APL 1567 Lenda em Verso da Moura Cássima

Publicando a lenda em verso da moura Cássima, devida ao poeta ilustre, o sr. J.P. de Sousa Macário, tenho apenas por intuito mostrar a deficiência desta, certamente atribuível à falta de informações.
 É fácil demonstrar que a lenda em verso está manca, e, em alguns pontos em desarmonia com a urdidura de uma lenda.
 Um dos pontos que se me oferecem de difícil digestão é aquele em que o governador do castelo de Loulé pede ao carpinteiro que lhe vá desencantar as filhas, mandando-o de África à Europa a pé com um par de alforges às costas. Isto não é possível, e jamais quando o governador era um sábio em magia.
 A lenda por mim publicada e que foi rigorosamente apurada, depois de ter ouvido pessoas autorizadas neste ponto, é mais conforme com esta qualidade de assuntos.
 Realmente parece um pouco disparatada esta incumbência do governador, sem ao menos providenciar acerca dos meios de transporte do pobre carpinteiro.
 Igualmente me parece pouco provável que o carpinteiro, em seguida ao desencantamento das mouras Zara e Lídia, as levasse para sua própria casa. Nem as mouras se sujeitariam de bom grado a aceitar aquela oferta, nem o carpinteiro ousaria fazer-lhes esse convite. Não as mouras, porque não poderiam com bons olhos ver a infame, que de um golpe cortara a sua irmã uma perna, forçando-a a viver eternamente encantada numa fonte; e nem o carpinteiro ousaria levar para sua casa duas jovens mouras, gentis e formosas sabendo que tinha uma esposa estremamente desconfiada e ciosa.
 A lenda em verso supõe dois factos quase impossíveis: a ignorância do governador e a extrema confiança de uma mulher casada, em demasiado ciosa.
 Quem acredita que a mulher do carpinteiro consentisse que o marido fosse a África, um país inimigo, simplesmente para acompanhar duas belas mouras?
 Seria primeiramente necessário que ela se deixasse morrer, quando quatro desmaios e as lágrimas dos filhos o não demovessem do intento.
 Embora a lenda seja um conto puramente fantástico tem de obedecer na sua urdidura a uns certos princípios, que não podem ser postos de parte. E por isso, quando me resolvia publicar a lenda da Fonte Cássima, empreguei todos os esforços, humanamente possíveis, para lhe dar o seu carácter primitivo. Para obter esse resultado não só consultei as pessoas idosas desta vila, mas do sítio onde a fonte está situada, e neste trabalho muito me auxiliou o meu velho amigo, o exr sr. José Francisco Cássima, escrivão do juízo de direito e natural da Cássima, onde foi buscar o apelido.
 Não quero com estas minhas observações tirar o merecimento à poesia, e apenas lamento que o ilustre poeta não tivesse conhecimento da verdadeira lenda, porque então teria mais valor o seu belo trabalho.
 Segue-se a lenda em verso.

Agora que seguimos para Faro
E de Loulé passamos não distante
Ao espírito é justo darmos tréguas
Tomando distração mais deleitante.

Dos meus tempos da bela mocidade
Vou contar-te uma história ali passada
De uma formosa moura muito jovem
Que, em Loulé, está em fonte transformada.

E esta que vou contar-te foi contada
Por gente de Loulé e mesmo a mim
E afirmam que ainda a moura ali existe
Ora presta atenção, a história é assim.
Quando ainda aqui no Algarve a moura gente
Tinha o seu predomínio bem firmado,
Um mouro muito rico, e já viúvo
Era AlcaIde em Loulé, mui respeitado.

Tinha esse mouro três formosas filhas
A quem prezava como a luz do dia
Por elas era todo o seu desvelo
Qual delas mais prezava, nem sabia.

Era Zara a mais velha, e tinham apenas
Cinco lustros não mais, bela em figura
E depois LúIia e Cássima ambas jovens
De peregrina e bela formosura.

Possuía este mouro, dos encantos,
O dom aprimorado da magia
Arte que no Alcorão tinha estudado
E de Mafoma em leis que possuía.

Quando Peres Correia sobre o Algarve
Em contínua conquista ia avançando
E os mouros em derrotas sucessivas
Iam por toda a parte fraquejando.

Tão rápido Loulé fora atacado
Com tão audaz e estranha valentia
Que o pobre mouro, o Alcaide, para salvar-se
Co’as filhas retirar-se não podia.

Para as salvar da morte e dos maus tratos
Crente de que mui breve ali voltava
Lembrou-se dos recursos da magia
Extrema garantia que encontrava.
Com elas marcha trémulo e apressado
Fazendo-lhes saber que p’ra salvá-las
Preciso era, no vale que possuíam
Da vila, um pouco fora, ir encantá-las.

Elas choravam lágrimas sentidas!
Chorava ele também a sua sorte!
Mas o momento urgia e mais demora
Era a vida trocarem pela morte.
Já perto da vila
Nas serras fronteiras
Retumbam os ecos
Das tubas guerreiras.

Sinal era aquele
P’ra luta sangrenta
Mas nem de a aceitar
Alguém ali tenta.
E o mouro precisa
Fugir apressado
As filhas contempla
Chorando a seu lado.

Vamos! coragem, filhas da minha alma
É chegado o cruel triste momento
Preciso é sujeitar ao sacrifício
Dando o final adeus do apartamento.

Brevemente virei desencantar-vos
Não vos perturbe aqui da morte a ideia
Que o noso q’rido lar há-de ser nosso
Não ficará entregue a mão alheia.

E dando o extremo a braço, em despedida
Um beijo em cada uma deu na fronte
Com a vara de condâo nelas tocando
Tornou-as transformadas numa fonte.

E curvou-se, escutando, e nem ao menos
O mais leve gemido ali ouviu
E como alucinado, espavorido,
Para Tanger sem demora se evadiu.
As lágrimas das três castas donzelas
Formando tão somente uma corrente
Que no vale entre as flores mais singelas,
Passa branda e subtil, mansa e dolente.
São águas tão subtis, frescas, tão belas
Que por muito que seja o sol ardente
Todo o espaço que banham com doçura
Se conserva coberto de verdura.

Fica a fonte ao sopé de um lindo outeiro
Em frente a um vale formoso e amenizado
Onde, em camaradagem, o vimeiro
Vegeta da nespreira e o olmeiro ao lado.
Ali, a amendoeira e o pessegueiro
E o chorão sobre a relva recurvado
Tudo forma um jardim às três donzelas
Regado com o licor que lhe vem delas.

Ali, na Primavera e sobre as flores
As abelhas. zumbindo o mel apanham
E os rouxinóis, suavíssimos cantores
D’out raw aves os coros acompanham!
E as borboletas mil, de várias cores,
Das flores doce néctar desentranham
E tudo assim nas ledas madrugadas
Dão delícias às mouras encantadas.
Um dia morre
Outro amanhece
E o pai das mouras
Não aparece!

E o mouro chora
Sentido pranto
Por ter as filhas
Inda no encanto!
Mas em Loulé
Não pode entrar
Para as donzelas
Desencantar!

Que todo o Algarve
Foi conquistado
E por cristãos
‘Stá ocupado.
Um dia quando em novas correrias
Os mouros outra vez no Algarve entraram
E que, posto que em vão de retomá-lo
Foi apenas loucura o que tentaram.

Como reféns levaram prisioneiros
E em Tânger os venderam como escravos
Uns eram de Loulé, e outros de Silves
E até alguns de Faro, outros de Lagos.

O mouro, o pai das jovens encantadas
Quis ter em seu poder um de Loulé
Que nele de salvar as suas filhas
Pôs toda a sua esp’rança e a sua fé!

Começou por tratá-lo com carinho
Do cristão toda a estima cultivando
E se bem de Loulé ele sabia
Também foi cautamente investigando.

Entre diversas coisas que indagava
Não se esqueceu de ver se conhecia
Um vale junto a Loulé arborizado
E afonte que no vale também havia.

De tudo o prisioneiro, seu escravo
Cabal conhecimento lhe mostrou
E o mouro no cristão bem confiando
Contente desta sorte lhe falou.

— Amigo, foi Loulé a minha pátria
Ali nasci, e dias venturosos
Gozei entre carinhos e delícias
Da infância e juventude os doces gozos.
Ao lado ali da minha companheira
Passei anos de amor e de ventura
Mas a morte roubou-a dos meus braços
Nem sempre o bem na vida assim nos dura.

Ficaram-me três filhas mui formosas
Que não pude trazer para aqui comigo
Deixei-as em Loulé, e só tu podes
Vir-mas aqui trazei; meu bom amigo.

Se juras bem cumprir o alto serviço
De que preciso muito encarregar-te
Alé de te dar plena liberdade
Um cofre de riquezas juro dar-te.

—Ao meu dispor me tens, por vida minha
Juro de bem cumprir o teu pedido
E de voltar aqui dando-te provas
De que foi com esmero bem cumprido.

— Pois bem, vou revelar-te um meu segredo
Conheces bem a fonte dos encantos
Ali estão minhas filhas encantadas
Da fonte a águas puras, são seus prantos.
Só tu podes lá ir desencantá-las
E trazê-las aqui acompanhadas
Com isso me darás toda a alegria
Quando as vir juntas a mim resgatadas.

Cumpre, livre serás e muito rico!
— Cumpro, juro afé de bom cristão
Podes afoitamente confiar-me
A vara da magia, do condão.

— Pois bem, toma estes pães, são três, atende:
Cada qual tem um nome em si gravado
Cada nome pertence a cada uma
Cada qual de por si, será chamado.

Guarda-os bem, que ninguém possa tocar-lhes
Se os perdesses seria o meu tormento
De 5. João na véspera, à meia noite
É a hora de quebrar-se o encantamento!

Vai, parte, juro por vida minha
Que se cumprires bem o meu pedido
Além de te ficar sempre obrigado
Saberei bem cumprir o prometido.

— Hei-de cumprir. Prometo e também juro
Pela Cruz, pela Fé, e pelo meu Deus
Que desejo salvar as tuas filhas
E até à volta, eu parto, adeus, adeus.

**

De Tânger para o Algarve sem demora
Livre o cristão tomou logo o caminho;
A seus olhos surgiu nova aurora
Ao ver da escravidão quebrado o espinho.
Da esposa que idolatra e muito adora
Vai de novo gozar todo o carinho
E louvando ao Senhor a felicidade
Promete dar às mouras liberdade.

E dia e noite sempre caminhando
Em Loulé pôde entrar sem nenhum perigo.
E a esposa entre seus braços apertando
Bem dizia o seu lar, seu leito amigo;
Depois, por toda a casa procurando
Onde esconder os pões que trás consigo
Tanto se preocupou na sua empresa
Que excitou à mulher toda a estranheza.

E assim dias passaram de alegria
Dourando dos consortes a existência
Mas a mulher sentia, dia a dia
Da alta curiosidade a impaciência
Desejando saber o que seria
Que o marido com tanta diligência
Numa caixa fechou, e, em seu critério
Quis devassar al fim esse mistério.

E assim o fez, um dia que o marido
Foi passear à fonte dos encantos
E ali se demorava condoído
Das mouras, escutando os ternos prantos
Ela pôde afinal ter conseguido
Abrir a caixa, remexer-lhe os cantos
E ao encontrar os pões num só pegando
Um golpe c’o uma faca lhe foi dando.

Ficou cheia de susto, surpreendida
Quando viu do pão sangue escorrendo
Da sua indiscrição arrependida
Dos outros dois, no meio o foi metendo;
Na fonte a linda Cássima ferida
Com dor profunda ouvia-se gemendo
Porém o homem que as mouras escutava
De qual fosse o motivo nem pensava.

Chegou de Junho o destinado instante
A noite estava linda e sossegada!
E a lua, em pleno azul, com luz brilhante,
Que em cheio tinha a fonte iluminada
E quando o sete-estrelas cintilante
Marcava meia noite na aprumada
Pronto, com os três pães que bem guardou
O homem, cada moura assim chamou:
Lídia... surge d’aí... quebre-se o encanto...
Bateu com o pão na fonte, e a moura bela
Qual mágica visão, cessando o pranto
Sem estrondo ou rumor saiu dela!
Zara veio também, Cássima no entanto
Por muito que chamou, gritou por ela,
Não lhe pôde quebrar o duro fado
Porque o pão do seu nome foi manchado!...

Era Cássima linda, a mais formosa
Das três mouras que estavam neste encanto
E alificou para sempre a desditosa
A fonte alimentando com o seu pranto
Zara e Lídia, qual delas a mais chorosa
Afonte investigavam com espanto
Por Cássima chamando, só ouviam
As lágrimas na fonte que gemiam.

Por fim, tristes, cho rosas e magoadas
Por deixarem ali a irmã querida
Mas no poder do pai ainda esperançadas
Não julgando de todo a irmã perdida
Do seu libertador acompanhadas
Para casa dele foram ter guarida
Té que p’ra Tânger postas em jornada
Do pai na habitação deram entrada.

Ali as recebeu o pai choroso
Oposta impressão ele sentia
Para ver as filhas, uma, era de gozo,
Por Cássima não ver, ele gemia
Ora, para o cristão falava iroso
Ora por gratidão lhe agradecia
Té que afinal contou-lhe o seu cativo
Qual foi do mal de Cássima o motivo.
Sabia-o, revelou todo o segredo
O crime da mulher ter golpeado
De Cássima o pão, que bem seguro
Julgava tê-lo em sítio resguardado.

Então reconhecendo o pai de Cássima
Do seu leal cativo afidelidade
Deu-lhe todo o tesouro prometido
Eacartadealforriaea liberdade.

E o cristão regressou à sua terra
Comprouafonteeo lindo vale ao pé
E de Cássima a história foi contando
A todos que viviam em Loulé.
E ainda agora
Da moura a história
Todos a guardam
Bem na memória.
E a bela fonte
De água gelada
Por muita gente
É visitada.
E há quem afirme
Com fé leal
Ter visto Cássima
Por entre o vale!

E há mais inda quem diga com firmeza
Que nas formosas noites de luar
De 5. João na véspera à meia noite
Ouve-se a linda moura a suspirar.

Junto a Loulé
Ainda hoje dura
Da moura Cássima
A fonte pura.
E o vale ostenta
Por muiformoso
Risonho aspecto
E deleitoso.
Relvas viçosas
Frescas boninas
Nadam em águas
Bem cristalinas.

Árvores frondosas
O estão orlando
Mimosos frutos
Alimentando.

Quem a Loulé
For algum dia
Verá do vale
Essa magia

E se for à fonte
Água beber
Também se ilude
Ouvir gemer.
Canto amoroso
Das ternas aves
Onde erguem cantos
Meigos, suaves.

E se tiver
Bem de memória
Da linda Cássima
Sabida a história.
Por isso a crença
Que ainda hoj e dura
Dá o nome «Cássima»
À fonte pura.
 
 É já tempo de deixar a vila, e seguir no mesmo estudo pelas freguesias do concelho.

Source
OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve Loule, Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.91-102
Place of collection
LOULÉ, FARO
Narrative
When
19 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography