APL 937 Os sinos de s. joão
Houve, em tempos, numa pequena aldeia do Concelho de Lamego, um famoso caçador a quem os conterrâneos chamavam o mata-coelhos, porque ele era o desinço da coelhada nas redondezas. Raramente errava a pontaria e coelho que lhe saísse ao jeito era coelho condenado a ir para o seu cinturão.
Mas o mérito da matança não era só dele. Era também do seu podengo ladino, de faro apurado e de pernas de galgo. Coelho que ele filasse não tinha escapatória: ou tombava ao chumbo certeiro do seu dono ou era abocanhado por ele próprio.
Um dia, de madrugada, como de costume, saíram os dois para a caça. Mal entraram na serra, saltou-lhes à frente um laparoto que se esgueirou rapidamente, por entre as urzes, como quem conhecia bem os cantos à casa, e foi direitinho refugiar-se no meio de duas rochas que estavam ali perto. Nem o caçador pôde alvejá-lo por causa do mato, nem o cão conseguiu alcança-lo por causa do curto trajecto.
Guiado pelo cão, o caçador meteu-se entre as rochas e penetrou numa gruta que dava para uma larga clareira, uma sala enorme iluminada por lustres de cristal. Ao meio da clareira, havia um lago de prata. No meio do lago, erguia-se um altar de mármore com pedras preciosas. Sobre o altar, estava uma imagem de S. João e o inseparável cordeiro. E, para completar aquele maravilhoso cenário, ao lado do altar, podia ver-se uma torre de marfim com um grande carrilhão de sinos de oiro.
Deslumbrado com o feérico espectáculo, esqueceu-se do coelho e não tirava os olhos daquele incalculável tesouro. Depois de ter estado largo tempo a observar tais maravilhas, quis avançar para uma porta que se via no fundo do salão, mas teve de parar, porque, de repente, surgiram à sua frente dois corpulentos leões, com ar ameaçador, que lhe disseram:
- Não avances mais; se não, daqui não sais.
Surpreendido e aterrorizado com a ameaça das feras, quase não atinava com a porta de saída. Logo que a encontrou, apressou-se a fugir daquele aperto. Depois, correu para a aldeia e, com a voz embargada pela emoção, contou aos vizinhos tudo o que lhe tinha acontecido.
Alarmados com a notícia, estes não quiseram acreditar. Mas, pelo sim, pelo não, resolveram ir ver o que se passava. Os mais valentes e ousados armaram-se de paus e sacholas e, guiados pelo caçador, penetraram na gruta que dava para a sala do tesouro.
Ao chegarem lá, soltaram um grito de espanto e esfregaram os olhos para terem a certeza de que não estavam a sonhar. Afinal, era tudo verdade e o que viam excedia largamente o que o caçador lhes contara.
Depois de terem admirado a riqueza e a arte daquela parte do palácio, quiseram ver também o que estaria para lá da porta misteriosa que se via ao fundo do salão, embora conscientes do perigo que corriam, pelo aviso do caçador.
Animados, por serem muitos e corajosos, dirigiram-se para lá; mas, quando iam empurrá-la para a abrir, surgiram os terríveis leões, de fauces hiantes e olhos esbraseados, que vociferaram:
- Não avanceis mais; se não, aqui ficais.
Ao ouvirem isto, esfriou-se-lhes a coragem e precipitaram-se para a gruta de entrada, atropelando-se uns aos outros, até se verem livres das garras afiadas dos ferozes leões. E, desde esse dia, nunca mais pensara em lá voltar.
Alguns anos mais tarde, quando o caso parecia ter caído no esquecimento, na noite da véspera da festa de S. João, passou por ali um jornaleiro, que ouviu uma canção muito suave, mas mal definida, vinda do lado das duas rochas.
Movido pela curiosidade, aproximou-se delas e pôde distinguir claramente um toque de sinos que se escoava, através da gruta. Não havia dúvida: eram os sinos de oiro do carrilhão que tocavam uma balada em honra do Santo Popular.
Correu logo à aldeia a dar conhecimento do que se estava a passar. E as pessoas, sempre ávidas de acontecimentos sensacionais, deixaram as casas e dirigiram-se, à pressa, para o local do concerto.
Maravilhadas com a balada dos sinos, nem deram conta da passagem das horas. E só regressaram a casa, ao nascer do sol, quando o concerto terminou.
Daí em diante, todos os anos, na noite de S. João, ali se deslocavam para ouvirem os sinos a tocar.
Mas uma noite, em que estavam, uma vez mais, a cumprir a tradição, apareceu lá um desconhecido, vindo não se sabe donde, que lhes disse:
- Vou acabar com a vossa mania de vir aqui todos os anos.
E, sem dizer mais palavras, cuspiu sobre as duas rochas, que, perante o espanto geral, se juntaram numa só, tal como agora se encontra.
Como por encanto, a música cessou. E, daí para o futuro, nunca mais ali se ouviu o som melodioso e único dos sinos de S. João.
- Source
- FERREIRA, Joaquim Alves Lendas e Contos Infantis Vila Real, Edição do Autor, 1999 , p.140-142
- Place of collection
- LAMEGO, VISEU