APL 696 Basília

A Beira Alta é como um degrau aonde se sobe para olhar por Portugal abaixo. Imagine-se um altar feito de montes, altar immenso, a que a neve estende a toalha branca.
 Pois ha nesses montes uma fraga enorme, posta á beira de precipicios horriveis. Poisam-lhe as aguias em cima. Nas chuvas grandes, cahem-lhe dos lados duas torrentes de agua furiosa, que se despenha no precipicio com o fragor de cataractas ameaçadoras.

*

 Quando os Mouros se foram embora, deixaram as riquezas mettidas na fraga. Elles viriam buscá-las, quando voltassem. Para as guardar, ficára lá encantada certa rapariga, que não sahirá do esconderijo, onde a enclausuraram. Nem S. João lhe dá espairecimento na sua manhã festiva, em que se canta e se vae

apanhar trevo do chão,
na manhã de S. João!

 O rochedo está suspenso, como se um gigante a collocasse alli, para o vêr cahir depois. Vê-se de longe. — Lá está a Fraga da Moura! — dizem ao vê-lo, os que lhe passam alli. — Levo-te á Fraga da Moura, — é a ameaça das mães ás creanças inquietas e teimosas. E assim, de longe, a moura, se não dá as riquezas, faz de papão ou de creada respeitavel á petizada dos arredores.
 Ninguem sabe como se opera o desencantamento da rapariga. Tem havido quem a vá chamar á beira do penedo; só lhe respondem os echos; a voz vae rolando por aquellas penedias abaixo até se perder no rio, que corre lá no fundo de tudo. Outros sobem ao penedo, sem receio, apesar de se dizer que quem lá o pôs, de lá o ha-de tirar; e como ninguem sabe quando isso acontecerá, annuncia-se que ha-de ser, quando menos se espere. Emfim, com receio ou sem elle, o certo é que sobem ao alto muitos homens e rapazes.
 O penedo é plano em cima, o que forma um terrado. Ao centro ha garatujas abertas na pedra como signaes de diversos feitios; no meio dos signaes vê-se um buraco afundado na profundidade do penedo; é estreito e não se vê nada para dentro. Ahi entra o ar que vae favorecer a respiração da moura. Quantos vão lá acima, procuram chamar por ella, applicando a bocca no buraco; por ahi gritam chamando-a — ó moura, ó moura, acorda; ouves?
 Nada responde. Ressoa a voz lá dentro, no meio do penedo, o que mais leva á certeza de haver um palacio enorme e deserto, onde só abundam as riquezas, e a moura adormecida as guarda, sem ser possível acordá-la.

*

 Um dia passou por ali um homem, que vinha de longe. Tinha o aspecto miseravel de mendigo, errante de terra em terra. Viu uns rapazitos em cima do penedo, e preguntou-lhes:
 — Eh cachopos! Que é que fazeis por ahi, demonios? Não vêdes que, se cahis de ahi abaixo nem a alma se vos aproveita!
 — Vossemecê não sabe, — respondeu um de elles, — que está aqui uma moura a dormir!
 — E vós então quereis acordá-la? — commentou o mendigo a rir.
 — E’ que dia é rica como o Rei.
 — Como o Rei! — atalha outro. — Ora, como o Sôr Francisco Brasileiro, é que tu has-de dizer.
 — E para que quereis vós a riqueza da moura?
 — Para que ha-de ser! Para sermos ricos, — retorquiu um do grupo.
 — Então o melhor, se ella não acorda, é virar-lhe o penedo. Andem, rapazes, mão á obra. Vá de trabalhar.
 — Olhe lá, ó tiozinho, quanto quer pela lição? — preguntou um de chalaça lá de cima.
 — Ah marotos, o que vos vale é estardes lá tão alto.
 Uma pedra zuniu, outras zuniram. O mendigo de baixo para cima não acertava nenhuma, as dos rapazes já lhe tinham batido nas canellas e em um hombro, pelo que se decidiu a deixá-los e seguir no seu caminho.

*

 Era sol posto, quando chegou á primeira povoação no fundo da Serra. Pediu pousada por aquella noite, para na manhã seguinte continuar viagem, mas ninguem lh’a dava. Batia de porta em porta, era despedido sempre.
 Por fim foi parar a casa da mulher mais velha do lugar, tão velha que ninguem lhe conhecia a edade, e até os mais velhos diziam que já ella era velha, quando elles tinham feito a primeira communhão. Chamavam-lhe bruxa. A casa era pobre, mas limpa. Fazia recados na villa proxima, é quanto sabiam da sua vida.
 Quando lhe bateu o mendigo á porta, ella foi abri-la, e deu entrada com ar prazenteiro a quem lhe pedia hospitalidade. Pôs-lhe a mesa, servindo-lhe, ao mesmo tempo que ella comia tambem, caldo verde fumegante em uma grande conca, e um prato de chouriço e batatas.
 — Que o traz por cá, santinho? — preguntou-lhe a velha.
 — De passagem para Coimbra e de ahi para para Lisboa. O caminho é comprido, mas deixá-lo, — respondeu ele.
 — E que vae Vossemecê lá fazer?
 — Vou ver mundo. As serras são muito pequenas para mim.
 — Não vae então para trabalhar por lá?
 — Não sei ainda; veremos. O que mais me chama é ver mundo.
 — Quer Vossemecê fazer-me um serviço? — propôs a velha.
 — Pois sim, senhora. Amor com amor se paga.
 Vossemecê deu-me este amanho, então não lhe havia de fazer o que me pede?
 — Então, ouça lá.

*

 Contou-lhe ella que na serra, lá no alto, havia um rochedo redondo a que chamavam a Fraga da Moura.
 — Sei muito bem onde é; fui de lá corrido á pedrada por uns garotos, que chamavam pela moura!
 Já que elle sabia onde era, não precisava de lhe ensinar o caminho. No dia seguinte logo de manhãzinha, ele havia de subir ao panedo, e explicava-lhe que a pedra tinha no cimo uns signaes e no meio de elles um orificio pequeno através da pedra. Elle, assim que chegasse a esses signaes, deitava-se, e pelo orifício chamava três vezes por um nome de mulher, que ella lhe diria; depois, havia de atirar lá para dentro um presente, que de manhã, á hora de partida ella lhe daria com todo o cuidado.

*

 De manhã, mal aclarava a madrugada, a mulher acordou o mendigo.
 — Venha o presente, — disse ele, já prompto.
 — Aqui tem Vossemecê.
 A velha deu-lhe um cavalinho de farinha de trigo com amassadura que só ella sabia; tinha o feitio de esses cavallitos do pão doce, que se vendem nas romarias e nas feiras. Era esse o presente. Elle tinha de o levar com muito mimo, e, quando o mettesse no penedo, era preciso que cahisse lá dentro inteiro como o recebia.
 — Ha-de ser tudo assim, — assegurava o mendigo, a sahir a porta.
 — Espere, espere, — gritou a velha, — então Vossemecê não levava o nome, que ha-de chamar! Não servia de nada o caminho. Quando chegar lá acima, chama três vezes ao buraco pelo nome de Basilia e só mette o cavallinho no penedo, ao ouvir faltarem-lhe lá de dentro.
 — Mas então, fallam de dentro? — preguntou elle muito admirado, e com algum receio mal encoberto.
 — Pois se lhe fallam, é que está lá dentro alguem.
 — Mas a mim disseram-me que, por mais que se chamasse, ninguem respondia!
 — Podéra! Muito obrigada! Mas quem chamava pelo nome? Não sabiam como se chamava quem lá vivia!
 — Ah então era segredo de nome? — interrogou com subido espanto o mendigo.
 — Pois era. Mas vá, vá. Não perca tempo.
 Entre receoso e decidido, o mendigo sahiu e começou a ascenção da montanha.

*

 Succedeu tudo como a velha disse. O homem chegou ao penedo, subiu-lhe para cima, e viu lá os signaes e o buraco ao meio de eles. Deitou-se no chão, e collando a bocca ao orificio, para que a voz se não perdesse, gritou três vezes o nome de Basilia.
 A’ terceira chamada ouviu um bocejo de quem acorda; uma voz meudinha e espreguiçada respondeu:
 — Quem me chama?
 — Sou eu, — responde o homem.
 — Trazes-me noticias da minha ama?
 — O que trago, ahi vae.
 Tirou do surrão o cavallinho de farinha, e examinou-o, a vêr se estava direito. Depois introduziu-o no buraco do penedo. A passagem era difficilíma, e desastradamente quebrou-lhe uma perna. Por fim lá cahiu. Correram uns instantes Ouviu chorar lá em baixo. E a mesma voz de ha pouco fallava para cima, com tristeza.
 — Dobraste-me o encanto. Só teras habilidade para britar pedra. E’s um desastrado. Se tivesses sido cuidadoso, como a minha ama te recommendou, ficarias com todas estas riquezas.
 — Que sorte a minha! — exclamou o mendigo, desesperado.
 — Como vieste cá, vou recompensar-te.
 — Mas não o fiz por mal; foi pouca sorte ! — disse ele.
 — Por isso te recompenso, — repetiu a voz, estende a mão, que encontrarás n’ella um tostão de prata, e, sempre que voltares aqui, acharás outro.
 — Bom ! Do mal o menos, — concluiu o homem com um encolher de hombros; e levantando-se, desceu do penedo, e foi-se embora.

*

 Não pensou mais o mendigo em sahir para Coimbra e Lisboa. Senhor da receita de ter um tostão sempre que subisse á Fraga da Moura, nunca mais se affastou de aquellas convizinhanças. Fez-se um jogador vicioso, e não abandonava nem a taberna nem a tavolagem.
 As moedas da moura atascavam-o no vicio cada vez mais. Estava nauseabundo. Não trabalhava. Vivia a ociosidade humilhante dos desmoralizados.
 Uma senhora, que lhe dava por compaixão mesa e cama, censurou-o de não querer trabalhar e offereceu-lhe trabalho nos seus quintaes.
 — Eu trabalhar! — respondeu elle desabridamente. — Não nasci para o trabalho; trabalhe Vossemecê.
 — Então responde-me assim? — preguntou admirada a boa senhora.
 — E’ assim mesmo! Não preciso de trabalhar para nada. O trabalho fez-se para os pretos.
 — E para os brancos. Não vê como todos para ahi trabalham ?
 — Pois sim, mas eu não preciso.
 — Porque joga tudo que tem?
 — Hei-de jogar o que me apetecer; hei-de jogar o que quiser, e não tem Vossemecê nada com isso. Jogo, jogo, jogo. Lá està a moura.
 Mas no dia seguinte, quando ia buscar o tostão de prata, que a moura lhe costumava dar, não o encontrou. Batia, barafustava, insultou a moura, e só depois de cansado, tendo visto inuteis aquelles protestos, se resolveu a descer. Incapaz de trabalhar, cheio de miseria morreu depressa no despreso de todos.

*

 Na manhã de S. João, Basilia sae da Fraga. Vêem-na de longe vestida de branco, a passear no cabeço do monte. Os que passam perto ouvem-na lastimar-se d’aquella sorte ingrata, que para alli a tem captiva, sem esperança de salvação. A velha, que a tentara desencantar por intermedio do mendigo, ha quanto morreu! Só ella sabia o segredo que tinha a massa da farinha de trigo, com que faria o cavallinho para o desencantamento. Tinham por isso despparecido as esperanças de Basilia.
 — Nunca mais, nunca mais — gritava a pobre rapariga.
 Com que amargura ouviria ella, se as ouvia, as cantigas cá de baixo, onde os ranchos aos saltos, em torno das fogueiras, muito vermelhas nas noites escuras, diziam em côro:

Vamos ver nascer o sol
Na manhã de S. João;
E então verás, meu amor,
Se eu te quero bem ou não.

 

Source
CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas Lisbon, Livraria Universal, 1924 , p.220-229
Place of collection
GUARDA, GUARDA
Narrative
When
20 Century, 20s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography