APL 2252 Os Três Sapinhos

Quando os reis afonsinhos (D. Afonso V?) andavam em guerra com os moiros da Moirama no reino de Marnócos (Marrocos), foi lá batalhar um homem da freguesia de Eiriz, chamado Frutuoso das Donas, que viveu e morreu na casa do Viso, que ainda hoje existe na dita freguesia.
 Este bom homem teve a infelicidade de lá ficar cativo de guerra e foi depois levado como escravo para o palácio do rei da Moirama, que o empregava no trabalho da lavoura, atrelado de parelha com uma mula ao cambão do arado.
 Nas lamentações da sua triste vida o pobre cativo apenas soltava este queixume: «Ai terra de Eiriz, terra de Eiriz, que te não torno a ver!»
 A filha do rei, que um dia atentou nas suas palavras, ficou muito surpreendida com elas, e muito apressada e cheia de alegria, correu a casa, levar ao pai a boa nova:
 — Meu pai, meu pai, o cristão que trazemos ao arado é de Eiriz!
 O velho rei, que vivia muito triste, porque era cego e proscrito, ficou contentíssimo com a notícia e mandou logo chamar o pobre escravo, que se apresentou cheio de medo na sua real presença.
 — Acabam de dizer-me que és de Eiriz. Será isso verdade? — perguntou o rei, ansioso pela resposta.
 Ao que o Frutuoso respondeu:
 — Saiba vossa real majestade que sim, Senhor!
 — Conta-me então como é a igreja da tua freguesia.
 Ao que o Frutuoso respondeu, dando os sinais todos certos da igreja de Eiriz.
 Muito satisfeito com a resposta, perguntou mais o rei:
 — E conheces a cidade da Citaina? E a Lameira de Redundo? E a Cancela do Hortal? E o lugar de Celeirô?
 — Oh! se conheço, Senhor!
 — E conheces umas ervas de virtude chamadas abróteas, de que há muito em Celeirô, ao pé do Penedo broqueado?
 A tudo Frutuoso respondeu muito acertado, dando de tudo os sinais certos. Pois se ele era de Eiriz!
 Então o rei foi a um cofre fechado a sete chaves e tirou dele uns sapatos novos que pareciam mesmo feitos para o Frutuoso e, entregando-lhos, disse:
 — Tu toma estes sapatos, com que te vou mandar a Portugal, à tua terra de Eiriz, mas não os calces sem chegar a Celeirô. Aí passearás com eles por cima das abróteas, andando dum para outro lado até as solas ficarem verdes com o suco das ervas que pisas; depois do que os deves tirar e recolher dentro desta saquinha, que te dou, e na vinda desce pela Cancela do Hortal, onde encontrarás três sapinhos, introduzidos dentro da boneca da cancela. Trata logo de os apanhar, o que há-de ser tarefa bem custosa, porque os sapinhos são muito saltões e bravios, mas se mos trouxeres, tanto tu como todos nós havemos de ser muito felizes.
 O Frutuoso aceitou muito contente a missão de que o rei o encarregou, dizendo que tudo havia de cumprir.
 Então o rei mandou logo aparelhar um navio que o trouxe a Portugal, mas recomendou-lhe com todo o cuidado que nem à ida nem à vinda entrasse em sua casa nem se desse a conhecer, devendo voltar logo ao navio, que ficava à sua espera.
 Recebidas estas ordens lá seguiu para Portugal o pobre Frutuoso, muito alegre por tornar a ver a sua terra de Eiriz.
 Chegado que foi a Celeirô fez tudo o que lhe recomendou a cego rei mouro e, recolhendo os sapatos e os sapinhos dentro da saquinha, fez-se logo de vela para o reino de Marnócos, na Moirama.
 Quando chegou ao palácio foi recebido com muita alegria pelo rei moiro que, pegando na saca, tirou dela os sapatos com as solas verdes das abróteas com que esfregou os olhos, recuperando logo a vista, sendo grande o seu contentamento e muitas as suas lamentações pelos maus tratos que dera ao Frutuoso e pela aturada ignorância em que vivera de que o seu cativo era de Eiriz.
 O rei contou então que tinha sido governador da cidade da Citaina em Sanfins, mas que tendo sido vencido e cego nas guerras contra os reis de Portugal, foi por eles desterrado para a Moirama de Marnócos, deixando em Monte Córdova as suas pobres filhas convertidas e encantadas em três sapinhos, vagueando desprezivelmente pela Lameira de Redundo, logrando só agora a ventura de as ver junto de si.
 Em seguida o rei pegou nos sapinhos com muita ternura e levou-os à sala mais rica do seu palácio, onde eles se transformaram em três meninas novas, muito bonitas, que começaram a saltar de contentes, havendo uma grande festa de muita alegria em toda a Moirama.
 O rei, então, em recompensa do grande serviço que lhe devia, chamou o Frutuoso a outra sala do palácio, no centro da qual havia um monte de dinheiro e encheu-lhe os bolsos, dizendo que estava forro e podia seguir para a sua terra.
 Efectivamente, Frutuoso voltou para Eiriz, onde viveu rico e feliz por muito tempo, usando os trajos da Moirama, comprazendo-se sempre em contar as suas aventuras da Moirama.

Source
VASCONCELLOS, J. Leite de Contos Populares e Lendas II Coimbra, por ordem da universidade, 1966 , p.736-738
Year
1903
Place of collection
Eiriz, PAÇOS DE FERREIRA, PORTO
Collector
Alberto Ferreira Brandão (M)
Informant
Manuel Lagarteira (M), Eiriz (PAÇOS DE FERREIRA),
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography