APL 2822 Lenda da Campainha de Bronze
Há muito tempo já, governava o castelo de Monsanto um homem duro, resoluto, positivo nas suas acções, mas um tanto descrente das coisas divinas. Como o seu povo tinha por hábito e devoção fazer arder na noite de Natal um pesado madeiro em honra do Menino Jesus, precisamente à porta da capela de Santa Maria do Castelo, ele entendeu que essa devoção era imprópria de um povo equilibrado, pois forçava-o ao sacrifício de transportar pela encosta acima o madeiro que lhes parecia mais digno de tão régio Menino. E resolveu pôr cobro a tão piedoso acto. Ora o povo adora as suas tradições, e tentar apagá-las é para ele mais negra sina que a própria fome. Assim, toda a povoação ficou em louco alvoroço quando a nova começou a correr.
O Tio João da Quinta, um dos homens mais sensatos do lugar, entrou desenfreado em casa, gritando para a mulher.
— Não querem lá ver esta! Isto não pode ser! É um pecado!
A Tia Lucrécia abriu os olhos num espanto, ao ver o seu homem em tal desespero. E indagou:
— Homem, que te aconteceu?
Ele encarou-a como se fosse ralhar-lhe. E continuou gritando:
— Aconteceu a mim... a ti... e a todos os moradores deste lugar! Mas não está certo! Não está certo! Vai haver castigo, lá isso vai!
Cada vez mais surpreendida, Tia Lucrécia voltou a perguntar, já muito inquieta:
— Mas o que foi, homem?
Ele deu um murro sobre a pobre mesa, que gemeu.
— Ora o que havia de ser! O senhor Governador deu ordem para que o madeiro não seguisse esta tarde para a porta da capela!
— Então para onde é que ele há-de ir?
Parou o Tio João de gesticular. Pôs-se mesmo em frente da mulher, a ler-lhe no rosto o efeito das palavras que ia proferir.
— Ora aí está! O madeiro vai ser todo partidinho em achas, para ser queimado na lareira do castelo!
Tia Lucrécia recuou, abrindo a boca num espanto.
— Pode lá ser!
— Pois é como te digo.
A mulher repetiu como para si mesma, ainda de olhos esbugalhados:
— Na lareira do Governador! Essa nem ao diabo lembrava!...
E persignando-se, aflita:
— Cruzes… figas, Canhoto!
O homem teve um risinho sem vontade, e exclamou:
— Pois digas o que disseres... essa ideia teve-a o senhor Governador!
E suspirando fundo, acrescentou:
— Grande perigo está sobre a sua cabeça! Não quereria estar na pele dele, não! Desfeitear assim o Menino Jesus… E logo nesta noite!
Tia Lucrécia olhava agora uma imagem do Menino Jesus colocada sobre uma cómoda tosca. Depois desviou o olhar, pensativa, e indagou:
— E o povo? Que diz o povo?
Tio João abanou a cabeça. Voltou a encolerizar-se.
— Que diz o povo? Que dizes tu? Que digo eu?... Estamos todos revoltados! Mas ele é o Senhor Governador! É ele quem manda! Que pode o povo contra ele?
Voltou a suspirar fundo.
— E um madeiro tão bom! Custou tanto a arranjá-lo... Parece impossível! O madeiro do Menino Jesus!
Tia Lucrécia concluiu, num eco:
— Que grande pecado!
Voltou a animar-se, o Tio João.
— Olha, pragas não lhe faltam! O povo está pior do que uma bicha. Grande castigo vai cair sobre o castelo!
E encolhendo os ombros:
— Ora! Ele que se havenha! Por mim tenho cá uma ideia...
Voltou a curiosidade a reflectir-se na expressão da mulher.
— E que ideia tiveste, homem?
Ele entusiasmou-se:
— Que ideia tive?... Só te digo que o Menino Jesus não pode ficar sem o seu madeiro.
— E que podes fazer tu?
— Ir buscar outro madeiro!
— E levam-no lá acima, sem ordem do senhor Governador?
Tio João pareceu hesitar.
— Bem... os outros têm medo! Mas eu...
— Tu... o quê?
— Eu... penso que poderei levá-lo lá acima sozinho!
Tia Lucrécia gritou, aflita:
— Estás doido, homem? Com uma invernia destas... E sozinho na montanha?...
Ele tentou sorrir.
— Ora! Ainda sou forte e novo demais para precisar de ajudas!
— Mas sozinho?... Ninguém é capaz de te vir ajudar?
— Olha: para falar a verdade… eu é que não quero companhias...
Continuava perplexa, a Tia Lucrécia.
— Não queres companhias! Mas tu não estás bom, homem! Não queres, porquê?
— Porque, se a coisa se espalhar, ele proíbe que eu queime o madeiro. E então... é que teria de desobedecer-lhe, compreendes? Ele só disse que queria o madeiro que era para levarmos para a porta da capela. Mais nada!
Ela meneou a cabeça.
— Cuidado, homem! Se a moura te aparece...
— Qual moura?
— A moura que está encantada na gruta. Ninguém pode subir a montanha sozinho, em vésperas de Natal!
Ele encolheu os ombros.
— Ora adeus!... Histórias dos nossos avós...
Empertigou-se a mulher.
— O quê, não acreditas?
— Eu, não. Só vendo.
Voltou a benzer-se, a Tia Lucrécia.
— Oh, Virgem Santa! Que te livres disso, porque esta moura dizem que é das más! Tem pactos com o Demónio!
Ele tentou gracejar.
— Pois olha: se assim é, foi a moura que impediu que levassem o madeiro lá a cima, e fez com que o Governador tivesse esta triste ideia. Pois vou contrariá-la!
Tia Lucrécia quase chorava.
— Oh, homem, vê lá o que fazes!
— Deus é grande!
E estendendo a mão:
— Dá-me daí a minha manta e o machado.
Ela foi buscar a manta. Vinha mais pálida que a sua blusa branca.
— Estou toda a tremer!... Toma lá a manta. O machado está aí ao pé de ti.
Ele pôs a manta ao ombro e pegou no machado. Olhou a mulher bem de frente.
— Quando esta gente souber que fui queimar o madeiro sozinho, vai abrir a boca de pasmo!
— Se te parece!...
— Mas não dês já com a língua nos dentes! Deixa que eu volte.
— Está descansado. Mas não demores muito... Tenho tanto medo!
O homem saiu. Ao abrir a porta, uma lufada de vento frio bateu-lhe no rosto. Caía neve. Puxou para si a gola do casacão, embrulhou-se na manta, e começou a subir a montanha. O vento zunia pela encosta escarpada, como uivos de feras ou gritos de almas penadas…
Uivava o vento como lobo esfaimado. O frio punha rugas fundas no rosto do Tio João. Agora, ele ia subindo devagar. Cortara o lenho e levava-o sozinho, para a velha capela de Santa Maria do Castelo. Arfava de cansaço. E ainda tinha de subir um bom bocado.
O vento uivou com mais força. Ele parou um instante, a descansar. De súbito, pareceu-lhe ouvir um grito. Levantou a cabeça. Espevitou os sentidos. Que seria? O vento?... Outro grito soou, cortado por lamentos. Eram gritos de mulher. Donde vinham? Talvez da gruta. Pousou o madeiro no chão e correu para lá. De súbito, estacou. Que via? Um tesouro! E ali, em plena serra! Jamais alguém o descobrira! Que enorme riqueza! Tanto ouro junto! E seria mesmo ouro?... Aproximou-se mais. O vento parecia ter acalmado. A neve cessara de cair. Era ouro mesmo. Moedas e moedas sem conta! E campainhas… tantas campainhas de ouro! Que maravilha!
Uma voz de mulher chamou-o de mansinho:
— João, não tenhas medo. Tudo isto te pertence!
Estremeceu. Parecia ouvir, num alerta, a voz de Lucrécia perguntando ansiosa:
— E se a moura te aparece?...
Respirou fundo. Ele não estava a sonhar e não acreditava em mouras encantadas! E se o tesouro fosse, de facto, mourisco? Teria de praticar grandes feitos para o possuir. Pelo menos era assim que ouvira dizer à mãe e à avó, quando lhe contavam histórias de mouras encantadas. Feitos? Que poderia ele fazer? Não, era melhor não ser ambicioso. Riquezas que não lhe pertenciam, para que as queria? Subira o monte para levar o madeiro ao Menino Jesus. Pois iria até ao fim da tarefa qu se havia proposto fazer. Como recordação dessa visão admirável e estranha, levaria apenas uma campainha.
Estendeu o braço. Tocou com os dedos, ao de leve, no ouro. Silêncio absoluto à sua volta. Fez pressão nos dedos. Retirou o braço, com a campainha na mão. Voltou as costas ao tesouro. Ia partir. Mas a voz estranha da mulher que há pouco lhe falara chamando-o pelo seu nome, de novo se fez ouvir.
— Que fazes? Vais fugir? Agora não! Tocaste no meu ouro e, portanto, pertences-me!
O Tio João da Quinta olhou para o lado donde vinha a voz. Uma linda mulher envolta num manto branco olhava-o com certa dureza. O coração bateu-lhe mais apressado. Não era medroso, mas aquela aparição não lhe dizia nada de bom. Perguntou:
— Quem és tu, que sabes o meu nome?
Ela respondeu:
— Sou uma pobre moura há muito aqui encantada. Tu me procuraste no dia e hora aprazados pelo meu destino. Agora é preciso que me salves, ou ficarás aqui comigo para sempre!
— E que preciso fazer?
— Leva este ouro e constrói aqui um novo castelo. Mas antes disso tens de destruir a capela lá de cima!
João revoltou-se.
— Destruir a capela? Para quê?
— Porque ninguém mais reinará neste monte senão eu... e tu!
João olhou o tesouro. Olhou a mulher que lhe falava. Sentiu medo. Um medo como nunca tinha sentido. Gritou:
— Tu não és moura... És o Demónio, com disfarce de mulher! Vai-te! Não te quero!
Ela, falou uma vez mais:
— É escusada a tua revolta. Já me pertences!
Olhando a capelinha lá no alto, João persignou-se, dizendo:
— Valha-me Nossa Senhora do Castelo!
Um novo grito de mulher cortou o espaço. A sua voz fez renascer o vento. Mas sobre essa voz uma outra se fez ouvir:
— Em bronze se transforme a campainha em que tocaste!
Um ruído semelhante ao trovão ecoou no espaço. O vento voltou a uivar. A neve a cair. O frio gelava. Mas a mulher moura e o tesouro haviam desaparecido. Ele olhou então para a campainha que tirara, e ficou boquiaberto: a campainha, que fora de ouro, estava transformada em bronze!
O homem caiu de joelhos. Orou frases de gratidão sincera à Virgem do Castelo.
— Senhora! Obrigado por me teres salvo! Vou levar-te já o madeiro que trago para o Deus Menino, e dar-te-ei ainda esta campainha de ouro que transformaste em bronze. Ficará para uso da tua capela, como sinal de gratidão de um pobre mortal!
A neve continuava a cair e o vento a uivar. Tio João levantou-se. Pegou no madeiro que havia deixado cair no chão. Colocou-o sobre os ombros e reencetou a caminhada. Mais satisfeito. Mais tranquilo. Mais feliz!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 97-101
- Place of collection
- Monsanto, IDANHA-A-NOVA, CASTELO BRANCO