entonteciam-se as árvores
E as cisternas de água doce;
Também uma rosa negra
Murchava, como se fosse

Bafejada do suão,
Vento sinistro que traz,
Nas suas asas de fogo,
A guerra... jamais a paz.
 
Até as águas do rio
Que os lagos azuis banhavam,
Ao chegar às pedras de ouro,
Eram mudas... suspiravam.

E o rio de longe trazia
Outras canções, outros ares,
Que aos poucos, depois, lançava
Nas águas verdes dos mares,

Deste modo, era o palácio
Mais belo que outro qualquer;
Nel’ se beijavam as rosas,
O cravo e o malmequer.

Os jardins eram suspensos,
Como suspenso era o ar.
Toda a gente desejava
Ali viver e acabar.

*
No palácio então vivia
Uma princesa tão linda,
Linda, que nenhum poeta
Pôde assim cantar ainda,

Que lhe faltavam os versos
Que a pudessem descrever,
E nem mesmo a própria música
O pôde, ao certo, fazer.

Parecia a linda moira
Luz dalgum astro brilhante,
Que viesse, a horas mortas,
Dum outro céu mais distante.
 
E, se às janelas chegava,
Com o seu meigo sorrir,
Os mundos emudeciam
Só para a ver e a ouvir.

Um dia… que dia aquele!...
Alguém, ao perto, acampou.
E bem logo ali o dia,
Mais formoso se tomou.

E nunca mais, nunca mais,
Outro dia assim nasceu,
Porque diz a tradição
O que então aconteceu.

Porque esse alguém que chegara
Era um príncipe cristão,
Que vinha salvar a moira
De morrer na solidão.

E ela também o sabia,
Pelos sonhos que sonhara;
Por isso, umas vestes de oiro
Para si então tomara.

Abrira de manso as portas,
Por onde fria sair
Ao encontro desse amor,
Sem mais coisa alguma ouvir.
 
Foi então, como dizê-lo,
Que à morte Alguém a levou;
E a moirinha, de encantada,
Não mais sorriu nem amou.

* *
Allah, que tudo sabia,
Por ser deus ou outra cousa,
Ali encantou os dois,
Coisa horrenda e temerosa!

Por isso, os tempos passaram
E tal poço ali ficou
Co’uma serpente tão bela,
Morta de amor, porque amou.

E o rio ficou sem águas,
Porque Allah assim o quis;
Foi nele que se tornou
O corpo desse infeliz.

E foi tudo quanto a lenda
Me contou, como é narrado;
E tal lugar, desde então,
RIO SECO ficou chamado.

Source
LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas s/l, Edição do Autor, 1995 , p.16-20
Place of collection
FARO, FARO
Narrative
When
20 Century, 80s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography