APL 2267 A Bouça do Hortal

Viveu em tempos idos, na freguesia de Eiriz, um lavrador abastado que, além de ter uma vaca leiteira muito boa e bonita, era o dono da bouça do Hortal.
 Costumava ele levar de manhã a vaca à bouça, onde ela ficava a pastar o dia inteiro, sem pegureiro, porque a bouça era vedada por uma tapada muito alta e segura.
 Acontecia, porém, que, quando o lavrador à tarde ia buscar a vaca à bouça para a mungir e recolher à corte, muita vez notou que a vaca se não encontrava lá! Mas de pronto aparecia como que por encanto.
 Muito intrigado com semelhante escamoteação, o lavrador um dia tirou-se dos seus cuidados e foi vigiar a vaca. O fenómeno reproduziu-se.
 A vaca ora aparecia ora desaparecia, sem que o lavrador pudesse explicar o seu sumidouro mágico.
 Mas ocorreu-lhe um expediente que devia dar resultado, e deu-o realmente. Agarrou-se ao rabo da vaca e não o largou mais.
 A vaca deu pela mata umas voltas, pastando pachorrenta até que lhe chegou a veneta da partida e desencabresta apressada por entre um silvado espesso, ao fundo do qual havia uma mina, por cuja boca adentro enfiou de corrida, sem caso fazer do trambolho que levava ao rabo. O pobre homem agarrado à vaca lá foi de cambulhada. A mina era um labirinto intrincadíssimo. Ora subia ora descia, numa série de voltas e encruzilhadas sem fim. A treva era impenetrável e o eco dos seus passos pelas abóbadas da mina fazia o estrondo de um cento de carruagens a rodar. Era de arrepiar os cabelos.
 O homem, com o medo de ficar ali perdido, mais se agarrava ao rabo da vaca, que o conduziu por fim a um grande largo, esclarecido por uma luz vivíssima, que irradiava de dentro de um grande palácio de ouro e cristal, todo iluminado e brilhante como um sol.
 A vaca entrou pelo palácio adentro tão confiadamente como na sua corte. Pelo chão de tapeçarias havia bolas de ouro e diamantes a rodos, de todas as cores e tamanhos, que bem lhe apetecia apanhar, mas o receio de largar o rabo da vaca e ficar ali eternamente perdido, levou-o a abandonar toda aquela tentação de riqueza.
 Chegado por fim a um grande salão, como não há coisa assim em terra alguma do Mundo, a vaca foi, parou.
 Apareceu então, muito derreada, uma velha muito feia, muito seca e muito encorrilhada, vestida de um grande balandrau de seda preta, donde só reluziam os seus pequeninos olhos muito brilhantes e os seus longos cabelos brancos, encrespados e hirsutos. Abeirou-se da vaca sem atentar no pobre lavrador, que tremia como varas verdes, e rapou então debaixo do balandrau de uma escudela de ouro polido e começou a mungira vaca, operação que o animal esperou com grande mansidão.
 Cheia a escudela, a vaca desembestou em nova desfilada para a bouça, atravessando os salões iluminados do palácio, por onde o lavrador, aos tropeços, fazia saltar diante de si um areal de rubis, safiras e diamantes, envolvido numa grande poeira de ouro, que sufocava.
 O receio de perder o rabo da vaca endiabrada não lhe permitia, porém, agarrar sequer um punhado de tanta riqueza dispersa.
 Lá ficou tudo!
 No entanto, a vaca, correndo sempre, entrou de novo na treva da mina, que pouco depois deixava para voltar ao pasto da bouça.
 O bom do lavrador, apenas se viu outra vez no seu mundo, não quis mais saber de bouça nem de vaca e só parou na sua casa de Eiriz, persignando-se dezenas de vezes pelo monte abaixo.
 Conta-se que a vaca ainda hoje é vista uma vez por outra na bouça do Hortal, pastando pachorrenta o mato mimoso, mas não consta que mais alguém se atrevesse a agarrar-se-lhe ao rabo.

Source
VASCONCELLOS, J. Leite de Contos Populares e Lendas II Coimbra, por ordem da universidade, 1966 , p.752-754
Year
1903
Place of collection
Eiriz, PAÇOS DE FERREIRA, PORTO
Informant
Joaquim da Silva Pardejo (M),
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography