APL 2809 Lenda da Serra da Nó
Esta lenda foi-me contada pessoalmente por meu pai, que Deus tenha. Conto-a tal qual lha ouvi, pois a saudade tem o estranho poder de avivar a memória.
Olhei-o melhor. Era um homem de idade indefinida. Olhar profundo. Cabelos negros e muito compridos. Talvez mesmo exageradamente compridos. Perguntou-me apenas:
— Que procura o senhor?
A voz tinha algo de rouquidão, que a tornava singular. Se não parecesse duvidar dos meus sentidos, diria que a pergunta ficara ecoando no espaço. No espaço e dentro de mim.
— Sim... que procura o senhor?
E antes mesmo que eu pudesse pensar em qualquer resposta, o vulto estranho e inesperado ajuntou:
— Busca decerto a entrada para o castelo soterrado na Serra, onde existe um tesouro incalculável... Não é?
Fiz que sim com a cabeça, embora nada soubesse ainda acerca do tal tesouro maravilhoso do castelo soterrado... Eu passava ali por acaso, atravessando a serra da Nó, a caminho de Viana do Castelo e extasiava-me diante da paisagem magnífica que se oferecia a meus olhos. Nada mais. Porém a aparição repentina daquele homem, que me parecera surgir do próprio espaço, punha interrogações no meu cérebro e obrigava-me a olhar para ele, meio confuso, meio intrigado...
Aliás, o homem deu perfeita ideia de compreender o meu estado de espírito (entre a dúvida e o receio), e apressou-se a esclarecer:
— Vivo aqui a maior parte do ano. Por assim dizer, já faço parte da paisagem...
Riu. Mas a sua risada soou falsa. Era evidente a sua perturbação. Eu voltei a olhar em frente, a tentar descobrir uma saída — pois, confesso, gostaria de fugir àquele encontro...
Então o homem avançou para mim. Deliberadamente. Impulsivamente.
— Não vá, peço-lhe!... Não entre!... O senhor é novo… pode ter ainda muitos anos de vida... Mas se quiser entrar no castelo, perder-se-á para sempre! Para sempre!
Olhei-o sem o compreender. Todavia, ele deve ter pensado que esse olhar era um desafio. Um desafio e uma ameaça. Por isso mesmo, talvez, gritou:
— Espere!... Espere, senhor!... Eu vou contar-lhe a história do Castelo da Serra... Depois resolverá!
E ali mesmo o desconhecido me contou a história que te vou contar.
Em tempos que já vão longe, reinava naquela região o poderoso Abakir, jovem mouro conquistador de terras e de corações. A fama da sua invencibilidade abria-lhe sempre o caminho do desejo. Não havia terra que ele ambicionasse — que não acabasse por conquistar. Não havia mulher de quem ele se enamorasse — que não acabasse por ser sua!
Dizia-se que o seu castelo, erguido em plena serra da Nó, era o mais sumptuoso de todo o Mundo, tal a gama de riquezas que albergava.
Um dia, quando Abakir cavalgava alegremente pela serra, no regresso de mais uma batalha vitoriosa, viu, enlevado, a figura grácil de uma simples pastora de gado, que lhe fez bater mais forte o coração. E que ficou retida no seu pensamento até chegar ao castelo. E que o obrigou, no dia seguinte, a ordenar:
— Vão buscar aquela pastora que encontrámos ontem ao fim da tarde... Depressa!... Tragam-na à minha presença!
E os seus vassalos, fiéis e amedrontados, não demoraram a cumprir as ordens. Dentro de pouco tempo, a bonita pastora estava de novo diante dos olhos enamorados do jovem rei mouro.
— Quero que fiques aqui comigo para sempre!
Ela olhou-o, altiva, orgulhosa.
— Eu não sou o que vós pensais, Senhor!... Deixai-me voltar para a serra... É lá que eu vivo!
Por instantes, o olhar de Abakir luziu colericamente.
— Que dizes? Recusas o meu convite? Não compreendes que é o teu próprio rei que te oferece uma vida melhor e mais bela?
A linda pastora limitou-se a encolher os ombros.
— Tal vida não me interessa, Senhor. Prefiro continuar como sou.
Lentamente, ele adiantou-se.
— Escuta... Pensa bem... Não vês que estou enamorado de ti?... Que te posso fazer feliz? Mil vezes feliz?
— Ou mil vezes desditosa, Senhor!
Ele parou. E enfureceu-se.
—Estúpida! Que queres dizer com isso? Atreves-te a criticar o teu rei e senhor? A mim, Abakir, a quem nunca mulher alguma ousou dizer que não?
Com voz firme, sustentando o olhar irado do jovem mouro, a pastora respondeu calmamente:
— Ouso, sim! Não tenho medo das vossas ameaças.
Abakir perdeu a paciência. Em altos berros, mandou que encerrassem a pastora numa das torres do castelo. Ela não mais recobraria a liberdade, enquanto não lhe pedisse perdão!
E o tempo foi passando, hora a hora, dia a dia, semana a semana. Mas a pastora rebelde e intimorata não pensava sequer em pedir desculpa do que dissera.
E foi o jovem rei mouro que acabou por ceder. Certa noite, voltou à presença da sua prisioneira.
— A tua lembrança é mais forte que a minha vontade... Venceste!... Ofereço-te o meu amor... Que queres tu de mim?
A moura cruzou os braços e fitou-o bem no fundo dos olhos.
— Quero que te afastes das tuas outras mulheres. Ou serei a única mulher para ti, ou não serei tua.
— Aceito! De hoje em diante, serás a única. Vou já dar ordem para que te libertem!
Ia sair. Mas ela reteve-o por um braço.
— Espera! Ainda não disse tudo... Não basta que te afastes das outras mulheres... É preciso também que me jures que não mais pensarás em qualquer outra. Assim o prometi a mim própria, quando te vi pela primeira vez... Juras?
— Juro!
E desse modo se selou para a eternidade um juramento de amor.
Abakir cumpriu todas as suas promessas. A partir dessa noite extraordinária, a bela pastora transformou-se em senhora e dona do próprio reino, dominando o coração do rei. E as princesas da região transformaram-se em suas aias...
Porém, um perigo enorme se levantava no horizonte em fogo. Os cristãos, nas suas correrias, na sua ânsia de conquistas, vinham avançando, de terra em terra, até chegar ali, aos contrafortes da serra da Nó.
Abakir recebia a todo o momento notícias tristes e desanimadoras. Aqui e além, uns rendiam-se, outros fugiam. A maldição caíra sobre a moirama! Praticamente, poucos restavam. E entre esses poucos, ele, Abakir.
Resolveu, portanto, reunir a sua companheira e os amigos mais dedicados.
— A hora é trágica! Alá, certamente por culpa nossa, deixou de nos proteger! As últimas notícias tiram-me todas as esperanças. Em breve, os cristãos chegarão também aqui, para nos matar, e conquistar as nossas terras e os nossos tesoiros!... Aqueles que quiserem partir podem fazê-lo, levando tudo o que lhes for possível... Eu ficarei! Não posso pensar em ceder diante de um inimigo que tantas e tantas vezes consegui derrotar... Portanto, repito, eu ficarei!
— E eu ficarei também!
A voz da que fora pastora linda e hoje era linda soberana foi a única que se escutou, no meio do silêncio sepulcral. Abakir sorriu. Já o esperava...
Quase solitários no castelo da serra da Nó, ambos continuaram a viver o seu grande amor terreno. E sobre eles avançavam, tornando-se cada vez maiores, as sombras do inimigo, que já não encontrava obstáculos à sua frente.
Mas quando deixava a dormir a sua bem-amada, o jovem rei mouro entregava-se à consulta e estudo de antigos e pesados alfarrábios. O sono não mais estivera com ele. Sentia que a vida era curta, e queria aproveitar todos os momentos de vida. Os bons e os maus.
Até que chegou a hora decisiva. Já se ouviam, perto, os gritos triunfantes da vanguarda cristã, que abria caminho para a conquista de mais um castelo: o famoso castelo da serra da Nó, onde reinava ainda aquele que fora o grande, o poderoso, o invencível Abakir!
O jovem rei mouro enlaçou-se com a que escolhera para sua única esposa, num derradeiro abraço. E as suas bocas uniram-se no último beijo...
Depois, pegou no Alcorão, que se encontrava junto de ambos. Solenemente, vagarosamente, quebrou os sete selos do Livro, abriu-o, e começou a ler. Lentamente. Profundamente. Leu, e prostrou-se por sete vezes, beijando a terra. Por sete vezes despediu-se da vida e do mundo. Por sete vezes amaldiçoou o inimigo, que sentia muito cerca de si...
E por fim, com a mão esquerda, tal como aprendera, fez um sinal de magia sobre a sua bem-amada e sobre o castelo, enquanto pronunciava baixinho palavras misteriosas...
Quando os cristãos vitoriosos chegaram de rompante, já não encontraram o castelo. Nem encontraram a linda moura. Nem encontraram Abakir, o jovem rei sucumbido... Não havia vestígios de qualquer deles em toda a serra da Nó, entre Ponte do Lima e Viana do Castelo. Mas os conquistadores sabiam que ali tinha existido um castelo, onde viviam uma rainha moura, bela por excelência, e um rei mouro, que durante muito tempo fora invencível. Daí nasceu a suposição de que tudo desaparecera por feitiço do jovem Abakir. E tal como então se supunha — e ainda hoje se supõe — se alguém conseguir penetrar pela gruta que dá entrada para o castelo soterrado, ficará senhor de uma fortuna enorme. Toda a riqueza do imenso tesoiro escondido no Castelo da Serra da Nó!
E diz-se que nas noites de luar se tem visto uma figura diáfana de mulher, reclinada em qualquer rochedo ou passeando pelas cristas da serra. Chamam-lhe a Guarda do Castelo. Ai daquele que a seguir, arrastado pela tentação! Não mais voltará à superfície da terra...
E diz-se também que o próprio Abakir ali ficou enfeitiçado, por sua própria vontade, para defender um amor que o tempo não pode matar. E que às vezes aparece de improviso, sob as mais variadas formas, aos que tentam descobrir o mistério do castelo encantado...
Verdade?... Fantasia?... O meu interlocutor dessa tarde na serra da Nó não me soube responder. Ou, melhor, não me quis responder. Quando lhe falei directamente no assunto, pediu-me licença, delicadamente, para se afastar por um instante:
—Volto já...
Afastou-se — e não mais voltou. Procurei-o — e não o encontrei. Mais adiante, perguntei a uns pastores se o tinham visto passar. Disseram-me que não. Mas olharam-me desconfiados e ficaram a murmurar entre si.
Desisti e segui viagem, sem bem saber porquê. Algo de estranho me atraía dali para fora. Já passaram alguns anos e não voltei à serra da Nó. Porém não consegui esquecer esse episódio. Nem esquecer, nem explicar.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 11-13
- Place of collection
- PONTE DE LIMA, VIANA DO CASTELO
- Informant
- João José Marques (M),