APL 691 A Moura de Milreu
Certo almocreve ronceiro ia de Faro para S. Brás de Alportel, recolhendo a casa de sua residencia. Passava a Milreu e encontrou-se com a moura, que, diziam os medrosos, andava por ali a descaminhar quem topava.
— Vem de ahi commigo,— convidou ela ao almocreve.
Elle seguiu-a. Os cabellos ondeavam ao vento que vinha do mar, e lembravam fios de ouro estendidos no tear, á espera das mãos de fada que os enleasse. As chinellitas minusculas batiam no chão apressadamente ao passo dos pés pequeninos, que o almocreve de grossas sapatas via correr na sua frente. A’s vezes hesitava e esquecia-se de acompanhar a moura. Ella, que o percebia, fallava-lhe sem olhar para trás.
— Porque tens medo? Que receias? Porventura tens medo de mim? Anda.
Ao fim de um quarto de hora, se tanto foi, a moura parou. Com aquele pé pequenino, que o almocreve tanto se admirava de ver assim metido, bateu três vezes no chão, e com a varinha magica, que sempre tinha comsigo, fez no ar um signal rapido.
Debaixo dos pés da moura viu ele então abrir-se um alçapão, onde terminava a escadaria de um subterraneo. Os degraus de marmore alvejavam fortemente no escuro.
— Desce commigo,— ordenou a moura.
Desceram os dois, e breve se encontraram em vasto salão de paredes de marmores azues, com a abobada de grosso crystal e columnas de ouro macisso. Havia lucilações de joias por toda a parte. A luz espalhava-se no ar, batia nas paredes, dardejava nos metaes, nos vidros, nas pedrarias, mas sem se saber de onde emanava.
A um canto da sala estava um leão, em frente uma cobra gigantesca, presos por correntes á parede. Quando a moura entrava, o leão ergueu-se nas mãos e sacudiu a juba, em carinhosa reverencia de servidor humilde, O almocreve é que se assustou, ao vêr os dois animaes. Ao deslumbramento das riquezas magnificas succedeu o medo. Se não fosse a vergonha de mostrar tamanho medo, ele teria fugido.
— Queres ser muito rico? — preguntou-lhe a moura, pondo-lhe amigavelmente a mão nos ombros, e fitando-o fundamente, como se lhe quisesse ler o pensamento. — Se queres ser rico, — continuou ella — poderás ter este palacio com todas estas bellezas e os thesouros que tem; has-de fazer o que te vou ensinar. Queres?
— Pois então não hei-de querer! Está visto que quero. Nem se pregunta. Faz-se a coisa, a gente gosta... Pois quem lia que não goste de ser rico?
— Escuta lá, então.
— Cá vou ouvindo tudo.
— Antes de mais nada, tu has-de consentir que meu irmão te devore. Serás devorado e vomitado três vezes.
— Não bastava uma graça? — atalhou elle.
— Cala-te e ouve. Serás devorado e vomitado três vezes por meu irmão. Consentirás, também que minha irmã te abrace três vezes.
— Ora essa, pois não! Isso ha de custar assim tanto?
— Olha que, onde minha irmã te abraçar, ficarás com o corpo cheio de ulceras.
— Isso é mais serio,— disse o almocreve já aprehensivo.— Mas onde estão esses irmãos?
A moura sorriu-se e, apontando para o leão, informou: — o meu irmão é este,— e para a serpente: — a minha irmã é aquella. Poseram-se os cabellos em pé ao almocreve assustado. Então havia de ser comido por aquelle leão tremendo, de juba enorme e dente afiado? E. comido três vezes! E’ verdade que seria vomitado outras tantas, mas tinha de passar pela dentuça do animal, que se podia esquecer de o respeitar, quando o tivesse na bocca e lhe mordesse as carnes christãs. E, depois, ser elle ainda abraçado pela serpente, e ficar com o corpo em ulcera!
— Perdoe-me a Senhora,— disse o almocreve, — perdoe-me não lhe dizer já que sim. Peçó uns dias para pensar e decidir.
Prometteu voltar, tão depressa tudo ficasse resolvido no seu espirito. Tinha dúvidas. Preguntava se em verdade podia ter negociações com aquella infiel, que o levou á cilada, a que assistia. Voltaria.
A moura consentiu o regresso do almocreve.
— Vae para tua casa, e pensa,— recommendou a moura ao almocreve, despedindo-o, — decide-te.
Deu-lhe como lembrança duas barras de ouro. Levou-as escondidas; ao chegar a casa, escondeu-as até da propria mulher, a quem não fez sequer a narração da aventura famosa. Nem mais voltou a encontrar a moura, que se lhe sumiu por encanto.
*
Nunca mais o almocreve se decidiu a cumprir a promessa feita à moura. Promettera voltar, mas o medo do leão e da serpente era tão grande que ia addiando constantemente a volta ao palacio encantado, onde elles estavam. Elle queria ser forte e brioso, ia apresentar-se á moura; ficára porem aterrado com o que ella lhe exigia; se era tão grande o terror que de noite, em sonhos, sentia-se a combater com o leão, para este o não devorar, e então suffocava, a ponto de acordar a mulher!
O tempo sem cessar ia correndo. Passavam-se os annos. Já lá iam alguns, depois que o atrapalhado almocreve tinha, para mal de seus peccados, encontrado a moura gentil, ao pé de Milreu.
Um dia os negocios do almocreve, que até ali fôra feliz, começaram a correr mal; baralhavam-se. difficultavam-se, e elle ia-se arruinando.
Os annos estavam maus; a estiagem prolongava-se e a agricultura definhava; não havia aguas que seccavam as fontes e nascentes. O serviço de recoveiro decahia, por não haver que transportar. Os moinhos paravam, á falta de trigo, para moer. O commercio era parco. Não havia trabalho compensador. Os campos estavam destroçados.
Cheio de terror, o almocreve temeu a fome. Via deante de si o espectro da fome, para si e para os seus, elle que nunca podia lembrar-se de que ella lhe batesse algum dia á porta.
Para evitar o desastre imminente, dicidiu vender as duas barras de prata, que lhe dera a moura no salão subterraneo. Ella porem estava irritada por elle faltar á palavra compromettida, e por isso, apenas o almocreve se resolveu a negociar as barras de prata, foi-lhe tirando a pouco e pouco a vista aos olhos, até que por castigo o cegou de todo.
Não comprehendia o almocreve que a cegueira tivesse ligação com a moura. Como se havia de elle lembrar que era castigo da sua lembrança ingrata de vender a prata? Consultou os medicos especialistas de doenças de olhos; elles miravam remiravam, faziam observações de toda a especie, e não davam com o segredo mysterioso da doença.
Chegou um dia a S. Brás de Alportel a noticia de estar em Faro o mais milagroso especialista dos males dos olhos, e então o almocreve metteu-se a caminho, para tentar mais uma desillusão.
— Havemos de ir a Faro, a consultar esse cirurgião milagroso, — disse ele; — ao menos não se dirá que jurei cai falso. Vamos. Seja. O que fôr, soará.
Combinaram o dia, e, montando em um jumento, ahi vae pela estrada em direcção a Faro, acompanhado da mulher. Pararam em Milreu. Elle apeou-se, emquanto a mulher se dirigiu a uma casa conhecida, onde devia de deixar certo recado, que lhe confiaram com empenho. Quando estava só e se desviou um pouco da estrada, o almocreve encontrou a moura, que lhe falou duramente,
— E’s um homem sem Palavra. Quem um dia compromette a sua palavra, cumpre quanto prometteu, custe o que custar. Quem não pode cumprir, não se compromette a nada. Tu prometteste trazer-me a tua resposta ao que te propus. Eu podia não te conceder nenhuma demora para responderes, e não só te permitti o addiamento e a sahída do subterraneo, mas até, mesmo, além de isso, te offereci duas barras de prata, sem condições.
— Tudo isso é verdade, — confirmou o almocreve pesarosarnente.
— E que fazes tu? Não voltaste mais com a tua resposta definitiva. E afinal eu só queria que dissesses: sim ou não. Cumprias a tua palavra, e eu tirava de ti o sentido.
— Desculpe-me a Senhora, — disse com humildade o almocreve.
— Essa cegueira é o castigo da tua falta de seriedade. Poderia dar-te maior castigo, mas o segredo, que guardaste, salvou-te. Não revelaste o meu segredo nem o de meus irmãos.
A estas palavras tremeu o cego como um junco batido pela ventania. A moura pensára que o almocreve era homem decidido e corajoso, e, ao vê-lo assim trémulo, medroso como creança, compadeceu-se de elle. Que faria d’aquella timidez, e como conseguiria do almocreve a salvação do seu encanto pela heroicidade, que necessitava para a conseguir? Nada podia esperar alli. Disse-lhe então que não fosse a Faro, voltasse para casa, e ensinou-lhe o que devia de fazer, se queria readquirir a vista.
—Vaes já para casa. Volta para trás, que nada conseguirias em Faro com o medico afamado, que vaes procurar. E agora ouve.
Antes da alvorada, elle havia de estar á porta de casa. Aguardaria ali que o sol nascesse. Apenas rompessem os raios de sol por cima das serras do Nascente, e dessem nos olhos do almocreve, ele sentiria dois estalidos fortes, e os olhos abrir-se-lhe-hiam. Veria na sua frente os campos risonhos, essas bellas paisagens do Algarve em jardim.
Quando a mulher voltou para junto do almocreve, esperava-a este já impaciente. Com a mulher vinha o dono da casa a que ella tinha ido, e dispunham-se os dois ajudar o cego a subir ao albardão do jumento. Foi extraordinaria surpresa para eles ouvir o almocreve a rogar-lhes que o levassem de novo, de volta a casa.
—Oh!. .. Hom’essa agora! Então tu querias ir ao tratamento do cirurgião a Faro, chegamos até aqui, e agora queres voltar para casa! Não estás bom, com certeza.
— Afinal pensei que era dinheiro perdido o que iamos gastar. Para quê? Para ficar na mesma? Não vale a pena. Pensei melhor, e acho que não vale a pena. Vamos embora.
Convencida a mulher, regressaram immediatamente a casa; elle não contou nada do que se tinha passado, nem o que ia fazer.
Deitou-se, e o pobre cego não fechou olho em toda a noite. A ansiedade enorme de readquirir a vista não o deixava adormecer. Não era só a alegria que esperava ter, confiado na promessa da moura. Elle dizia lá para comsigo que palavra de moura era sagrada. Mas gosava já tambem a alegria da mulher e dos filhos, quando lhes dissesse que tornava a ter vista e elles verificassem que assim era. De manhã, muito cedo, acordou a mulher, e pediu-lhe ajuda para se erguer do leito.
— Que coisa é essa de te levantares assim tão cedo? — preguntou-lhe ela.
— Já que não posso vê-lo, quero sentir o nascer do sol. Os passarinhos a cantar! Deve de sentir-se a luz a passar!
Depois de vestido, o almocreve pediu á mulher que o levasse á porta de casa. D’aquelle sitio gosaria melhor o nascer do sol.
A madrugada estava tépida e perfumada pelos trevos floridos. Su[rge] da terra a claridade matinal. Acordavam as […]ivas e amenizava-se o ar. Passavam os primeiros madrugadores para as tarefas do campo, e cumprimentavam.
— Eh! tio Manuel, Deus lhe dê bons dias!
— Salve-o Deus, tio Manuel!
— Viva, tio Manuel, bons dias.
— Adeus, vizinho, salve-o Deus.
E elle, que os reconhecia a todos, retribuia-lhes com doçura os cumprimentos, como avô que toma a benção aos netos que o saudam. Um aceno de mão, num adeus, e o “benza-vos Deus” suavemente, era tudo.
Nasce o sol. Como a moura annunciára, o cego ouviu os dois estalidos de reposteiro que corre ou porta que se abre, e vê na sua frente os campos tão conhecidos, mas tão saudosos no tempo da cegueira.
— Eh! mulher! Ouve cá! — bradou elle para dentro.
— Não te apoquentes, homem! Para que te estás a arreliar? Sossega. Já vou.
A mulher suppunha-o em mais uma d’aquellas muitas horas de desespero, a que a cegueira o levava. Não ver, não trabalhar, para quem toda a vida levára no trabalho dia a dia, irritava-o em excitações permanente, com períodos agudos.
— Que feliz sou! Vem cá. Já vejo outra vez os campos. Já vejo o ceu. Já vejo a terra e o ceu. Vém cá, meu amor!
- Source
- CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas Lisbon, Livraria Universal, 1924 , p.136-146
- Place of collection
- Estoi, FARO, FARO