APL 245 A lenda das três mouras encantadas

 
 O governador mouro de Loulé tinha três filhas: Zara, Lidia e Cossina. Eram três irmãs qual delas a mais prendada de virtudes e excelências que faziam feliz seu pai. O velho mouro via-se e revia-se nelas bendizendo Allah pelas graças com que o bafejara.
 Cossina, a mais velha, com seu sorriso, encantador que lhe bailava nos lábios de carmim, possuía o sortilégio de encantar e prender quem quer que fosse. Zara, a do meio, parecia ter o condão feiticeiro nos próprios olhos negros como a noite estrelada. Lidia, a mais nova, era a graça do luar de Agosto.
 Satisfeitas e felizes viviam as três irmãs no lar paterno em paz e sossego, ao tempo em que os cristãos portugueses, querendo dilatar o império e conquistar o Algarve, comandados por D. Paio Peres Correia, Mestre de Sant’Iago, se dirigiam a Loulé para tomar aquele castelo. 
 Porém, a vila estava bem fortificada e pensava-se, por isso mesmo, ser invulnerável.
 Reunidos os seus homens, entre os quais se contavam alguns dos melhores cavaleiros desse tempo, D. Paio — Mestre de Sant’Iago acampou num outeiro próximo que, depois; tomou o nome do Outeiro do Mestre.
 Os mouros eram em maior número e, julgando certa a vitória, avançaram contra os Portugueses.
 Foi duro e brutal o combate travado.
 Entre o tinir das armas, o relinchar dos corcéis e as pragas malditas que atiravam para o ar, ouviam-se os gritos triunfantes dos Portugueses. Levaram estes de vencida os mouros. Mas Loulé não estava tomada, era preciso o assalto. E o Mestre preferiu esperar pelo dia seguinte.
 Pelas altas horas da noite, quatro vultos que se afiguravam fantasmas ou almas do outro mundo, envoltos em sombras, pareciam escapar-se, no silêncio que reinava extra-muros. Os estranhos vultos, que caminhavam com precaução, dirigiam-se a um poço perto do campo dos Portugueses.
 O luar, que era de encantar, sorria na noite longa, enquanto urna brisa fresquinha e subtil, corria silenciosamente e, com ela, as palavras trocadas quase em segredo entre os do grupo.
 Dizia um vulto que parecia o de um velho:
 — Filhas minhas! Impõe-se que vos sujeiteis ao que vos disse, porque impossível se torna vencermos os Portugueses.
 Com ansiedade uma voz feminina retorquiu:
 — Como o meu coração se aflige, meu pai...
 Uma terceira voz mais suave e chorosa diz em segredo:
 — E não haverá maneira de fugirmos?
 Tornou o velho:
 — Impossível! Estamos inteiramente sitiados. E depois do que sucedeu hoje com os nossos não me restam mais esperanças...
 Com magoada energia, a primeira voz feminina tornou:
 — Se assim é, preferimos tudo suportar a cairmos nas mãos desses amigos da Cruz que tanto odeio.
 Cumpra-se, pois, a sua vontade, meu pai...
 — É preciso também .— diz o velho — que Allah me dê coragem e forças bastantes para vos encantar, minhas queridas filhas! Aqui ficaremos até que um dia eu possa voltar para quebrar o vosso encantamento!
 — Que esse dia não demore, meu pai! Muito me custa separar-me de vós e de minhas irmãs…
 — As vossas lágrimas doridas são espinhos cravados em meu coração que se aflige e amargura: encantar-vos é o que me resta para que os malditos cristãos vos não apanhem vivas.
 — Falta ainda muito, meu pai?
 — Não, Zara. O poço é já aqui!
 — Falai mais em silêncio, que os cristãos podem ouvir-nos!
 — Eles não nos pressentirão!
 — Estou tão triste; meu pai!...
 — Eu também. Cossina! Paremos aqui, que o poço está à vista!
 Zara começou a chorar e com ela suas irmãs faziam coro!
 Com medo de serem descobertos, o velho chefe mouro mandou que as filhas se juntassem e ajoelhassem em volta do poço. Beijou-as e pediu que não chorassem e se mostrassem serenas.
 — Allah há-de proteger-me — diz o velho, que, erguendo os braços ao céu, implorou numa estranha e mágica prece o encantamento para suas três filhas!
 De repente, o luar iluminou com uma luz suave e doce, aquele misterioso quadro de um homem de pé e braços erguidos e de três donzelas ajoelhadas em redor dum poço.
 Neste meio tempo — diz ainda a lenda — um atrevido cavaleiro de nome Gonçalo, ouvindo estranho rumor de vozes para as bandas do poço, se atreveu a tentar descobrir sózinho o que se passava. E foi nessa altura, ajudado do lindo luar que se darramava em terra de moirama, que o moço cristão descobriu o misterioso quadro.
 Puxou da espada e ia para gritar, quando a mão lhe caiu sem forças e dos lábios nem sequer lhe saiu o mínimo som… é que seus olhos tinham fitado os de Zara! E nesse jeito ficou, durante longos minutos, enfeitiçado e imóvel, até que o encantamento terminou. Só algum tempo depois Gonçalo voltou a si! E quando tal aconteceu, o moço cavaleiro viu que junto do poço já não havia ninguém. Olhou em redor e tudo era quedo e mudo.
 A Lua, serena e pálida, seguia no seu giro eterno! E então, o jovem cavaleiro adormeceu nessa noite convicto de que tinha tido uma alucinação!...
 O sol ergueu-se de novo ao outro dia e com ele o clamor no Outeiro! O pequeno exército cristão preparava-se para atacar Loulé. O ataque organizado dos cristãos desnorteou a moirama e poucos conseguiram fugir, no número dos quais se contava o ex-governador mouro, que deixara as três filhas encantadas entregues à sorte! 
 Gonçalo tinha surpreendido o olhar de Zara e nele ficara preso duma volúpia estranha. Tentava distrair-se, mas todas as noites havia nele qualquer força misteriosa que o arrastava até junto do poço. Mal ali chegava sentia uma serenidade interior, uma luz que iluminava de amor a sua alma. Nas noites que passava de vigília, perguntava a si próprio se o que sentia não seria apenas delírio da sua fantasia enferma.
 Certa noite, quando levava a sua imaginação a fazer perguntas sem resposta, ele apercebeu-se de ouvir uma voz estranha e misteriosa que lhe dizia:
 — Vai, jovem cavaleiro, vai… corre a dizer a meu pai que está em Tânger que nos venha salvar... Nós estamos aqui encantadas... Vai, não demores...
 Gonçalo ao ouvir esta voz convenceu-se de que estava doente!
 O estranho quadro divisado na noite do combate, não tinha explicação plausível!
 Mas a voz parecia humana…
 Esforçou-se o jovem cavaleiro por dominar-se e afastar a alucinação que julgava estar a sofrer, quando a mesma súplica foi-se repetindo, em noites seguidas. E tantas vezes a ouviu que se impôs a si o dever de partir a caminho de Tânger.
 Fácil lhe foi descobrir o paradeiro do velho Governador de Loulé, a quem contou o que se passara consigo.
 O velho, sorrindo, disse:
 — Agradeço-vos, senhor cavaleiro... Minha filha tem razão... Eu jamais a poderei salvar...
 Gonçalo olhando o velho mouro:
 — Senhor… e se eu puder… e vós quiserdes que eu as salve?...
 O velho olhou-o de frente.
 —Acaso sereis capaz… vós, que sois cristão?...
 — Senhor! Uma das vossas filhas me pediu e o seu pedido foi mais forte do que minha vontade…
 O velho sorriu com malícia.
 — Isso foi coisa de Zara…
 — Zara é o nome dela! Mas que nome tão lindo!
 — É a mais formosa de minhas filhas, crede!
 — Deixai, pois, salvá-las!
 — Se assim o quereis… tomai estes três pães... Em cada um deles está escrito o nome de uma das minhas filhas... Levai-os convosco e lançai-os ao poço... um por um, dizendo de cada vez o nome que lhe pertence! Lidia... Zara... Cossina!...
 O jovem cavaleiro recebeu os pães que o velho mouro lhe ofereceu.
 Sorrindo, o fidalgo acrescentou:
 — Quero ainda dizer-vos… que não vos admireis se apenas duas filhas regressarem a vossos braços. A outra, Zara, será o meu prémio.
 — Que Allah vos proteja!
 — Praza a Deus, senhor!
 Fitaram-se os dois homens em profundo silêncio. Depois Gonçalo voltou a Loulé, resolvido a cumprir o que prometera.
 Logo na primeira noite correu ao poço e lançou um dos pães chamando:
 — Lidia !
 Neste momento do fundo do poço se ergueu uma nuvem de espuma que passou voando sobre a sua cabeça.
 Na segunda noite, Gonçalo atirou outro dos pães ao mesmo tempo que gritou por Cossina!
 Outra nuvem de espuma se elevou por cima da sua cabeça...
 Porém, na terceira noite Gonçalo teve mais precaução com medo de perder Zara… Decidiu atar o pão de modo que não pudesse cair no poço.
 Tal como pensou assim fez.
 Quando furava o pão para o prender, as suas mãos ficaram tintas de sangue e ouviu de dentro de si próprio um alucinante grito de mulher.
 Tolheu-o o pavor e durante alguns momentos ficou estupefacto.
 Que teria sido? Desvairado, dirigiu-se ao poço para atirar o terceiro pão bem preso às suas mãos enquanto chamava:
 — Zara!
 Desta vez não surgiu nenhuma nuvem. E Gonçalo viu, espantado, uma formosíssima rapariga segura ao gargalo do poço. A custo ela falou para ele:
 — Foi imprudente, cavaleiro! Matou-me!
 Cortaste-me o coração... Jamais poderei sair daqui!
 Pareceu ao cavaleiro sentir gelar-lhe o sangue nas veias. Desesperado tentou segurá-la e exclamou:
 — Zara, meu amor...
 Ela olhou-o muito tristemente e disse:
 — Adeus... moço cavaleiro!
 Ele gritou-lhe:
 — Suplico-te. Zara, ao menos encanta-me também junto de ti!
 Os olhos dela brilharam com uma luz infinita.
 — Desejas com certeza o que pedes?
 Com voz firme ele tornou:
 — À fé de cavaleiro juro-vos que desejo ficar contigo!
 — Se assim o desejas... seja feita a tua vontade!
 Ainda hoje se diz que nas noites luarentas de Agosto ou de Janeiro há quem tenha visto o moço cavaleiro encantado em castanheiro, inclinar-se sobre o poço, ao mesmo tempo que no ar se ouvem vozes estranhas e misteriosas.

Source
DELGADO, Manuel Joaquim A Etnografia e o Folclore no Baixo Alentejo Beja, Assembleia Distrital de Beja, 1985 [1956] , p.240-244
Place of collection
LOULÉ, FARO
Narrative
When
20 Century, 50s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography