APL 1600 A Fonte de Espiche
Próximo da Fonte de Espiche morava em tempos, que já lá vão, um pobre homem, se é que morada se pode chamar ao campo desnudado, onde ele, ao relento, estendia sob uma árvore os membros cançados e lassos.
Em uma noite deixou-se ele adormecer ao abrigo de umas balsas junto daquela fonte. Seria meia noite, hora destinada aos seres que andam pelos ares ou caminham por extraordinários processos, acordou o pobre homem ao tropel de duas cavalgaduras, em uma das quais montava um cavaleiro trazendo à garupa uma formosa moura e a outra era conduzida por um criado e vinha carregada com dois baús.
O cavaleiro mostrava um aspecto triste e severo. Apeou-se junto da fonte, pegou na moura e lançou-a dentro e logo atrás caíram os dois baús, acompanhando estes movimentos das seguintes palavras:
— Aí ficas encantada, filha minha, até que haja quem neste sítio semeie salsa regada com água do maná, cresça e floresça.
Disse estas palavras e tudo desapareceu. O pobre homem ficou por muito tempo a pensar nas palavras do mouro. Ele conhecia perfeitamente a salsa, planta da família das umbelíferas, mas do maná só tinha o leve conhecimento do que ouvira contar a sua mãe por ocasião do povo hebreu andar pelo deserto. Viu logo o pobre que a palavra maná deveria ser tomada em sentido cabalístico, e neste intento, apenas nasceu o sol, dirigiu-se a uma horta e dela trouxe uma boa porção de salsa que plantou em redor da fonte. Em seguida foi à próxima igreja e pediu ao pároco lhe benzesse uma boa vazilha cheia de água. Logo que a água foi benta pôs-se a regar a salsa com esta água que, pelo facto de ser benta, devia ser miraculosa, como miraculoso fôra o maná caído no deserto.
Em pouco tempo começaram a aparecer os primeiros botões da salsa e a manifestar-se a sua florescência. Desse tempo em diante o homem não desamparou a fonte. Na primeira noite em que se manifestou completa a florescência da salsa, ao dar as doze horas, apareceu a moura, saindo das águas da fonte ainda mais bela do que Venus evolando-se da espuma do mar. A jovem agradeceu ao pobre o desencantamento e entregou-lhe os dois baús cheios de ouro e de pedras preciosas, que do fundo da fonte a tinham acompanhado até sair da mesma.
O pobre homem transportou durante a noite todos os valores para o fundo de um oculto barranco, e daí tirava o dinheiro necessário para pagar as compras dos grandes prédios que todos os dias fazia com verdadeiro espanto de toda a gente.
Casou em seguida e teve muitos filhos que se tornaram conhecidos na província do Algarve e até na corte onde casaram com damas do Paço, que lhes deram uma descendência numerosa.
- Source
- OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve Loule, Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.261-262
- Place of collection
- Luz, LAGOS, FARO