APL 1581 [A Moura de Vaz Varela]

Era no ano de 1249 e tinha começado já a conquista dos Algarves; a hostia (hoste) portuguesa, comandada por D. Pelaio (Paio Peres Correia) tinha-se retirado do cerco de Tavira, ocupada pelos mouros, para Cacela, por virtude de umas trevas (tréguas) de 30 dias ajustadas com eles, então governados por Calis Caixá Sidra Manuel Adelaide (Kadi Bachá Sid Mohammed Abdallah ?) de muito poder em encantamentos, e que tinha uma filha de dezoito anos, linda como a mais formosa variz (houris) do paraíso de Atafona (Mafona) e mais formosa do que as mais lindas rosas do seu jardim de sete fontes. Era ela a luz dos seus olhos e a alegria da sua alma negra de fradelho (escaravelho?). Catarina (Fátima?) chamava-se ela.
 Os mouros tinham rompido as tréguas pela morte à traição dos sete cavaleiros cristãos que, passando o rio cego (Sequa), tinham ido em caçaria à cidade das Prantas (Antas) e o governador, prevendo um ataque decisivo, tinha preparado tudo para a fugida, já pelas galeras no rio João (Gilão), onde estavam acomodadas muitas riquezas, já pelo caminho por baixo do chão do castelo para a fonte da aguada de muitas bicas, hoje denominada Fonte da Praça, completamente desimpedida. Instava o governador Abdallah com sua filha a que o acompanhasse, recusava-se, porém, Fátima acompanhar seu pai pelo muito apego que tinha à terra que guardava os ossos de sua mãe e que ela todos os dias regava com as pedras cristinas (pérolas cristalinas) de suas lágrimas de prata; e como Sid Mohammed não pudesse vencer a resistência de sua filha e temesse que ela caísse nas mãos dos ferros infiéis (perros infiéis) resolveu encantá-la por mil e um anos num dos ares (aduares?) destes sítios.
 Para este fim no dia 15 do armazem (Moharrem? que corresponde a 9 de Julho?), dois dias antes da conquista da cidade, quando a hoste portuguesa vinha já de caminho a castigar os mouros, pelo pino do meio dia, dirigiu-se com ela ao poço de Vaza Amarela (Vaz Varela) e debruçando-se para dentro disse as seguintes palavras de encantamento:
 «Louvado seja somente Deus: não há força nem poder senão em Deus, o alado, o grande.
 «Só Deus é grande, e Mohammed o Seu Profeta, saibo (sábio) e santo profeta, servo de Deus, que se resigna à vontade de Deus, e a ele confia o seu ser e mistérios, o príncipe dos crentes, filho do príncipe dos crentes, o príncipe dos crentes, filho do príncipe dos crentes (repete-se isto sete vezes) que passa por entre as ilustradas cabeças dos grandes capitães, tocando no alto (alvo) com frecha (flecha) certeira, o Cafila de Fezes (Califa de Fez), o sultão de Maniquez (Mequinez ?), o Emilio das Barrocas (o Emir de Marrocos?), a Magestade Sebastiana Ave de Romã (Sid Muley el-Kassan AbdRahaman?), cujos dias Deus torne grandes e felizes, a Deus encomendem e encomendo a minha filha Fátima Abdallah como seu encantamento por mil e um anos.
 «Que ela não se desencante sem passar os mil e um anos, salvo se alguma alma de ouro e coração de pomba se deixar engolir pelo Aragão (dragão) de escamas de prata, que segure nos seus dentes de marfim a tua poderosa aldraba (aljava?) e gomitada (vomitada) passados três dias, borrifada que seja com o sangue de galinha preta, o anjo Gabriel, teu espírito de miar (teu espírito familiar) a faça voltar à vida, e ele mesmo acompanhe minha filha Fátima Abdallah ao andar (aduar) de Sid Mohammed Abdallah, teu servo, ou à porta de seus filhos e parentes junto da porta Raquel-tudo (Babel-el-tuto?) da sagrada cidade de Fez!...
 «Que nunca à minha filha lhe faltem os títeres (os viveres?), o ouro, a prata e pedrarias em seu palácio encantado, que seja ela como o sol do mundo, quando espalha os seus raios e, encantada neste poço, guarde em esteira de palmeira figos de ouro, que dará, bem como as mais riquezas, à pessoa desencantadora, e no tempo das chuvas e em dias de friezas, que nunca um sono de chumbo desacompanhe os seus olhos de veludo, debruados da mais pura seda, e mais formosos do que o luar de Mobarrem, ultimamente que seja sempre jovena (jovem) e mais doce do que o cantar das rolas, alimentando os seus filhos sem penas.
 «Grande Profeta’ O homem sábio realiga-se (regozija-se) com aquilo que vem do seu querido Allah e, tu, Santo Profeta, recebe a menina dos meus olhos, a vista da minha vista, a minha querida Fátima Abdallah em tua santa guarda, entregá-a ao anjo Gabriel para conservá-la encantada por mil e um anos.
 «Assim te encomendo, é meu Senhor e Amo, a minha filha.
 «Louvado seja somente Deus; não há força nem poder senão em
Deus, o grande, o elevado.
 «Só Deus é grande, e Mohammed o Seu Profeta.»
 Então o governador fez no poço e sobre a filha sinais cabralistas (cabalísticos) acompanhados de palavras misteriosas, pronunciadas numa entonação musical muito triste e, lançando ao pescoço da filha o santo sino termano (o santo signo samão?), já com a lua e estrelas no céu, a arremessou ao poço.
 A água do poço abriu-se; Fátima entrou no seu seio para ocupar o seu palácio encantado, e o pai ali se conservou a chorar até às horas da meia noite.
 E ela ali se conservará por mil e um anos, se uma alma caritativa não aparecer que a queira redimir do encanto, sujeitando-se aos preceitos da lenda.
 No entanto, a pobre Fátima, no palácio encantado, conserva grandes valores em ouro e jóias preciosas que oferecerá ao seu desencantador.
 E ainda lá se conserva?
 Embora se espalhasse há um século que a moura esperava um príncipe cristão que a desencantasse, e que este príncipe estava prestes a chegar é certo que factos antigos e modernos exuberantemente provam que a moura ainda ali se conserva encantada.

 

Source
OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve Loule, Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.183-192, cap.XXIII
Place of collection
TAVIRA, FARO
Narrative
When
14 Century,
Belief
Some Belief
Classifications

Bibliography