APL 692 A Moura do Algoso
Terras trasmontanas, onde o chão, para melhor subir nas alturas do ceo, se ondeia, revolve, enovella em montes, até dar o salto mortal para as serranias enormes: ahi fica a villa do Algoso.
Está em terras de Vimioso, que a voz do povo reune a Miranda-do-Douro, cantando e rindo de troça:
Caçarelhas já foi villa,
Miranda nobre cidade,
Vimioso ladroeira,
Como toda a gente sabe.
Era o Algoso velha alcaidaria-mór da comarca de Miranda, enterrada entre as Serras de Bornes e Nogueira a todo o Poente, e as Serras de Roboredo e Cimas-de-Mogadouro para Sul e Nascente. Vê-se como será movediço este chão, que liga as duas imponentes linhas de alturas rochosas e agrestes. Correm entre estes macissos dois rios, o Mação que vae desaguar no Sabor, e o Angueira que abaixo do Algoso se mette no Mação.
Lá para cima é Bragança, no seu throno lendario que domina todo o districto; ao Nascente é a antiga cidade de Miranda, honesta e humilde na sua decrepitude sympathica de mumia. E’ rude o povo quando lhe diz: — Se fôres a Miranda, vê a Sé e anda.
*
Sobem montes, descem precipicios, sobem outros montes mais altos, e nas covas, sobranceiro ás alturas, esteve outrora o castello do Algoso. Para descer e ir a terras vizinhas, é longe. Tudo é longe, mau andar naquellas serras frias.
Quem quiser vêr mau caminho,
Vá de Soutello a Montezinho.
Quem quiser saber o que as legoas são,
Vá de Iseda a Santulhão.
Lá no fundo fervem, no cachão branco da espuma, as aguas geladas do Angueira, no qual vão banhar as raizes os pinhaes, que descem lentamente, cobrindo-os por completo, os montes vizinhos.
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Havia no Algoso uma fonte ao pé de um rosal. Era simples. Uma fontezinha aldeã: da pedra do monte brotava e corria, cantante, a agua; do sulco, por onde ella descia como varinha de crystal a torcer-se, cahia num tanque pequeno de pedra, cavado rudemente por qualquer artifice da aldeia; aos lados, moutas de roseiras aromatizavam deliciosamente o recanto.
Chamavam-lhe a Fonte de S. João, porque nessa noite, uma vez ao anno, apparecia, onde vinha pentear-se, a mais linda moura de Tras-os-Montes.
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Diz a lenda que por alli havia, no tempo dos Mouros, um bruxo de terrivel memoria.
Acudiam todos a procurá-lo, para serem curados por elle nas doenças de que desesperavam melhoras, ou para o consultarem em assumptos de interesse. Curava doenças a uns; matava outros com os remedios; enganava os que lhe pagavam os serviços, convencidos dos poderes de bruxo. Mas o certo é que tinha fama por todos os arredores.
Desciam os povos em demanda do bruxo poderoso, desde Macedo-de-Cavalleiros, Vimioso, Mogadoro e Alfandega-da-Fé, através das montanhas cheias de neve. Quantos morriam pelo caminho minados pela doença e pelas canseiras da viagem? Outros cahiamnos precipicios. Havia luctas tremendas com alcateias de lobos. E no emtanto, apesar de tudo, afluia do Freixo-de-Espada-á-Cinta, da Torre-de-Moncorvo, de Villa-Flor, de Mirandella, de Bragança. De mais longe, de Vinhaes, Valle-Passos, Murça, Carrazeda, e mais e mais.
Era uma romaria no Algoso. E o bruxo orgulhava-se da clientella. Procuravam-no pobres e ricos; e na casa de pedra negra, onde os recebia, entravam os estofos luxuosos e os pannos grosseiros. A todos elle egualava deante das suas artes magicas, porque a egualdade adoptada por elle era a do dinheiro. Todos que pagavam, seriam servidos.
Creou fama de rico e devéras o deve ter sido. O ouro corria a jorros para os arcazes de embutido.
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Os Christãos, fortes já na sua audacia pelo numero e sobre tudo pela fé, desceram das montanhas do Norte da Peninsula e vieram de roldão por ahi abaixo contra os Mouros. O Algoso resistiu mas teve de render-se, e o bruxo desappareceu.
Quando viu tudo perdido, o bruxo não quis que os seus thesouros cahissem nas mãos dos vencedores. Tratou de os esconder. Para mais, elle não podia convencer-se do grande praso de ausencia os Mouros voltariam mais dia menos dia, e elle de novo se apossava das riquezas escondidas.
Só lhe faltava escolher o logar do esconderijo, e a unica difficuldade, se a havia, era escolher um entre tantos; mais custoso seria o trabalho de encontrar guarda para elle.
Correndo os olhos pelo contorno do castello, deu com a Fonte de S. João. Era bom sitio para se não perder, e não ficava longe. Foi-se lá com o melhor dos thesouros, que não podia transportar consigo na fuga pelos montes e precipicios. Cavou e metteu na cova o cofre de marfim, chapeado de cobre, onde guardou as joias e o ouro.
Ao voltar para casa, deu com uma rapariga, que ia á fonte, com uma cantarinha de asa esbelta. Receou que ella o tivesse visto guardar o cofre no rosal á beira da fonte, e o denunciasse. Só tinha um remedio salvador; era encantá-la. Além de se assegurar assim contra a possivel e temida denuncia, obteria de esta forma a guarda do thesouro, guarda fiel, que nada diria e a ninguem se denunciaria.
Estas duas circunstancias resolveram-no. Caminhou para a rapariga, e dizendo certa oração mysteriosa, de elle bem conhecida, fez-lhe sobre a cabeça alguns signaes cabalisticos. A rapariga desappareceu como se tivesse entrado pelo chão, e a cantarinha de barro, cahindo no solo, desfez-se em mil pedaços. Deu o bruxo uma gargalhada infernal e foi-se ao castello.
Quando os Christãos entraram no Algoso, não havia noticias do bruxo. Com a ingratidão do costume, e com o odio dos beneficiados aos autores dos beneficios, corno é dos livros e de todos os tempos, os povos das vizinhanças, que primeiro se serviram do bruxo e a elle iam pedir auxilio por caminhos difficilimos e perigosos, cahiram em massa no Algoso, para lhe assaltarem a casa e roubarem os thesouros. Já o não receavam, nem de nada lhes servia. Mas não encontram mais que a casa de pedra negra e o porco mobiliario bem conhecido de elles, afinal.
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Que encanto déra o bruxo á rapariga do Algoso? preguntar-se-ha.
Quando lhe pôs as mãos na cabeça e lhe traçou sobre ella os signaes cabalisticos, a rapariga transformou-se immediatamente em uma grande cobra. Correu por entre o matto, em que se embrenhou, e foi para o rosal: ahi ficaria até volta do bruxo, a guardar os thesouros.
A’ volta da fonte, erguiam-se copados ulmeiros que formavam ao rosal a mais bella sombra. Por ahi vivia na sua miseria a pobre menina feita cobra. Só uma vez por anno retornava as formas humanas. Dizia-se que era linda como os amores. Alguem a tinha visto de longe, na noite de S. João vestida de branco, na sombra dos ulmeiros, como nuvemzita de neve a subir na madrugada, serenamente.
II
Andava accesa na villa a fama da moura da Fonte de S. João. Approximava-se a festa do Santo e estavam lindas de côr e fragrancia as rosas do tanque.
Um rapaz apaixonou-se pelo mysterio da pobrezita, enclausurada na sombra um anno inteiro. A noticia da sua belleza, dos vestidos brancos, e dizia que cantava como os Anjos nessa madrugada festiva, encheram-no de ansiedade.
— Hei-de vêr a moura da Fonte, — disse elle um dia, resolvendo tentar vê-la e fallar-lhe.
— Ela foge, assim que vê alguem, — informou a velha mais velha do Algoso, ao saber da decisão do rapaz.
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Vespera de S. João. Luz no céo, fogueiras na terra. Por felicidade a noite era clara. Cantava-se na villa. Os foliões saltavam aos ranchos nas praças e quintaes, através das labaredas crepitantes das fogueiras em honra do Santo festejado.
O rapaz, quando anoiteceu, dirigiu se á Fonte. Atrás de si as cantigas faziam-lhe inveja, quereria voltar á villa, mas a vontade era maior na direcção de conseguir vêr a moura e fallar-lhe.
— Aqui não consigo nada, — pensou elle para si, ao chegar ao tanque; — a moura, mal se visse, desapparecia, e eu ficava a vêr navios.
Procurou um logar, fronteiro ao tanque, de onde podesse ver, sem logo ser visto. Estava a dez metros, debaixo de um olmo grande que o encobria do lado da fonte. Sentou-se no chão, encostado á arvore, e aguardou. Na villa os ranchos cantavam alegres, e os cantos de todos elles reuniam-se em um canto só, enorme, confuso, como cantochão num pinhal.
*
O ar ia refrescando. A atmosphera adelgaçava se, crescia, abobadava-se em luz. Pousava na terra um véo de claridades suaves. Na sineta do campanario repenicava a hora do banho santo. Pareciam vêr-se no ar as ondulações das badaladas.
De ouvido apurado, o rapaz não perdia de vista a fonte. Era á meia-noite que a moura devia de apparecer. Por isso, ao ouvir a sineta da villa, commoveu-se da sensação extraordinaria e desconhecida, que lhe embalava no vacuo os pensamentos e o corpo.
De repente ouve um restolhar no rosal. Grande cobra, uma serpente assustadora, desembocou do mattagal e, subindo ao bordo do tanque, atirou-se á agua. Chapinhou dentro da agua aquelle corpo negro e asqueroso. Três vezes mergulhou com ruido na agua. E os olhos esgazeados do rapaz viram cheios de espanto que a serpente se transformava em mulher.
— A moura! — e a vai ficou-lhe collada á garganta.
A moura sahia lentamente da agua, espannejando-se com alegria infantil de creança, que sahe do banho. Quando estava inteiramente de pé, elle viu-a vestida de urna tunica branca. Firmava os olhos, para se convencer bem de que era a moura, que via alli de pé, deante de si, pois mais lhe parecia pedaço de nevoeiro a fugir das aguas do tanque para as copas amigas dos ulmeiros.
A folhagem cerrada do arvoredo cobria com docel de penumbra a brancura alvejante da moura. As rosas ao lado, no rosal, não eram mais brancas naquella claridade baça.
O rapaz seguia-a attentamente com os olhos. Viu-a depôr na beira do tanque as escamas metallicas da pelle de cobra. Depois a moura saltou para o chão, estouvada e em azougue como collegial em ferias; os cabelos de ouro, que brilhavam em tranças grossas, cahiam-lhe pelas costas ou pousavam no hombro as madeixas macissas. Sentou-se na beira do tanque e espalhava os cabellos. Foi como se uma chuva de estrellas cahisse nella! Os hombros, o peito, a cabeça gentil, resplandeciam. Aquelle recanto sombreado transformava-se em um tabernaculo. Corria o pente de ouro nos cabellos de filigrana, lavrava-os com os dentes macios, cardava o linho de ouro para o precioso tecido com que enfeitava a cabecita.
Ia fallar-lhe o rapaz. Mas a moura principiou a cantar. A voz prendeu-o ao chão, e elle calou-se.
Deante da menina saltitou uma corça branca. Beijava-lhe os pés, corria de um canto a outro voltava a afagar-lhe os pés, calçados em babuchas de damasco azul, com bordados que brilhavam. Se alguma folha cahia, ou algum estalido mais rijo cortava o silencio circundante, logo a corça firmava as patitas elegantes e perscrutava os arredores com olhos vivos e orelhas arrebitadas.
Continuava a moura a pentear-se e a cantar. A sua voz, leve como haste de açucena, erguia-se na limpidez crystallina da madrugada; tinha doçuras e convites de campanario longínquo pelas quebradas. De vez em quando afagava com a mão meudinha a corça que lhe lambia as babuchas de damasco, pendentes da ponta dos pés.
A agua, correndo da pedra da nascente para o tanque, era a unica harmonia que acentuava o canto delicioso.
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Ao longe ouvia-se ainda na villa o côro do banho santo. E a pouco e pouco iam adormecendo os echos. Até que, por fim, nada mais dava signal de vida, fóra do pequeno terreno onde esta scena se passava.
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Quando acabou de se pentear, o que fez com todo o descanso de quem não tem pressa, duas tranças cahiam-lhe sobre os hombros. Emmolduravam-lhe o rosto, como essas columnazinhas que formam os nichos da Virgem. Deus nos perdoe a lembrança, mas aquella menina, moura sim, era martyr virginal, que a maldade do bruxo para alli tinha encantada sem culpa. Depois de se pôr de pé, inclinou-se para o tanque, onde a agua formava o unico espelho de que ella dispunha. Debruçou-se nas aguas. Decerto viu reflectir-se toda a belleza, que em breves momentos voltaria a esconder-se nas escamas metallicas da pelle de serpente hedionda, que a esperava. Chorou. As lagrimas corriam em fio, e soluçava. O corpo gentil agitava-se em convulsões.
Ergueu-se. Levantou as mãos como numa prece ao céo. O perfil esguiava-se naquelle vestido branco; torcia os braços nús, brancos como nevoa, e, que como nevoa pareciam subir e contorcer-se no ar.
*
Condoído, o rapaz quis então fallar-lhe e consolá-la, para o que julgou asado o momento. Não se lembrou do seu interesse. E’ verdade que elle estava ali movido mais pela curiosidade ansiosa de vêr a moura, aquella moura ali na sua frente, do que pela ideia de tirar partido interesseiro do encontro.
Diz-se que, se alguem visse a moura, nas horas para dia felizes, em que tinha forma humana, de ella conseguiria três coisas que lhe pedisse.
Não se lembrou de tal o rapaz. Penalizado pela mágoa da moura, que chorava e se lamentava, teve tentações de lhe fallar e consolar-lhe as afflicções com palavras amigas e de sympathia.
Lá estava dia de pé, á beira do tanque; as mãos, descendo do alto, vieram limpar-lhe os olhos, onde as lagrimas brilhavam como diamantes accesos. E’ o cabello de ouro coroava, aquella figura branca de açucena, com um véo luminoso.
*
Ia cantar. Sahiram-lhe da garganta as primeiras palavras de um canto de lagrimas. Que lamentações ergueria então aquelia alma? Àpproximava-se a hora de alva e ella ia desapparecer em breve.
O rapaz ergueu-se. As folhas e o matto rangeram-lhe debaixo dos pés; estalaram as hastes das hervas debaixo das mãos, em que elle se apoiava para se levantar.
A corça estacou de orelhas hirtas e pernas nervosas. A moura deteve-se. E tão depressa elle sahiu detrás da arvore, a corça fugiu com um grito e embrenhou-se no matto. O grito assustou-o e ficou a echoar-lhe no fundo dos ouvidos, com a apprehensão a apertar-lhe as fontes, comprimindo-lhe o coração com susto.
Olhou; a moura desapparecêra. Ouvia ainda o restolhar da corça no matto. A agua do tanque estava agitada, e uma nevoa, dir-se-hia de incenso, evolava-se do tanque, subindo a direito e perdendo-se nas copas dos ulmeiros.
Só as rosas do rosal estavam brancas e perfumadas como antes. E lá em baixo o Angueira batia contra os rochedos, zangado de o não deixarem passar á vontade.
- Source
- CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas Lisbon, Livraria Universal, 1924 , p.147-160
- Place of collection
- Algoso, VIMIOSO, BRAGANÇA