APL 2793 Lenda de D. Tedo, o Caudilho

Por singular prodígio de imaginação, situemo-nos em pleno século XI. O próprio clima espiritual que impregna estas lendas nos ajudará a tal efeito. E escutemos...
 
Ao longe, uma nuvem de poeira levanta-se e caminha, densa, cada vez mais densa, opondo-se ao cantar festivo da Primavera em flor. São as patas dos cavalos batendo no chão, em desenfreado galope, que originam essa nuvem. Vêm aí as hostes cristãs, Douro abaixo, ao encontro do exército mouro. Os infiéis são a preocupação constante de D. Tedo e D. Rausendo Ermígio, filhos de Ermígio Abonazar e netos de Ramiro II de Leão. As lutas têm-se dado violentas, sem tréguas. O rei mouro Alboacém acaba de chegar de Lamego, com a preocupação estampada no seu rosto moreno, de traços duros. O encontro vai ser terrível, decerto!...

Sobe no ar a nuvem de pó, cada vez mais densa. Elevam-se os gritos de dor e as imprecações de ódio. O embate dá-se, furioso. Dum lado, os cristãos chefiados por D. Tedo. Do outro, os mouros, tendo à frente o próprio rei Alboacém. Peleja rija, com baixas de lado a lado. D. Tedo sabe que tem de vencer esta batalha, a qual lhe dará a possibilidade de descer até Paredes e impor respeito aos sarracenos. Mas Alboacém não ignora que a perda desse combate dará aos cristãos ensejo e vontade de descerem até Lamego. Ora isso seria o fim para o orgulhoso rei Alboacém.
Dez horas dura a luta! Dez horas... Apenas com um pequenino interregno. E Paredes cai finalmente nas mãos dos cristãos. D. Tedo vence!
Alboacém retira-se, conjecturando vinganças...

A fama de D. Tedo corre pelas tendas sarracenas e chega ao palácio de Lamego. Num sorriso, Tesdália, a irmã de leite da princesa Ardínia e sua melhor amiga, aperta as mãos da filha do rei mouro. Num quase sussurro, abre-lhe o pensamento.
— Deves achar estranho que a notícia me ponha no rosto esta expressão de alegria...
A princesa olha-a com profunda curiosidade.
— Assim é, Tesdália. Não posso compreender-te!
— Vais ouvir-me e perdoar-me. Mas responde-me primeiro. Já ouviste falar em D. Tedo e D. Rausendo, dois jovens fidalgos cristãos?
— Já... São os nossos mais encarniçados inimigos!
— Ouve, Ardínia. Eu já vi D. Tedo. É belo, valente e luta por causa nobre.
— Nobre? Sabes o que estás dizendo? Ele pretende apoderar-se das nossas terras e expulsar-nos!
— Ele é cristão e pretende que a sua fé se dilate!
A princesa abriu os seus lindos olhos negros, num espanto sincero.
— Repito: sabes o que estás dizendo? Que o meu pai nunca te oiça!
Tesdália sorri de novo, num sorriso triste.
— Sei, minha querida princesa! Sei o que digo e a quem o digo! Há porém uma coisa que ignoras ainda e creio ter chegado a hora de ta revelar.
— Que é?
— Ardínia... não me julgues mal… mas já sou cristã desde que o encontrei!
— Tu... cristã?
— Sim, minha amiga! Sou cristã, embora ainda não me tenha baptizado. E se não podes conviver com uma partidária de Cristo, renega a nossa amizade e eu fugirei hoje mesmo deste castelo!
— E para onde irias?
— Para junto do exército de D. Tedo!
— Ama-lo assim tanto?
— Amo a Jesus Cristo, o único que pode retribuir o amor daqueles que o amam, sejam eles bonitos ou feios, ricos ou pobres, nobres ou plebeus!
— E... esse tal D. Tedo... conhece-te bem?
Tesdália olha um ponto vago e murmura:
— Quase nem deu pela minha presença. Mas eu não mais esquecerei esse herói! Se visses como ele comanda… como lhe obedecem... como é desenvolto nos seus movimentos… como é franco e valente nas suas decisões! Se o visses, Ardínia...
Passos apressados soaram na antecâmara, fazendo calar as duas donzelas. E é o próprio rei Alboacém que chega, falando com voz perturbada pelo nervosismo.
— Tesdália! Acabo de ser informado que esse tal D. Tedo vem, sozinho, tratar comigo uma pretensa paz. Decerto é louco, se pensa que o vou receber e deixar partir livremente!
Uma gargalhada dura quebra a suave harmonia que envolve os aposentos da princesa Ardínia. E, numa voz de trovão, o rei conclui:
— Prendê-lo-ei na torre norte e, com tão valioso troféu, será o rei Alboacém quem ditará as condições de paz!
As raparigas olham-se, aturdidas. O rei continua:
— Por isso, Tesdália, quero que fiques aqui guardando a princesa. Nlunca se sabe o que pode surgir de um homem tão audacioso como o nosso inimigo!
E, sem dar mais explicações, o rei afasta-se, no mesmo passo apressado com que chegara.
Sós, as jovens olham-se de novo, sem conseguirem proferir palavra. É a princesa quem recupera mais facilmente a calma.
— Tesdália! O que meu pai vai fazer é uma cobardia! Não se prende um homem que vem sozinho para falar de paz! Não é isso que estás pensando?
Tesdália faz com a cabeça um movimento afirmativo. Os seus olhos estão rasos de lágrimas. Depois murmura:
— É uma traição! Uma traição!
Ardínia fica silenciosa, olhando o campo vasto e verdejante que se estende defronte das janelas. Pensa! Depois, torna a fixar a sua amiga. Parece ter tomado subitamente qualquer resolução.
— Tesdália! És feliz com a tua crença nesse tal Cristo?
— Sou feliz e vou partir! Quero baptizar-me quanto antes! Não assistirei a esse gesto impróprio de um rei!
As lágrimas correm-lhe agora pelas faces. Respira com dificuldade.
— Perdoa-me se te vou deixar! Mas não devo continuar entre os da nossa raça, sendo cristã. Partirei!
Ardínia aproxima-se, com vagar, da sua amiga e irmã de leite.
— Espera um pouco, Tesdália. Pode ser que eu te acompanhe...
A jovem aia olha a sua princesa com indizível espanto.
— Partirás comigo? Será possível? Tu, a filha de Alboacém?...
Ardínia sorri.
— Não prometo já. Depende de uma certa visita que hoje mesmo irei fazer. Mas talvez te acompanhe... talvez...
Um choro nervoso, mas abafado, é a resposta da jovem Tesdália. E Ardínia sorri misteriosamente, ouvindo as vozes de comando no pátio do castelo...
A noite começa a cair num vagar de angustiosa agonia. Os últimos raios solares há tempo que partiram já. Penumbra onde imperam o mistério, as frases mal definidas, os pensamentos mal esboçados. Penumbra cúmplice do crime e da traição...
Disfarçada com um trajo de guerreiro, Ardínia consegue chegar junto do prisioneiro. Com dificuldade a deixaram passar, mas ela mostrara um salvo-conduto do rei, roubado dos seus aposentos.
D. Tedo e o jovem soldado estão frente a frente. A estupefacção e espalha-se no rosto da recém-chegada. D. Tedo é, na verdade, um homem de bela aparência e atitude fidalga! Ardínia fita-o, sem atinar como expor o seu plano. Vendo esse soldado na sua frente, como estátua assombrada, D. Tedo sorri com certo desprezo, e pergunta:
— Por que me olhas assim? Estás longe de vencer-me, acredita!
Então, a princesa fala:
— Não sou quem pensas.
É a vez de D. Tedo demonstrar o seu pasmo.
— Tens voz de mulher e audácia de guerreiro. Descobre o teu rosto! Quero saber quem és!
— Sou Ardínia, filha do rei Alboacém.
— E que me quer a filha desse traidor?
— Justamente reparar essa traição!
— Estás então ao facto do que me fizeram?
— Estou. E reprovo a acção de meu pai! Só compreendo a luta quando é travada com lealdade.
— Bonitas palavras na boca de uma mulher mais bonita ainda!
— As mulheres também sabem ser justas. Por isso vim procurar-te.
— E que desejas de mim?
— Dar-te a liberdade.
Volta D. Tedo a mostrar-se surpreendido.
— Dares-me a liberdade? Bem sabes que ao sair daqui só poderei ter um pensamento: atacar as terras e o poderio do rei teu pai!
— Não o ignoro.
— E... vens libertar-me… apesar de tudo?
— Sim!
— Porquê?
— Porque te admiro, D. Tedo!
— Sabes o meu nome?
— Há muito que o aprendi.
— Deixa-me olhar-te bem... Como és bela!...
— Agrada-me saber que te agrado.
— Que pena não seres cristã!
— Que farias, se o fosse?
D. Tedo olha-a, sorrindo, e pega-lhe nas mãos, com enlevo.
— Faria de ti a minha bem-amada esposa!
Ardínia também lhe sorri, numa terna promessa. Depois o seu rosto toma, subitamente, uma expressão grave.
— Vais sair daqui comigo e levar-te-ei a uma porta secreta que dá para o campo. Depois... ficarás sozinho e livre. Mas poupa-te no campo de batalha!
— E nunca mais te verei? Já não poderei compreender a liberdade sem ti, minha bela Ardínia!
Ela estende-lhe a mão que havia retirado das do jovem guerreiro.
— Vamos! Talvez em breve me tomes a ver… se resolver ser cristã.
— Será possível? Oh... que ventura! Não demores a tua resolução! Os instantes contam no coração dos enamorados...
Ardínia retribui-lhe o olhar ardente.
— Se decidir tornar-me cristã e seguir-te, onde irei encontrar-me contigo?
— Eu te avisarei do local onde nos poderemos reunir!
— Então... até breve, D. Tedo!
— Até breve, minha linda Ardínia!
E saem, lado a lado, atravessando corredores, descendo escadarias, até que se perdem junto a um canto da muralha do castelo...
A noite acaba de cair. A penumbra esbate-se e entra agora pela noite dentro. Mas nos corações dos dois enamorados canta a Primavera como em pleno meio-dia!
 
Um grito soa na torre norte. Um grito prolongado, seguido de vozearia e tilintar de armas. O prisioneiro havia desaparecido! Corre o rei mouro pela escadaria do castelo, vociferando vinganças.
— Alguém o ajudou a fugir! Alguém dos nossos! Mas eu descobrirei o traidor e, à fé de quem sou, hei-de matá-lo como se mata um cão danado! Juro vingança, mesmo para além da morte! Vamos, procurem-no! Procurem-no por toda a parte!
Mas extingue-se o dia seguinte sem que cheguem novas de D. Tedo ou se descubra a mão que lhe dera a liberdade...
 
Quinze dias passaram. Quinze dias de tensão, de buscas, de pragas, de lutas, de vaivém de feridos e prisioneiros. E um desses prisioneiros traz à princesa Ardínia a indicação de um certo local onde existe um ermitério e nele um tal Gelásio que a espera para a baptizar! Não hesita a princesa e, aproveitando o negrume duma noite sem lua, abandona o seu palácio de Lamego, acompanhada da sua inseparável amiga.
Três dias exaustivos de viagem empreende a jovem princesa. Ao fim do segundo dia, já exaustas, descansam num bosque. Tesdália mostra-se alegre. A princesa, porém, parece triste.
— Ardínia! Já estarás arrependida de teres vindo?
A jovem olha com surpresa a sua amiga.
— Arrependida? Como o poderia estar?
— Não sei… Vejo-te tão triste…
A princesa abana a cabeça levemente.
— Sim... estou triste! Mas não é por ter abandonado o meu pai, a minha crença e o meu castelo. Não, não é por isso! Amo demasiado D. Tedo e começo a compreender também as alegrias de ser cristã. Todavia…
— Então que te mortifica?
— Este horrível pressentimento que me persegue hora a hora!
— Que pressentimento?
— Que não tornarei a ver o meu bem-amado!
Tesdália tem um arrepio de medo.
— Por que dizes isso? Que receias?
— A vingança do meu pai! A esta hora já deram pela nossa fuga e decerto nos perseguirão.
— Achas que ele vai descobrir que foste tu…
— Que libertei D Tedo? Oh, decerto que sim!
— E... apesar disso... achas que cumprirá a sua promessa de vingança?
— Com mais força ainda!
— Então recomecemos a caminhada! É forçoso chegarmos ao ermitério quanto antes!
— Sim, tens razão! É forçoso chegarmos lá o mais breve possível.
E as duas jovens fugitivas continuam caminhando em direcção ao ermitério. E na areia do caminho ficam desenhados os seus mimosos pezitos, pouco habituados a longos passeios forçados…
 
Gelásio, o velho monge, espreita pela frincha da porta. São elas! As damas que D. Tedo lhe recomendara que recebesse, baptizasse e escondesse, até que ele pudesse vir buscá-las! Num movimento ligeiro demais para a sua idade, abre a porta e acolhe-as com regozijo.
— Irmãs! Que Deus venha convosco!
Ardínia pergunta:
— Como te chamas?
— Gelásio.
— És aquele que me indicaram. Tens a missão de nos baptizares. Queremos ser cristãs.
— Não esperas pelo nobre fidalgo?
— Não. Receio que não chegue a tempo.
— A tempo de quê?
— De impedir que meu pai cumpra a sua promessa.
Gelásio olha-a admirado.
— Que promessa?
— A de vingar a fuga de D. Tedo, que eu favoreci.
— Nesse caso, venham comigo.
E as jovens seguem o monge, que breve lhes ministra o sacramento do baptismo.
Tesdália, lágrimas correndo pelo rosto de olheiras fundas pelo cansaço, abraça a sua companheira.
— Ardínia! Agora, sim! Agora já somos cristãs!
Ardínia deixa-se abraçar e murmura:
— Já sou digna do meu bem-amado!
De súbito, ouve-se um tropel de cavalos. As jovens estremecem. Gelásio afirma:
— É D. Tedo que chega!
Mas Ardínia fica imóvel, o coração batendo no peito, como asas negras de pássaros agoirentos. O tropel deixa de se ouvir. Batem à porta com força. Tesdália grita, animada:
— Ardínia! Aí vem o teu senhor! Corre ao seu encontro!
Porém Ardínia tem lágrimas nos olhos e está mais pálida que nunca. Aperta a sua amiga num abraço forte e murmura, com os soluços a estrangularem-lhe a voz:
— Tesdália! Pressinto que não é ainda D. Tedo! Mas quando ele chegar... diz-lhe que morri feliz sendo cristã, e que muito o amei!
Tesdália afasta-a, horrorizada.
— Que dizes, minha princesa?.
— Já não sou princesa! E vou deixar de ser a Ardínia que tu tantas vezes consolaste nas suas melancolias!... Ouves? Ele bate à porta furiosamente...
Com efeito ouvem-se tilintar as armas, e pancadas fortes na porta da entrada. E, de repente, a voz do rei Alboacém atroa os ares.
— Abram, ou arraso tudo!
Ardínia morde os lábios. Gelásio e os outros monges tremem de medo, sem atinarem com a melhor resolução. É ainda Ardínia quem retoma a palavra.
— Esconde-te, Tesdália! O meu sangue lhe bastará!
— Onde vais?
— Ao seu encontro!
— Irei contigo!
— E quem dirá a D. Tedo que o esperámos e que morro por amor a Cristo e a ele? Só tu lhe poderás contar como eu o amo e amarei para além da morte! Só tu lhe poderás levar essa consolação! Fica, minha amiga! Fica e leva-o para longe da vingança de meu pai!
E, num gesto brusco, Ardínia separa-se da sua amiga e corre a abrir a porta, onde a morte a espera!
Pai e filha encaram-se por instantes. Depois, esta diz apenas:
— Aqui estou, Senhor!
Ele enfurece-se ante a sua calma aparente.
— Traidora! E pensar que foste tu... tu, quem diria? Confesso que desconfiei de Tesdália. Há tempo já que me haviam avisado das suas tendências cristãs. Não dei ouvidos e fiz mal! Mas terei chegado a tempo?
Serenamente, Ardínia pergunta:
— A tempo de quê?
— De impedir que esse malvado te faça cristã e case contigo!
Ardínia tem um sorriso quase imperceptível.
— A tempo de impedir que eu torne a ver o meu bem-amado, chega sim! Mas tarde demais para encontrares a tua filha moura. Já sou cristã!
O rei olha-a como se estivesse vendo um fantasma.
— Tu... cristã? A minha filha, cristã?...
— Sim... graças a Deus!
Por momentos ela imagina que um alfange vai descair sobre a sua cabeça. Mas o rei leva uma das mãos aos olhos e respira com dificuldade. Depois agarra a filha por um dos ombros.
— Vem! Vem até à margem do Távora! Quero que ele recolha o teu sangue!
Ardínia tenta esconder a sua emoção. Pergunta com voz trémula:
— E ficarás assim mais satisfeito?
O mouro cerra os dentes, antes de responder:
— Jurei vingar-me do traidor que libertou esse cão que nos persegue e hei-de vingar-me! Cumpro sempre a minha palavra! Também espero cortá-lo de meio a meio, quando nos voltarmos a encontrar! Que os que ora me acompanham sejam testemunhas deste meu gesto e ele lhes sirva de exemplo! Vem, Ardínia.
Em voz sumida, ela diz apenas:
— Que Deus me acompanhe e me receba na sua Eterna Glória!
Depois, atravessa a estrada de areia branca, e caminha, submissa, à margem do Távora...
Tinge-se de sangue inocente o caudaloso rio. Como num reflexo, tinge-se o firmamento num rubro pôr de Sol... E afasta-se o rei com a comitiva, esporeando furiosamente o seu belo cavalo árabe...
 
Rompia a madrugada, quando novo tropel de cavalos acordou o ermitério. Gelásio levanta-se, aflito. Encolhe-se mais num canto a pobre Tesdália, que chora ainda lágrimas sem conta. E quando D. Tedo, alegre e forte, rompe pelo «auditorium», só vê olhares de aflição, e pranto correndo. Por uns segundos, o caudilho não quer compreender a verdade, mas é forçado a admitir a sua grande desdita. Corre para Tesdália e quase a levanta do chão, por um braço.
— Onde está Ardínia?
Entre soluços redobrados, a rapariga consegue articular.
— No fundo do rio!... O rei Alboacém veio procurá-la... e degolou-a!
De um golpe, a espada de D. Tedo abate-se sobre um tamborete, que fica aberto em dois, e grita, colérico:
— Hei-de dar cabo desse rei mouro e de todos os seus iguais na crença e no sangue!
Depois, voltando-se para o ermita:
— Irmão Gelásio! Apronta os teus homens para que o corpo da minha bem-amada venha para aqui! De coração, ela já era cristã!
Então, Gelásio arrisca-se a interromper o impetuoso fidalgo.
— Senhor, elas já são cristãs! Baptizei-as assim que chegaram!
D. Tedo respira fundo.
— Graças a Deus por isso! Não a tornei minha esposa, mas fiz dela uma cristã! Breves são estes momentos na terra comparados com a Eternidade, não é assim, irmão Gelásio?
O ermita apressa-se a responder:
— Sim, senhor D. Tedo! E grande é o desígnio de Deus!
O caudilho parece serenar.
— Se ao menos a tivesse tido, nem que fosse por breves instantes... se lhe tivesse escutado uma vez mais a voz...
Tesdália encontra forças para se desempenhar da missão que lhe fora confiada.
— Senhor! Ardínia... antes de partir para a margem do Távora... pediu-me que vos dissesse... que morria feliz por ser cristã… e que muito vos havia amado!...
O guerreiro leva as mãos ao rosto. Faz-se um silêncio profundo. Num beiral do ermitério os passarinhos começam chilreando. Gelásio não se atreve a quebrar esse mutismo em que o fidalgo se encerra, mesmo para ir cumprir a ordem do seu senhor.
Como se estivesse falando consigo próprio, D. Tedo murmura com paixão:
— Não me casarei! Não me casarei! Ardínia, a minha única esposa em Cristo, foi esperar-me lá onde o espírito não morre. Que Deus me leve também quando o entender! Quanto ao corpo de Ardínia, ficará aqui sepultado, num mosteiro que neste mesmo local construirei. Assim o juro!...
A luta continua com esforço redobrado. O ódio dá vigor à batalha, como tónico mágico. De ambas as partes há vitórias e perdas. Todavia, os exércitos de D. Tedo e seu irmão D. Rausendo vão ganhando aos poucos, palmo a palmo, esses pedaços de terra arrancados aos mouros e tão regados de sangue humano!
Nesse dia, D. Tedo luta com o mesmo ardor aparente. Mas nos seus olhos — se houvesse tempo para os estudar — encontrar-se-ia uma expressão de amarga tristeza. E a causa dessa tristeza só seu irmão Rausendo a conhece. Mal o Sol começara a ofertar à Terra os seus raios de luz, D. Tedo, depois das suas orações da manhã, tivera uma estranha visão: descendo a montanha, como fazendo parte de um dos raios solares, caminhava serena a sua bem-amada Ardínia. Ao vê-la, ele correra para ela, braços estendidos no desejo de abraçá-la. Mas Ardínia olhava-o com firmeza, com uma expressão enérgica, tal como se quisesse preveni-lo de próximo perigo! E, de súbito, a bela visão desapareceu, tal como surgira!
Não pode D. Tedo separar-se dessa imagem. Daí o seu quase alheamento, embora o seu braço continue firme, segurando a lança.
A vozearia dos que combatem faz eco ao embater contra a montanha. Perto, um pequeno rio corre mansinho, como envergonhado de se encontrar ali. De repente, uma figura envolta num manto negro precipita-se sobre D. Tedo. E antes mesmo que o guerreiro cristão tenha tempo de pôr-se em guarda, o cavaleiro de negro cai sobre ele e atravessa-lhe o peito com a sua lança. Cai o cavaleiro cristão da sua montada, escorrendo sangue. Foge o cavaleiro de negro à fúria dos outros cristãos vêm em socorro de D. Tedo. E enquanto foge, ouvem-lhe frases de ódio já pronunciadas numa voz rouca:
— Estou vingado, cão maldito! Estou vingado! Matei D. Tedo!
Na verdade, D. Tedo já não pode levantar-se. Escorre no chão o sangue aguerrido, empapando a areia e deslizando pelo declive da margem. E o pequeno rio que parecia envergonhado de estar ali como assistente inactivo, recebe com carinho o sangue desse guerreiro que tudo dera pela dilatação da sua fé!
 
O povo é sensível aos grandes feitos. Sente-os no coração, mesmo que sejam demasiado transcendentes para o seu entendimento. Assim, em memória de tão grande cavaleiro cristão, à pequena metade desse tímido curso de água que recebera o sangue de tão glorioso caudilho, começa a chamar-lhe, precisamente — rio Tedo.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 289-298
Place of collection
Granja Do Tedo, TABUAÇO, VISEU
Narrative
When
11 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography