APL 2731 Lenda do Monte do Trigo

Esta é uma das mais pitorescas histórias do Ribatejo... Uma história passada e vivida na estrada que liga Santarém a Alcanhões...
Decerto muita gente conhece essa estrada. Pois bem, a certa altura, encontra-se a chamada Ponte do Frade. E junto da ponte há um cabeço de pedra solta, uma espécie de monte daninho que nunca conseguiu ser cultivado. Pois ainda hoje se chama a esse local — o Monte do Trigo!
Noutros tempos, para lá da nossa memória, aquele monte era bem diferente. Havia ali uma eira magnífica, que mais parecia, na verdade, um autêntico jardim de trigo.
E mandavam na terra, como donos e senhores absolutos, dois irmãos que toda a gente nos arredores invejava e temia.
Qual deles seria pior do que o outro? Era impossível dar uma resposta...
Ambos rivalizavam em maldade, em egoísmo, em ambição!
Por dentro, pareciam-se imenso. Mas exteriormente poucas semelhanças possuíam. Um era loiro. O outro era moreno. Um era baixo. O outro era alto. Um era gordo. O outro era magro. Odiavam-se mutuamente, apesar de irmãos, pois cada um deles queria ser superior ao outro.
O loiro, que era alto e magro, gostava de presumir que percebia muito de agricultura.
— Eh, mano, este ano, isto ainda vai dar mais do que deu nos anos anteriores!
Mas logo o moreno atalhou, também com ar autoritário:
— É o que eu sempre tenho dito... O nosso pai deixou-nos uma destas minas que só se encontram uma vez na vida!
Foi a vez de o loiro se rir.
— Lembras-te? Pobre pai, não acreditava no futuro deste bocado de terra!
A risada multiplicou-se numa série de outras pequenas risadas.
— Foi sempre um tonto, o nosso pobre pai!
O moreno, baixo e gordo, pareceu ganhar altura, quando afirmou com arrogância:
— Pois sim! Mas tudo se modificou... Agora somos ricos… graças ao meu trabalho!
O outro olhou-o, revoltado.
— A ti? Era o que faltava!... Passas a vida a descansar do trabalho que não fazes!
Avançou para ele, colérico, de mãos abertas:
— Ouviste?... Do trabalho que nunca fizeste!
E parando a dois passos do irmão, o loiro gritou:
— Bem sabes que é a mim que se deve tudo isto!
Mas o outro não se intimidou. E calmamente retorquiu:
— Cala-te, irmão, não sejas idiota... Sem mim, nunca conseguirias chegar ao que és!
Por momentos, o loiro ficou balançando entre a praga violenta e a gargalhada sarcástica. Acabou por preferir a segunda.
— Parvo! Imbecil! Como se eu precisasse de ti para alguma coisa...
O moreno olhou-o fixamente, num ar de desafio.
— O mesmo digo eu de ti... Só serves para me explorar!
Num impulso de raiva, o outro agarrou-o.
— Repete isso... se és capaz!
Mas, bastante lesto, em contraste com a sua figura, o irmão baixo e gordo libertou-se num instante. E sem a mínima hesitação ajuntou:
— Pensas que tenho medo de ti?... Enganas-te!... E se queres que eu repita, ouve bem o que te vou dizer: roubaste o nosso pai... e agora pensas roubar-me a mim!
Os olhos do loiro raiaram-se de sangue.
— Cretino! Pois tu atreves-te?... Tu, que fostes sempre um miserável ladrão?... Ah, vais pagar bem caro esse insulto!...
E desta vez as suas mãos caíram como tenazes sobre os ombros do irmão. E desta vez, o outro, apesar da sua ligeireza, não se conseguiu libertar, limitando-se a dizer, entre dentes:
— Larga-me!... Larga-me... senão é pior para ti!
Mas as mãos do loiro apertaram ainda com mais força.
— Não te largo, não!... O que tu tens é medo!... És um cobarde!
Por instantes, mediram-se com os olhos. Havia uma fúria assassina em cada um deles. E possivelmente, nesse dia, a raiva surda amontoada por muitos e muitos anos de inveja e de cobiça acabaria por estender um dos irmãos aos pés do outro — se não aparecesse de súbito, na estrada, uma mulher de aspecto pobre mas distinto, com ar de senhora e voz de menina…
A mulher viu-os de longe e correu para eles, exclamando:
— Senhores! Senhores... que é isso? Que vão fazer? Querem matar-se?
Como que arrancado a um mundo estranho, o loiro olhou-a, num berro:
— Que pretende daqui?
Depois, já menos alucinado pelo furor que o dominava, voltou a perguntar:
— Quem é vossemecê?
Com um sorriso velhaco, o moreno voltou a libertar-se e acentuou então:
— Se ela não tem aparecido...
Os olhos do outro voltaram a brilhar. Com um brilho esquisito. Com um brilho anormal.
— O quê? Queres recomeçar?
Mas a mulher interpôs-se. Insistiu:
— Por piedade, senhores, esqueçam o vosso ódio! Sejam bons vizinhos!
O moreno baixo e gordo riu-se, escarninho.
— Não somos vizinhos... Somos irmãos!
No rosto da mulher passou uma nuvem de espanto. A sua voz ainda juvenil tremeu mais.
— Mas… como é possível?... Sois irmãos... e estáveis prestes a matar-vos?!...
Abruptamente, o irmão loiro, cortou o diálogo.
— Deixe-se de palavreado... O que é que deseja, afinal?
A mulher levou as mãos ao peito.
— Preciso de descansar... e de comer... Tenho andado tanto!... Oh, meus senhores, ajudai-me... Estou exausta e faminta!
O irmão moreno avançou para ela.
— Não percebo por que é que anda tanto... Tem ainda um palminho de cara muito aproveitável! Se quiser...
Mas logo o outro o interrompeu com violência.
— Não te metas a dar opiniões que ninguém te pediu!
E voltando-se para a mulher, falou em tom menos duro, mas sempre autoritário:
— Precisa de dormir, não é verdade? Pois tem ali um palheiro à sua disposição...
O moreno olhou-o surpreendido. Porém, diante do rosto malicioso do irmão, começou a compreender...
— O palheiro?... Essa é boa, sim senhor! Mereces as minhas felicitações!
E as risadas de ambos voltaram a fundir-se, como se nada tivesse acontecido entre eles.
Surpreendida também, mas jubilosa, a pobre mulher exclamou:
— Ainda bem que se reconciliaram por minha causa... Sinto-me feliz com isso!
Mas o irmão loiro tornou a indicar-lhe o palheiro, ajuntando num sorriso que mais parecia uma careta:
— O melhor é ir andando... se quer... Não vá a gente arrepender-se...
— Obrigada, meus senhores... Que Deus vos abençoe!

E a pobre mulher, que tinha ar de senhora e voz de menina, encaminhou-se vagarosamente para o palheiro.
Os dois irmãos deixaram-na partir, sem acrescentar mais qualquer palavra. Depois, tal como muitas vezes acontecia, esquecidos já do seu ódio mútuo, juntaram-se a um canto, conversando em segredo.
Com um olhar perverso, o loiro começou por inquirir.
— Que te parece ela?
O moreno encolheu os ombros.
— Ora!... Não é nada que me interesse em especial...
O outro riu-se maldosamente.
— Pois a mim interessa-me... Tem um ar de passarinho desconfiado.. dum passarinho que me apetece papar... Portanto, se tu não queres...
Mas o moreno não o deixou terminar.
— Alto! Eu não disse que não queria...
— Então, tiremos à sorte!
— Pois sim, aceito!
— Queres cara ou coroa?
— Cara!
— Lá vai...
A moeda rolou no ar, atirada com força. E com força caiu no solo.
— Cara!... Ganhei eu!
O berro do loiro alto e magro ecoou pelo espaço fora. O moreno baixo e gordo limitou-se a murmurar:
— E se eu te disser que fizeste batota, como de costume?...
Uma risada pérfida foi a resposta. Mas logo, apesar de tudo, veio uma tentativa de conciliação.
— Bem... Não vale a pena a gente zangar-se outra vez por causa de uma pedinte qualquer... Vamos lá os dois e ela escolherá o mais bonito de nós...
A risada transformou-se em gargalhada alvar.
— O mais bonito? Eu, se fosse a ti, mudava já de cara...
— Olha quem fala!...

E os dois irmãos, desta vez unidos excepcionalmente pela curiosidade e pelo espírito pecaminoso, avançaram em direcção ao palheiro. Porém, uma surpresa maior ali os aguardava: a pobre mulher dormia sobre as palhas, envolta numa auréola de luz. E em seu redor havia também como que uma melodia estranha e misteriosa... Eles entreolharam-se espantados, receosos.
— Que achas de tudo isto?
— Hum... cheira-me a bruxaria... Se queres, fica tu com ela... Eu nem lhe quero tocar!
— Nem eu!... E sabes que mais?... Assim que ela acordar, o melhor é mandá-la embora...
— Estou de acordo contigo... Nunca vi uma coisa destas!
— Bem... o melhor é a gente deitar-se também, antes que ela nos lance algum feitiço...
— Pois vamos embora...

Quem sabe se os dois irmãos foram capazes de dormir nessa noite?... De qualquer modo, mal a alvorada rompeu, já eles estavam de pé... E a pobre mulher também não tardou muito. Vinha mais ligeira, mais desenvolta.
— Ah, meus senhores, que bela noite eu passei... Foram os dois tão bons para mim!
De má catadura, o irmão loiro avançou para ela.
— Está bem, está bem... Escusa de agradecer... E, agora, o melhor é pôr-se a caminho.
O outro corroborou imediatamente:
— Claro! Desapareça da nossa vista...
Foi a altura da mulher com ar de senhora e voz de menina confessar doridamente:
— Mas, senhores... Eu não posso andar assim... Eu estou cheiinha de fome!
— E que temos nós com isso?... Já fizemos o que podíamos... Comida, não há!
Numa expressão aflita, angustiada, a mulher olhou em redor.
— Oh, meus senhores... qualquer coisa me serve para matar a fome... Ao menos, um pouco de trigo… ali, da vossa eira!
O irmão loiro deu um ds seus berros habituais.
— Aquilo não é trigo... É pedra!
E riu, sarcástico e maldoso. Desta vez, o outro estava inteiramente de acordo com ele.
— É pedra, sim, senhora... É mesmo pedra... Uma eira de pedras!... Pois vossemecê não está a ver?
Diante das risadas irritantes de ambos, a mulher olhou-os lentamente e lentamente olhou a eira.
— Estou a ver, sim, meus senhores... Se é isso que desejam... será na verdade uma eira de pedras...
Depois disso começou a andar devagarinho, em direcção à estrada.
— Adeus, meus senhores... Que lhes faça muito bom proveito...
O irmão moreno gritou-lhe ainda:
— E para a outra vez, veja se escolhe outro caminho!...
Logo o loiro ajuntou, nuns restos de riso:
— Já sabe que daqui não leva nada… a não ser pedras!
Um pouco mais longe, a mulher com ar de senhora e voz de menina voltou-se, a fitá-los pela última vez.
— Pedras, dizeis bem... Pedras, tal e qual como os vossos corações!
 
A mulher seguiu o seu destino e os dois irmãos não mais pensaram nela. Foram comer e beber regaladamente, a ganhar novas forças para o trabalho do dia.
Mas, quando voltaram a olhar a sua eira privilegiada, quedaram-se espantados.
— Mano, estás a ver como eu?
— Sim, estou!... Que é feito do nosso trigo, do nosso rico trigo?
Quase automaticamente, andaram os dois para a eira. O loiro alto e magro inclinou-se nervosamente. Tremendo. Tiritando.
— Pedras... só pedras... Já viste?... Temos uma eira de pedras!
A voz do outro soou a lágrimas recalcadas.
— Foi bruxedo da mulher, acredita!
Houve uma pausa. Depois, o moreno voltou a falar.
— E se ela fosse... a tal Virgem Maria… que, segundo dizem... anda por aí a correr mundo?
Desvairado, o outro fitou-o.
— Quem sabe?... Mas foste tu, afinal, que tiveste a culpa de tudo o que aconteceu!...
— Mentes! O único culpado foste tu!
Estavam de novo frente a frente. Desafiando-se. Odiando-se. O irmão loiro espumou toda a sua raiva numa frase:
— Não será isto, afinal, obra tua... para me roubares miseravelmente?
O outro atirou-lhe com a resposta à cara.
— O mesmo posso eu pensar de ti, e ainda com mais razão!
— Canalha!
— Bandido!
E sobre a eira de pedras, segundo se diz de geração em geração, os dois irmãos lutaram, dessa vez até à morte!
E desde então, também segundo se diz, o Monte do Trigo que fica na estrada de Santarém para Alcanhões, junto da Ponte do Frade, não mais conseguiu ser cultivado. Ficou sempre assim, cheio de pedras, e ainda hoje o bom povo acredita que foi Nossa Senhora que passou por ali e desse modo quis castigar a avareza e a maldade dos dois irmãos...

 

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisbon, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 355-360
Place of collection
SANTARÉM, SANTARÉM
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
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Bibliography