APL 65 A moira encantada

Um sem numero de pessoas têm enxergado em noites de luar um vulto feminino, ora reclinado no dorso de algum penedo, ora vagueando scismador pela crista da serra da Nó.
 O seu andar é de tal maneira suave, que se diria não põe os pés no chão.
 — Lá está a moira de guarda ao castello — diz o povo; e quantos a avistam quedam assombrados perante a extraordinaria visão.
 Alguns moços enlouquecem de amores por esse ideal typo de belleza.
 Vós, porventura com o gosto derrancado pela admiração convencional que prestais aos attractivos das salas, não tendes sequer phantasia para attingir o que seja a moira da serra da Nó. Tentarei dar-vos por artificio leve ideia, e mal o poderei fazer.
 Conheceis provavelmente uma mulher ao menos, de feições tão irregulares que, se fôra seu rosto copiado para a estawa ou desenhado, seria feio sem duvida, e comtudo ella tem um não-sei-quê a animar-lhe as feições, que vos illude, a ponto de a julgardes bella. Augmentai ao extremo esse fulgor a que não sabeis dar nome, ajustando-o logo á maior formosura que tiverdes visto, e eis um pallido retrato da linda moira encantada que se avista em noites de lua cheia, reclinada no dorso de algum penedo, ou vagueando scismadora pela crista da montanha.


 Por todas essas serras do valle do Lima ha thesoiros ignorados. Muita gente e da melhor tem enriquecido, porque um bom acaso lhos deparou. Procuram-se com o velho livro de S. Cypriano, rarissimo quando é o proprio; e tambem servem ao intento varinhas magicas feitas de azougue e de outros ingredientes desconhecidos do vulgo.
 Ha porém um castello soterrado na serra da Nó, para entrar no qual e descobrir as grandes riquezas que o enchem, não tem bastado nem varinhas nem livro. E a entrada é conhecida. Quem ha ahi pelas freguezias d’entre Ponte do Lima e Vianna que não saiba que certa caverna é o adito d’essa maravilha? A dificuldade está em que não ha luz que se não apague lá dentro, e a quem se afoitar ás escuras lhe succede desgraça grande.
 Sabido é que os moiros eram riquissimos, e, quando os christãos os expulsaram para a Moirama, não podendo pela rapidez da fuga levar suas riquezas, esconderam-nas, esperando encontral-as intactas quando voltassem. Os homens fugiram; mas as mulheres, que, por mais fracas ou motivos mysteriosos, nem todas poderam aompanhai-os, ficaram encantadas, a fim de não serem presa dos christãos, que, apesar da differença da fé, tiveram sempre, ao que parece, grande enthusiasmo pelas infieis. Por isso é que Portugal está cheio de thesoiros escondidos e moiras encantadas.

 
*
 O governador d’aquellas paragens vivia nesse palacio da serra da Nó, o qual deslumbrava pela belleza do sitio, pela riqueza dos materiaes e bom gosto de quem no adereçára. Os marmores mais preciosos, o porfido, o jáspe, eram porventura a sua menor valia. Os jardins dispostos em graciosos alegretes desciam até ao Lima, onde terminava uma cascata que, desde o mais alto, se ia despenhando em curvas caprichosas.
 Abakir, licencioso e vario, era o senhor do castello. Moço esbelto, não havia coração que não rendesse. Viu um dia uma pastora tão airosa e de physionomia tão innocente, que para logo ficou preso de amores á linda moira, que pelas serras apascentava rebanhos. Mandou que lha trouxessem a palacio, fez-lhe mil promessas, depois mil ameaças. A donzella rejeitou umas, e as outras desprezou-as.
 Abakir encerrou-a na torre, e todas as noites ia saber se a prisão mudára o sentir da gentilissima filha de Agar. Mas esta conservava-se firme no proposito de não acceitar os protestos do libertino.
 Uma vez tanto insistiu elle com a prisioneira, para que fosse a sua unica mulher, affirmando-lhe que expulsaria todas as outras, que a moira, sorrindo-se, quebrou o silencio habitual e disse:
 — Para mim, senhor, não basta que o homem a quem eu para sempre me entregue seja meu sem partilha; exijo mais, e assim o jurei áquella estrella que parece estar sobre a montanha sagrada — e approximou-se da ventana para indicar uma estrella que nesse momento brilhou com mais intensidade.
 — Era uma noite como esta — continuou; — eu e as minhas companheiras recolhiamos a casa. Vós passastes garboso e altivo, galopando no vosso cavallo arabe. Olhastes de relance, para o grupo das pastoras, e todas ellas não mais pensaram senão em pertencer-vos. E falavam-me de vós, esperando ver-vos rendido a seus encantos, que haviam de valer-lhes ricos pannos de Cordova e joias do Oriente… Eu não amára ainda, mas parecia-me que no coração das minhas companheiras andavam os sentimentos confundidos. De noite, sósinha na minha cabana, perguntava a mim mesma o que sentiria a gente quando amava. E tanto ouvi falar de amores, grandezas e aventuras vossas, e tanto pensei em tudo isso, que na minha alma se extremaram os sentimentos, e percebi como eu quereria amar e, ser amada. Aquella estrella era a minha confidente. 
 — Por Allah vos juro que sereis amada como sonhastes — acudiu o moço. — Tereis sedas de Damasco e perolas de Ophir, tereis por aias princezas, tereis.
 — Senhor, não; que eu jurei que os meus amores não seriam assombreados por desvarios de ambição — interrompeu a sarracena.— Mais que as vossas riquezas valem os meus sonhos de ventura.
 — Andarei d’aqui avante á mercê da vossa phantasia — retorquiu o enamorado.— Largarei riquezas e poderio. Eu no meu cavallo negro e vós no mais ligeiro do deserto iremos para longes terras. Seguireis a boa ou má fortuna do meu braço, e meu norte será o vosso olhar!
 — Senhor, não — repetiu commovida a agarena; — fiz mais uma jura fatal: não dar o meu coração senão áquelle a quem nunca houvesse passado pela mente a imagem de outra mulher.


*
 Os christãos nas suas correrias arrazavam cidades e villas, fazendo dos thesoiros boa presa de guerra. Os vizinhos de Abakir, vendo a impossibilidade da victoria, já iam caminho da Moirama; só elle se conservava ainda no seu paço, como alheio a tudo.
 Segredavam os seus companheiros de armas que no silencio da noite o chefe moiro folheava uns livros enormes guardados cuidadosamente nos subterraneos.

 Uma manhã, resolvida a fuga, saiu Abakir á esplanada; acompanhavam-no suas mulheres, offiçiaes e familiares.
 Levava sobraçado o alcorão, principal formulario de encantamentos para quem lhe sabe interpretar o sentido mysterioso. Quebrou os sete sellos, onde estavam esculpidas as derradeiras palavras de Mafoma, abriu o livro e leu. Prostrou-se beijando sete vezes a terra, e depois, estendendo a mão esquerda para o castello, proferiu baixinho a formula tertivel dos sortilegios…
 Espessa nuvem de fumo envolveu o palacio e os jardins.

 Montaram a cavallo e partiram todos para a Moirama, a galope, a galope.
 A scismadora ficou, tendo por encantamento o anhelo da sua phantasia. E nenhum moço lhe quebrou ainda o fadario, porque, se póde realisar um dos ideaes, não consegue arredar da mente a lembrança dos thesoiros que viriam a pertencer-lhe com o amor da donzella.
 Por isso continúa o castello soterrado ha muitos centos de annos, e lá se avista de noite uma mulher formosissima, ora reclinada no dorso de algum penedo, ora vagueando pela crista da montanha, a sonhar... a sonhar… Mas o melhor sonho é ella própria, a linda moira encantada, um sonho bem feliz, por isso elle se esvai, — um sonho de ventura, todo feito de esperança e de saudade: nuvens e luar.

Source
BERTIANDOS, Conde de Lendas Ponte de Lima, Hospital Conde de Bertiandos, 1993 [1898] , p.41-50
Place of collection
PONTE DE LIMA, VIANA DO CASTELO
Collector
Conde de Bertiandos (M)
Narrative
When
19 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography