APL 684 A Moura de Silves
No tempo dos Mouros, a cidade de Silves era a perola do Algarve, florido á beira-mar. Á roda, os campos cobriam-se de flores brilhantes; uma relva muito verde estendia-se muito verde, como um mar sereno, á sombra das amendoeiras, que a faziam mais verde ainda; as florzinhas brancas e rosadas cahiam uma a uma, sem ruido, em um noivado, sobre a relva macia. Mãos estranhas bordavam este brocado sublime de sol e de cores.
Era neste chão de maravilha que a cidade moura se debruçava, e dir-se-hia que ella, como quem olha para um lago, procurava a sua imagem no fundo das aguas quietas.
Corria por alli um rio de mansinho para o mar. Ia sereno, para não acordar no silencio da paisagem a paz da cidade adormecida. As arvores espelhavam-se-lhe na agua mansa, aconchegavam-no a abafar-lhe o ruido nas pedras do leito. E do meio de ellas, por entre ellas, subia no cai, como palmeira no deserto, via-se no espelho polido e brilhante do rio, o castello esguio da cidade.
O ceu era sempre azul, um azul de pennas de pavão real. E ao longe, por cima das alfarrobeiras carregadas de flor, avistava-se o mar, como um lago enorme azul também de um azul dourado, manso e cheio de sol. Passavam de vagar barquinhos brancos, de vellas ponteagudas, a lembrarem andorinhas voando. Tudo longe em um sonho...
*
Depois que os Mouros se foram embora, o azul do ceu de Silves ficou mais azul: o sol brilhava mais bello. No cimo do castello da cidade tremulava o pendão dos Christãos. Em volta os mesmos campos agasalhavam as mesmas flores, o mesmo rio manso, e, ao longe, passavam ainda os barcos de vellas brancas a subirem como anjos para o céu.
No arco fundo, onde se rompia nas muralhas uma das portas da cidade, surdiu o vulto branco de um cavalleiro christão Não vinha em ar de guerra, com o elmo de viseira cahida e o escudo alçado no braço. Cobria-o simplesmente, muito em boa paz, uma tunica de linho branco; a cruz da Ordem do Templo abria-lhe na alvura da vestimenta uma chaga rubra; e os cabelos loiros poisavam no ombro, como reflexos de calix sagrado sobre a toalha do altar.
Vinha o cavalo a passo de cortesia. Jaês leve, freio de prata, os nervos do animal tremiam, na impaciencia produzida pelos vagares da marcha. Apenas desembocou da porta e galgou a ponte do fosso, o cavalleiro roçou os acicates na ilharga da montada, que partiu em garboso galope. Atravessou o rio e correu por essas terras perfumadas, entre os rios de Silves e de Algoz. Galopava lepido o cavallo, negro con’o a noite. Ia jovial o cavalleiro.
Era Almendro, o galanteador. Inventor de trovas, á maneira amorosa dos cantores errantes, que andavam de castello em castello a cantar suas canções, elle deliciava nas festas galantes de Silves as damas da cidade. Aquelle cavallo negro, que o levava, uma dama lho offerecera gentilmente num torneio de cavallaria. Almendro envaidecia-se da sua belleza loira e do seu talento poetico, em que as damas se baloiçavam como borboletas numa flor subtil.
Elle ahi vae pelos campos fora, á aventura. Voavam ao vento, como bandeiras, pedaços da tunica branca do cavaleiro, larga e sôlta, deixando atrás de si na carreira um rasto de nuvem, que se desfaz.
Almendro levára consigo o cão de caça mais famoso de quantos se conheciam por aquellas terras. Era seu, queria-lhe muito, todos lho invejavam. Não havia no caminho cama de lebre, que elle deixasse de encontrar; nem coelho esperto que não deitasse fóra da lura, ou javardo que não pressentisse.
Nesse dia correram montes e valles, uma corrida sem descanso nem comida. Almendro sentia-se impellido por estranha força, que o penetrava todo e o fazia arder no desejo de aventura e na vertigem da velocidade. Apenas se detinha quando se apeava e recolhia a caça, que o cão lhe abocava, mas, depois que ella o incommodava já na carreira, escondeu-a debaixo de um penedo, entre outros penedos, aonde não era facil ir encontrá-la quem a lá não soubesse; — dois pinheiros, esguios como columnas de bronze, marcaram-lhe o esconderijo, não fosse Almendro perdê-lo do caminho.
Continuou a corrida. Correu, correu, tanto correu que o cão se cansou, e de fatigado o pobrezinho se deixou ficar para trás. Só o cavalo era rijo como o vento. E o cavalleiro continuou só adeante, sem o cão, a carreira para o desconhecido.
*
Corria sempre. Para trás, para lá de Silves que se não via, escondida nas amendoeiras, o ceu misturava o azul puro com a purpura dos faustosos dias de festa. Havia nuvenzitas brancas, pequeninos fumos de nuvem, sobre as montanhas; e as fumaradas tingiam-se de papoulas, pondo á volta no azul celeste uma corôa de novelos de lãs a arder. Entre as nuvens redondas, via-se o ceu vermelho de romã. Almendro olhava aquelle ceu de fim do dia, sem deter o cavalo, coberto de suor. Já não via o sol. Parecia-lhe que se tinha aberto o ceu em uma enorme romã.
Anoitecia apressadamente. Só então ele notou que se affastára demais e ia ser surprehendido pela noite. Não déra pelas horas, corrêra a tarde inteira, atrás de mysterio que o attrahia.
De repente, deu com um loureiro espesso, muito fechado de ramagem, as folhas a brilharem como lanças de aço á ultima luz do dia. Já o tamanho da arvore e a sua mancha escura, que avultava na penumbra, lhe chamavam a attenção, quando divisou entre a ramaria um rosto de donzella, a sorrir-se para elle. Aquelle sorriso foi um nascer de sol na esperança do christão Almendro. Ele, que até alli não encontrára, desde Silves, a mais bronca serva, ficou admiradissimo de vêr no descampado áquella hora, terrifica na charneca, uma donzellinha, tão só e tão risonha, tão sem medo de elle. Phantasias de cavalleiro lhe encheram logo a cabeça em impetos de grandesas, e a galanteria dos seus habitos enthusiasmou-o com a surprêsa.
O cavalo empinava-se, ao retesarem-lhe as bridas num sacão repentino. Caracolava, enrolando-se, no mesmo chão. E, airoso, gentilmente, correspondendo ao sorriso da menina, Almendro fallou-lhe.
— Quem sois, risonha donzella, que me appareceis, quando o sol me foge?
Ella, como resposta, encolheu os ombros numa gargalhada, que tinha no silencio da charneca, ao sol posto, o som fino de marimbas de crystal.
— Que alma errante sois neste montado, que me faz medo a mim? — voltou Almendro a preguntar.
— Por Deus, quem sois, e em que vos posso servir?
Sahiu ella de trás da arvore, á nova falla do cavaleiro, e approximou-se afoutamente de elle. Em frente, fóra da sombra do loureiro, ainda rareava uma vaga claridade mansa de lampadario. De face para elle, voltada para o lado por onde o sol tinha desapparecido, estava deante de Almendro como apparição côr-de-rosa. Os olhos muito vivos brilhavam estranhamente num rosto, emmoldurado de cabellos tão pretos que áquella hora bordavam sombras de carvão sobre a pele espelhenta. No seu vestido branco andavam ainda umas manchas vermelhas do fim do dia. Era uma donzela que sahia da terra, como a imagem de uma Santa sae do altar.
Cariciosamente sorriu de mais perto, para Almendro. Approximou-se ainda mais, vagarosamente como folha que deslisa no chão, ao sopro da tarde. Parou já deante do bafo quente do cavallo, pousou-lhe a mão na cabeça em um afago, e sorriu de novo, um sorriso de rosas a abrir; até alli silenciosa, só então fallou. A sua voz tinha o murmurio das aguas, que caem num leito de musgos e de sombras.
— Sou filha do Rei de França, — disse — neta dos Reis da Hungria. De casa de meu pae, ha muito, os Mouros aqui me trouxeram captiva.
E sacudindo a cabeça, em uma onda de pesar, continuou tristemente:
— Ha quanto tempo! Nem o sei!... Aqui me deixaram encantada, de Moura que não quis ser, encantada por meu mal nos encantos d’elles.
Almendro ouvia-a com extasis, curvado para a menina, de pé ao lado da sella, a mão direita na cabeça do cavallo que se enfeitava, ufano da caricia, meneando magestosamente a cabeça em cortesias. Quando ella acabou de fallar, preguntou-lhe elle:
— Qual o vosso destino agora, minha Infanta?
— Qual o meu destino! Pobre de mim que o não sei! — respondeu ella com tristeza.
— Mas assim vos abandonaram? — voltou Almendro.
—Aqui me encantaram, até que me quisesse alguem.
Contou dia como se foram os Mouros. Uma manhã soube-se em Silves que os Christãos tinham tomado o castello de Estombar ás gentes da Mourama. Ora este castello era importante para a defesa da costa e para a penetração no interior da terra. Por isso os Mouros decidiram logo ir retomá-lo. Sahiram de Silves todos quantos podiam bater-se, e o proprio Rei commandou este seu exercito.
Foi uma desfilada por aquelles campos. Os albornoses, aos milhares, formavam nuvem compacta, levada de roldão pelo vento.
Passaram-se dias. Os Christãos de Estombar esses rejubilaram com o ataque. O seu fim era obter a linda cidade de Silves, a corôa dos Reinos dos Algarves. Á força nunca lá entrariam. Por isso aguardavam a opportunidade propicia de um estratagema, que lhes désse a posse da cidade almejada. Apenas souberam que os Mouros os iam atacar, viram chegada essa opportunidade. Sahiram-lhes ao caminho: mas, sem lhes dar combate, enganaram-os nas voltas, passaram-lhes á rectaguarda e correram sobre Silves.
A cidade estava indefesa. Os Christãos entraram nella com facilidade. Não deram os Mouros pela finta, senão, quando tomado o castello de Estombar sem lucta, voltavam a Silves. A cidade resistiu e os Mouros foram-se na esperança de regresso proximo.
A Moura Encantada contava que lagrimas, que desesperos, reinavam na cidade. Como fugiam os que podiam e como podiam. A ella, captiva do Rei, levaram-na para aquellas charnecas, à vista da cidade, onde esperaria o regresso do seu Rei e senhor; até lá, o encantamento durava, a não ser que viesse algum homem, que se agradasse de tanta belleza e a salvasse da guarda fiel do Mouro, que a vigiava.
Recordava como fugiam por esses campos os habitantes mouros da cidade. Era um ceu de nuvens cerradas, que o furacão esfiapava, rasgava e ia levando dispersas, a abrirem clareiras azues. E desde então ella esperava a chegada feliz de quem a livrasse d’aquelle encanto a que a haviam prendido.
Voltariam os Mouros? Até lá vagueava dia no seu captiveiro. Mas não era o que queria. Desencantar-se, voltar a França, a casa de seu pae! Passavam os annos, mais annos, corria o tempo como nas nóras mouriscas, pelas hortas e pomares dos arredores de Silves, andam sem cessar os alcatruzes atrás dos alcatruzes. E não voltavam os Mouros, nem vinha o seu salvador.
E Almendro, alli ao pé, escutava a narração, attento á historia da Moura, montado sossegadamente no seu cavallo, que descansava da corrida.
*
— Qual o meu destino agora! Ainda m’o preguntaes? — concluiu ella — Que sei eu!
— E ninguem até hoje vos viu? Ninguem vos cobiçou a belleza, nem sentiu o vosso sangue real! — disse elle muito admirado.
— Ninguem, bem vêdes que ainda aqui estou. Todos me têm mêdo! — Ao pronunciar estas palavras desoladas, deslisaram-lhe duas lagrimas de puro crystal nas faces, que branqueavam nas ultimas vermelhidões do pôr do sol; Almendro viu brilhar, as lagrimas como dois fios de prata, e tremeu. — Ninguem me quebrou o encanto, que é este martyrio!... — acabou ella.
— Acaba o vosso encanto…
— ... quando alguem me quiser, — atalhou a Princesa.
Almendro tremeu de novo, com receio da tentação. — Estou deante de uma Moura encantada, — pensava elle consigo. E ante o silencio extranho do cavalleiro, que se não movia, ella intercedeu, pediu-lhe, em supplica lamentosa de quem péde a vida, que a levasse.
— Levae-me, cavalleiro christão... levae-me no vosso cavallo. Eu não péso mais que a penna da toutinegra. Levae-me de aqui.
Em pensamento, Almendro, ainda hesitante, benzia-se. Aquillo, julgava elle, era uma tentação do Demonio.
— Sim, vou levar-vos commigo, — resolveu-se elle a dizer, depois de orientar o seu pensamento, — mas, antes disso, permitti-me que volte lá atrás a procurar o meu cão, fiel amigo, que me ficou estendido no chão, de cansado... Ensinar-nos-ha o caminho pela charneca escura...
Decidia-se Almendro. Ia partir, quando acabou esta falla de mêdo. Elle só pensava não voltar mais, deixar ali a donzella com a sua tentação. A filha do Rei de França, a pobre Mourinha encantada, percebeu a tentativa de Almendro. Sentiu-se offendida e ao abandono.
— A’ fé, que cavalleiro me não pareceis! — disse-lhe. — Pois assim me, trocaes por um cão? Acaso me preferis um cão a dormir? Terá mais valor no vosso peito um cão cansado que uma pobre captiva, chorosa e infeliz?... Sois ingrato e não gentil, meu senhor... “meu cavalleiro branco!”
A voz da donzella tinha caricias felinas, arrastava-se em modulações de gatinha estimada, que pede cóllo; fazia-se rogar. Ainda voavam as ultimas palavras, após um silencio: — “meu cavalleiro branco”.
— Não é só por elle, crêde — respondeu Almendro, — não é só pelo cão amigo e fiel; é tambem pela caça, que me elle apanhou, e ficou escondida em uns penedos, lá ao longe, entre dois altos pinheiros de sentinella.
— Não me deixeis aqui por umas pennas mortas. Que vos peço eu, cavalleiro de vestes brancas, que vos peço, que me não possaes fazer? Levae-me no vosso cavallo, côr da noite. Levae-me a meu pae... ao Rei de França, e elle vos terá na sua estima. Salvae-me, meu senhor; sêde meu paladino gentil!
Almendro tinha medo, um medo que o fazia tremer com calefrios. Hesitava entre o receio do encanto da Moura, — em que elle via só a Moura com todos os seus maleficios de alma damnada, — e o dever de salvar uma donzella implorando auxilio. Ora um cavalleiro não podia, sem desdouro proprio, recusar auxilios a uma dama. Ainda no entanto lançou mão de nova tentativa de fuga.
— Perdoae-me, — disse — se vos offendo. Não é, em verdade, pelo cão que dorme, ou pela caça escondida, mas pela sêde, que me vae matando; sinto a agonia do sequioso. Esperae, senhora, um pouco. Vou procurar a fonte que me satisfaça esta sêde, e voltarei após a buscar-vos, antes de raiar o dia.
— Ai, que quereis deixar-me, cavalleiro sem coração — exclamou a menina, de mãos no peito, com um gesto de angustiosa afflicção. — Escutae-me, por Deus e Santa Maria; eu vos matarei a sêde com as lagrimas de contentamento e affecto, que chorarei d’estes meus olhos, que vos vêem e imploram.
Era noite. As estrellas mal penetravam as sombras com as suas luzes pequenas de lampadas meudinhas. O vestido branco da Moura era uma nuvem luminosa, e no meio das trevas tinha luar.
Em uma arvore proxima piou um môcho, e logo outro e mais outro, longe a longe. O silencio em que ficaram os dois, em seguida á supplice angustia da Moura, permittiu que ambos sentissem o peso do deserto em que os tinha a noite.
Ambos estavam enfeitiçados, ella pela esperança de salvação, a que se agarrava com o vigor do naufrago; elle pelo mêdo de se deixar arrastar pelos arteficios de uma infiel. As ultimas palavras do lindo fallar e as lagrimas da Princesa captivaram por fim Almendro.
Aquelle pedir-lhe carinhosamente a vida lembrava-lhe uma voz amiga, ha muito não ouvida, que no seu coração fazia um echo adorável. Chamou-a para si. Ella tinha já lançado mão das bridas do cavallo, a sustê-lo em um decisivo arranco.
— Ao menos não poderá passar sobre o meu corpo, — pensava ella, — animando-se ao feito.
Almendro, depois de pensar um pouco, levantou-lhe as mãos, e vendo que, só levando-a junto de si, se poderiam pôr a salvo os dois, pediu a Princesa que subisse ao cavallo, e elle proprio a ajudou, incitando-a.
— Vinde, minha Moura, pois que assim o quereis: subi ao meu cavallo, que a Deus vos levarei.
Risonha, ella subiu, leve como uma pluma, e Almendro sentou-a deante de si no arção da sella, abraçando-a como se segura imagem santa, que se tem medo de deixar cahir.
O cavallo, já descansado, partiu num arranco alegre, e poseram-se a caminho. A Almendro parecia levar á sua frente contra o seu peito leal, a bafejar-lhe o rosto com aromas primaveris, uma de essas vias lacteas, que elle via esvoaçar em carreira entre as estrellas.
— Para onde me mandaes vós que vos leve, minha captiva? — preguntou Almendro.
Ia nascendo a lua, clara e redonda como um oculo de vidro a espreitar do céu azul, um ceu de panno de theatro, todo azul, com as luzinhas das estrellas a brilharem por cima.
— Levae-me primeiro a Roma, — respondeu a Moura, e a sua voz era mais fina. — Levaes-me a Roma, sim? Vamos pedir ao Papa a absolvição das minhas culpas. Roma é muito longe? E’ sagrada, pois não é?
Ia tagarella da alegria de quebrar o encanto. Era encontrada emfim por quem a queria. E que victoria não custou a decisão! Era o seu desencantamento. Partia finalmente.
— Não é necessario ir tão longe, — replicou o cavalleiro um tanto bruscamente á doçura da Moura, a que não perdera de todo o receio. — Tão longo caminho esse é, que escusamos bem de o tomar! Iremos mais perto e direito, á minha casa da cidade, onde vos albergarei. Silves! Ahi tereis o bispo, que é sagrado. A Silves é que vamos nós.
*
Caminharam lentamente e sem medo, num rodeio de melhor caminho para a cidade. A lua subira no céu. As arvores talhavam sombras no chão e recortavam perfis no ar. O cavallo confundia-se com as sombras, e só nellas sobressahia, como cysne a abrir as asas, a brancura confusa do cavalleiro e do fardo gentil, que levava a Silves. Conversavam, e a Moura, com a sua garrulice de andorinha alegre, captivava o louro Almendro, o galanteador. Caminhavam.
Caminhavam. O luar espalhava-se como leite por toda aquella terra As montanhas, cobertas da mancha sombria do arvoredo, estavam negras, mas o luar passava sobre ellas, como o cavallo saltava as sébes no caminho.
No regatos scitillavam espelhos de agua. A face da Moura, deante de Almendro, iliuminava-se a desafiar a lua. O cavalleiro estava nas mãos da Moura, de quem já não sentia receios.
De repente, o cavallo estacou.
Ao lado de um tronco forte, moveu-se um vulto, e veio de lá uma voz agressiva de homem, que fallava com asperesas de garganta.
O cavallo passava rente da arvore, quando estacou. Pulso rijo filara-lhe o freio. E na sombra, ergueu-se do chão, para Almendro e para a Princesa encantada na Mourisma, o braço duro de um Mouro. Viram-lhe a cara de ébano tostado, barba negra em bico, turbante a branquejar na cabeça com scintiliações de joias, no luar, entre os ramos das arvores, brilhava como vidro um alfange na mão do Mouro. Dois olhos brancos, excessivamente grandes, luziam na treva, como se fossem elles mesmos os olhos terriveis de ella.
— Para, cavalleiro, que me levas a luz do dia, — disse. — Pára, se estimas a tua vida, ó Nazareno. Deixa a Princesa, que não póde ser captiva de Christãos.
Era o guarda altivo e fiel da Moura encantada. Tinha aquella servidão eterna, pela qual lhe cumpria não deixar fugir a donzella.
Ella, que o conhecia de o vêr espreita-la entre as ramarias e detrás dos penedos, nem coragem teve de gritar. Mais branca do que os vestidos em que o luar cahira, agarrou-se afflictivamente ao peito de Almendro. Este sentiu então todo o brio de
cavalleiro e dispôs-se de corpo e alma a disputar a Moura. Onde lhe iam já os temores!
— Ao cavalleiro, — respondeu elle ao repto do Mouro, altivamente, — só lhe importa o fardo que leva e o dever de o guardar, e em nada tem a sua propria vida, senão para honrar a sua fé.
— Que te mato, perro infiel! Entregas-me a Moura, ou te arranco a vida aqui mesmo. Covardes, almas de cães, que sois vós os Nazarenos, inimigos do bem e impios servidores de todos os crimes. Ou me dás a tua presa, ou te abro aqui já de meio a meio.
Almendro acicatou o cavallo, que se empinou sob a mão rija do Mouro ameaçador. O momento era tragico A donzella desmaiára, e, para não deixar cahir ao chão aquelle corpo inanimado, que era no entanto do maior apreço, teve Almendro de o segurar com os dois braços, deixando impunes os doestos do guarda mouro. A lucta estava travada entre este e o cavalo, que o cavalleiro incitava com os acicates, livremente.
O nobre animal empinava-se, cabriolava, mas o Mouro, embora a custo e crescendo em raiva, segurava-o.
— Larga, perro Nazareno, larga o meu thesouro, ou te mato como um cão javardo immundo... — vociferava o Mouro, sem largar o freio do cavallo; ouvia-se-lhe a respiração offegante, brutal: — larga e já.
Lampejava o alfange. O homem saltava, dependurado na bocca do cavallo, que, esforçando-se por partir, ameaçava lançar-se iradamente sobre elle. Num repellão mais forte, a que o animavam os acicates dolorosos, e as vaias de “vil, mafoma, infiel, impuro”, que Almendro atirava em desforço ao Mouro, o cavallo conseguiu libertar-se de aquelles pulsos de ferro. O Mouro cahiu, derrubado pelo impulso, mas logo se ergueu de um salto rapido. Doido de cólera, correu para o cavallo; que partiu á desfilada, e agarrou-se á perna do cavalleiro.
Almendro ia bem attento no que o Mouro poderia fazer, para tomar a defesa immediata. Apenas este conseguiu firmar-se á perna do cavalleiro, tomou impulso, e de galgão ia lançar a mão esquerda sobre a Infanta, quando na outra brandia o alfange, mais ameaçador, mais luzente e recurvo.
Impulso contra impulso, decisão contra decisão, em perigo de deixar ir ao chão o corpo inerte da Moura, Almendro, repentinamente, saca da espada e corta a mão do Mouro.
Logo o Mouro quebrou o seu embate, e a mão cahiu-lhe aos pés. E, emquanto o fidellissimo guarda olha com dôr e cheio de espanto para a sua mão, pensando na sua infelicidade, sem a mão e sem a luz do seu dia, razão da sua existencia, Almendro esporeou o cavallo freneticamente. O animal creou forças novas; não galopava, voava, ao luar, por campos e valles, até atravessarem o rio. A frescura e o movimento da carreira despertaram a Moura, cujo primeiro cuidado foi inquirir da sua sorte. Estava salva, e uma aurora cresceu dos seus olhos para a lealdade do salvador.
Entraram de um galope na cidade de Silves. Não raiava ainda o dia.
Assim desappareceu o encanto da pobre filha do Rei de França, linda captiva dos Mouros, que fizeram de ella, em um tormento de vingança, a branca e cheia de luar Moura encantada, um dia felizmente salva por Almendro. Os campos ficaram ainda mais verdes, o ceu mais azul ainda; o sol continua a dourar os campos. Só a Moura se desencantou e já não ri, detrás das arvores, aos que passam pelo lugar do seu captiveiro.
Almendro foi cavalleiro. A Moura voltou a ser christã, ella que não tivera a culpa de ser a captiva gentil da Mourama de Silves. E mal sabia ella, coitada, que o Rei de Silves se tinha afogado, quando fugia a cavallo depois de voltar de Estombar, ao ver os Christãos na posse da linda cidade mourisca. Quando lhe acabaria o encanto, se o seu Rei e Senhor não voltava nunca, — nunca!
- Source
- CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas Lisbon, Livraria Universal, 1924 , p.3-21
- Place of collection
- Silves, SILVES, FARO