APL 704 A lenda da zorra berradeira

Quando eu era um anjo feito
Assim de bibe e calção,
Ouvia, por noites longas,
Que até metia aflição,

Aquele uivar tão cansado,
Tão triste, e de que maneira?,
Mais de morte que de vida,
O da zorra berradeira.

Todo tremia de medo;
Os olhos esbugalhava;
Não tinha pinga de sangue,
Quando a zorra ali passava.

Fosse a noite um mar de luz,
Com uma nave no céu,
Ou, talvez, mais negra ainda
Do que a cor negra do breu,

O certo é que em noites certas
Ninguém à rua saía,
Que quem visse a zorra perto,
Logo de pronto morria.

E, por isso, àquelas horas
Que alguém já chamou de mortas,
Nunca ali homem cristão,
A quem fosse, abriu as portas.

Isto diziam os antigos,
Que dos seus avós ouviram;
E estes, doutros seus avós
Que assim mesmo o transmitiram.

O que era, então, que movia
Essa zorra berradeira
A soltar seus tristes ais,
Assim daquela maneira?
 
Diz a longa tradição,
Passada de avós a netos,
Que uma moirinha encantada,
Sem amores, nem afectos,

Andava, triste, penando
Sua vida enfeitiçada,
Porque Allah assim quisera
Vê-la em zorra transformada.

Foi o caso... eu vou contar:
Naquele tempo, a moirama
Trazia fogo nas armas,
A lenda assim o proclama.

Al-Gharb foi arrasado,
Tão de pronto, a fogo e ferro,
Que, cristão que resistisse,
Era morto como um perro.

E muita gente morreu,
Da boa gente cristã,
Sem saber que o dia de hoje
Não chegava ao de amanhã.

Foram velhos e crianças,
Homens fortes e mulheres,
Mortos à ponta de sabre,
Sem mais teres nem haveres.

Mas... há sempre um “mas”, Deus meu!
De tanta gente houve alguém
Que não morreu. Porque foi?
Jamais o soube ninguém!

Daquela luta tremenda,
Em Odelouca travada,
De toda a hoste cristã,
Com vida, não ficou nada.

Logo os moiros debandaram,
Donos, senhores da terra,
Em busca de outras vitórias,
Porque era essa a lei da guerra.

Mas alta noite, ao luar,
Uma mulher sarracena
Ouviu dos mortos que alguém
Gemia, que dava pena.

Lá ficou, sem mais seguir
A seus pais ou seus irmãos,
Que lhe doía, assim feita,
A luta contra os cristãos.

De entre a montanha dos mortos
Alguém com vida inda viu;
Disse-lhe ela frases doces
E de amor também sorriu.
 
Tomou à vida o cristão
Que da morte esteve à beira;
Quem não tomava, meu Deus,
Pelas mãos dessa enfermeira?!...

Juraram ali, então,
Dos dois fazerem um só;
E choraram longo tempo,
Choraram que meteu dó.

Nunca mais destino algum
Deixaria de os ligar,
Que os dias que o mundo desse
Seriam só para amar.

Mas Allah que das esferas
Tudo viu, num momento,
Mandou que a moira quebrasse
O seu temo juramento.

Rebelou-se contra deus,
O deus da gente infiel,
Aquela santa mulher
Feita de rosas e mel,

Que não deixou de seguir
Quem a fizera cristã;
E partiu, por noite bela,
À busca de outro amanhã.

Era a lua uma hóstia de oiro
E o rio um fio de prata,
E uma rosa até sorria,
Sonolenta e timorata.
 
Não eram dados dez passos,
Já a moira estava só,
Que o amante foi mudado
Em cinza negra e em pó

Que o vento, por longes montes,
Por aldeias e cidades,
Foi semeando, a pouco e pouco,
Ao caminhar das idades.

E ela, que toda tremia,
Como vara de figueira,
Foi por Allah transformada
Numa zorra berradeira,

Com a triste condição
De buscar, daí em diante,
Aquele que ela salvara
E que fora o seu amante.
 
Não mais podendo cantar
Com sua voz de cristal,
Da moira apenas se ouvia
Aquele uivar de animal.

E o seu cheiro nauseabundo,
De enxofre mal derretido,
Já matara muita gente
Que enfrentá-la tinha qu’rido.
 
Inda hoje, passados séculos,
Neste Algarve, algumas portas
Não se abrem, em dias certos,
A horas chamadas mortas.

Source
LOPES, Morais Algarve: as Moiras Encantadas s/l, Edição do Autor, 1995 , p.37-42
Place of collection
PORTIMÃO, FARO
Narrative
When
20 Century, 80s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography